No
V pré-centenário de seu nascimento
(Teresa de Cepeda y Ahumada nasceu em 1515, em Gotarrendura, na província de
Ávila, no reino de Espanha; faleceu em 1582,em Alba de Tormes; foi canonizada,
em 1622, por Gregório XV, e proclamada Doutora
da Igreja, em 1970, por Paulo VI.)
***
Aceite universalmente como a mística do século XVI, deve ser
considerada também na vertente de escritora, o que facilitará o acesso à sua
doutrina espiritual, tal como a oferta da sua experiência mística se liga à vivência
e expressão literárias, que revelam exemplarmente a face espiritual da
carmelita reformadora. Teresa de Jesus
ou Teresa de Ávila, a mulher culta do
Renascimento, além de um tom coloquial marcado de franqueza, deu largas à
expressão escrita, plena de conteúdo e de beleza estético-literária, a ponto de
a leitura agradar e dar enlevo a intelectuais distantes da fé e religiosidade, como
sucede a muitos leitores de Pascal e Santo Agostinho.
Captar as raízes da beleza espelhada nas suas páginas faz lembrar
que Teresa nasceu em Ávila, bela cidade de Castela, a mais muralhada da Europa,
o oásis arquitetónico na aridez paisagística do rincão do planalto avilense,
que emoldura a cidade moderna de estrato medievo. Foi a feição morfológica da
cidade natal lhe inspirou a nitidez das imagens de um de seus maiores livros, Moradas ou Castelo Interior. É como
castelo rodeado de muralhas que Teresa expressa o âmago da vida humana, lugar
onde se gera o encontro com o divino. Desde o berço que a flor do misticismo
carmelita contemplou o belo em seu redor e experienciou o fascínio do discurso
poético – discurso em que se ambientou graças aos pais, fervorosos cristãos,
que a familiarizaram com salmos, cantares e parábolas do Evangelho. Foram as divinae litterae que lhe abriram
a porta da arena literária, numa Espanha que, à boa maneira renascentista e
humanista, cultivava entusiasticamente as pulchrae
litterae. E o pai, apaixonadamente culto, mantinha a rica biblioteca
doméstica, onde, a par de obras latinas, figuravam as obras em castelhano, em romance, como se dizia ao tempo,
patenteadas à leitura de todos, independentemente do sexo. Também a mãe tinha o
hábito assíduo da leitura; e o que mais a atraía eram as obras que uniam
história e fantasia, nomeadamente as novelas de cavalaria, tão populares na
época e mais tarde imortalizadas por Cervantes.
É neste contexto cultural que Teresa descobre o mundo da ficção e
passa a encantar-se com as aventuras de guerreiros cristãos e mouros, ocorridas
de lés-a-lés. Porém, a adolescente não se limita a ler: tem mesmo o afã da
autoria duma novela de cavalaria, que chega a iniciar, com a colaboração do
irmão – o que, não passando de brincadeira de criança, não vai por diante.
Já na adultez, Teresa percebe os perigos da leitura novelística sem
freio, que tornaria louco o mítico Quixote. Todavia, não se pode olvidar que foram
as obras de cavalaria que lhe criaram o gosto pela escrita, cheia de lances
surpreendentes e imprevistos que fixam a atenção do leitor. É assim que
Marcelle Auclair a designa por a dama errante
de Deus, não sendo difícil topar nos episódios da reforma do Carmelo, passados
por Teresa ao Libro de las
Fundaciones, a vivacidade narrativa e o realismo descritivo que se
habituara a apreciar, na juventude, ao ler sagas de cavaleiros andantes.
Inferimos, ainda, que as imagens nupciais da obra sejam
reminiscências das novelas de cavalaria, com apaixonados cavaleiros andantes,
como Quixote por Dulcineia, bem como dos livros proféticos e do bíblico cantar dos cantares. Mas, na biblioteca
paterna, entre os “buenos libros”, contavam-se as obras de grandes padres
espirituais e mestres da expressão literária, como Juan de Ávila e Luís de
Granada, bem como obras espirituais de excelsa qualidade literária, como a
kempisiana Imitação de Cristo.
Também um tio lhe deu a conhecer o Tercer
Abecedario, de Osuna, que ensina a oração de recolhimento, como ela
confessa em
4,6, do Libro de la Vida.
E o facto de o pai disponibilizar os livros para leitura a todos indistintamente
mostra não haver prurido diferenciador na educação, estribado na condição de
sexo: todos acediam de igual modo à leitura. Tal postura configura uma atitude
que faz pensar ainda hoje, inclusive se lembrarmos que, no tocante à difusão
dos textos, os tempos eram “recios”, como diz Teresa, pois, em 1559, o Índice de livros proibidos, publicado por
Valdés, exclui vários livros de vida espiritual escritos em língua romance. Entre eles, estavam clássicos
da espiritualidade, como Juan de Ávila e Luís de Granada. E alguns dos que
Teresa escreveu embateram nos escolhos da censura eclesiástica. Seja como for,
com as leituras da biblioteca paterna e com as de mais tarde, a mística e
pensadora foi adquirindo noções da arte de bem escrever e de bem dizer. Por
outro lado, a proibição oficial dalguns tratados terá tido, paradoxalmente,
benéfico efeito: o de obrigar a escritora a desprender-se de hábitos antigos e
buscar em si formas livres de expressão da espiritualidade. Enfim, aprendeu que,
na expressão literária, como em outros setores, homens e mulheres devem ter as
mesmas oportunidades, mas achar o próprio, caminho também ao nível da expressão.
Mais: as boas leituras capacitam para a escrita; e, sendo a mulher a escrever, melhor
se faz entender pelas outras mulheres (cf Moradas, prólogo, 5).
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É, aliás, importante sublinhar que os momentos cruciais da vida de
Teresa estão unidos aos livros. Ela mesma nos conta que foi através da leitura
que deu os primeiros passos em sua caminhada espiritual (cf Libro
de la Vida,
3,7). O Tercer
Abecedario fê-la entrar na rota da oração mental. Em 1554, era das poucas
pessoas a ler as Confissões de Agostinho. É então que inicia o
que denomina de conversão. A reforma
carmelita está moldada pelo Livro
da Instituição dos Primeiros Monges,
da autoria de João, Patriarca de Jerusalém. E, ao longo da vida conventual,
conservou o uso de buscar a colmatação das dúvidas tanto nos conselhos dados de
viva voz pelos letrados, confessores e, em especial, os pregadores, como na
leitura dos padres espirituais. (cf
Libro de la Vida, 23,12).
Sabe-se que na Europa da época a pregação era o principal espaço
da retórica, cuja aprendizagem se revelou importante anos depois, quando Teresa
precisou de escrever. A grande obra de sua vida foi reconhecidamente a reforma
do Carmelo. Mas foram justamente as polémicas inerentes a essa fatigante atividade
que induziram os superiores eclesiásticos a ordenar-lhe que escrevesse, a fim
de lhe conhecer melhor os propósitos.
A redação do Libro
de la Vida ocorreu em momento
de extremas dificuldades para a reforma, que a obrigação de escrever
ultrapassou. Não obstante, com o devir temporal, Teresa vai-se identificando
cada vez mais com a expressão escrita, sem que escrever não deixe de ser é um ato de obediência. Porém, a escrita
constitui a ocasião de se ver mais claramente a si mesma e de comunicar aos
outros os dons que recebera e vai-se tornando imperiosa, ‘apremiante’, tanto
que chega a dizer: “Ojalá pudiera yo escrivir
con muchas manos para que unas por otras no se olvidaran!” (Camino de Perfección, 34,4). Contudo, não deu prioridade à redação dos escritos. A contrario, tantas vezes pôs de lado a pena para cuidar de obrigações
urgentes, nada a impedindo da atenção àquelas pessoas com quem convivia. Assim,
a redação de Camino de
Perfección e de Moradas, com entrecortes
vários, exibe variações no modo de escrever e na diversidade estilística, pois,
como os escritos nasciam da efusão interior, sofriam a influência de cada
momento. Ademais, com o fluir do tempo, foi aumentando o número de leitores e
os interlocutores mudavam ao longo do mesmo livro, o que ela desvaloriza
justificando: “como la cabeza no está para tornarlo a
leer, todo deve ir desbaratado, y por ventura dicho algunas cosas dos veces:
Como es para mis hermanas, poco va en ello” (Moradas, V,4,1).
As obras mais citadas vêm escritas em prosa. Mas também nos legou cerca
de trinta poesias, na esteira do uso carmelita de celebrar com versos as festas
religiosas ou a entrada de uma nova irmã. Por isso, nem sempre se consegue
saber se a autora de um poema é Teresa ou alguma das suas religiosas. No
entanto, algumas provêm de sua pena. E o tema é ora a sua experiência mística,
vg na poesia Vivo sin vivir en
mí, ora a alegria da convivência com as irmãs carmelitas, vg na composição Ah,
pastores que veláis. Quanto à
estrutura das composições poéticas, adotou soluções tradicionais da literatura
castelhana. Ou seja, trabalhou a estrofe de cariz popular (villancicos, romances)
e a estrofe erudita, como a dos cancioneiros. Nos versos teresianos, emerge a vuelta
a lo divino, isto é, a “divinização” ou “sacralização” de alguns temas e
imagens. Assim, várias imagens recorrentes nos cancioneiros amorosos tornam-se,
na poesia teresiana, símbolos da vida espiritual. Vêm nesta linha simbólica as
imagens da caçada, da morte por amor, da dialética amor/morte. Algumas decorrem
do Cântico dos Cânticos,
de Salomão, onde o amor humano exprime no concreto o amor divino – livro muito
valorizado desde o século XV, sobretudo na Península Ibérica, pela devotio moderna, exaltante da
relação pessoal típica entre a criatura e o Criador. A devotio moderna e a sua leitura do Cântico salomónico figuram desde cedo na
Península e deixam marcas na profunda obra de Teresa, como na similar de João
da Cruz e na de outros místicos espanhóis. Aliás, a Santa dedica ao comentário
daquele livro bíblico a obra em prosa Meditaciones
sobre los Cantares.
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Embora os críticos repartam os escritos teresianos em duas grandes
secções – textos autobiográficos, como Livro de la Vida, e textos
ascético-místicos, como Meditaciones
– a classificação não deve
ser tomada com rigidez. De facto, a escrita autobiográfica inclui relatos de experiência
mística, assim como a escrita espiritual contém inestimável informação de sua
vida. Em todo o caso, a produção literária da Avilense decorre 1560 a 1582,
quando ela já havia alcançado a experiência mística.
A grande dificuldade com que Teresa se debate (e isto vale para
outros escritores místicos e para os críticos) é a de verbalizar o mistério que
vai para lá das palavras, já que o vocabulário comum se afigura inadequado à
experiência que se intenta transmitir. Por isso, recorre-se a comparações, a analogias
e a linguagens simbólicas, bem próximas da poesia. Assim, para Teresa, não
obstante a dificuldade sentida, é graça divina tanto a experiência de Deus como
o saber exprimi-la (cf Libro de la Vida, 17,5). “Saber decir”, “saber dar a entender”, “después de haberlo
entendido” são expressões recorrentes nos escritos teresianos. A consciência do
problema e o desejo de se comunicar com todos levam-na a buscar elementos para
se fazer entender: por isso, recorre a tanta e tamanha variedade de comparações
e vai escolhendo os termos mais expressivos para explicar o que pretende dizer.
O núcleo dos seus escritos é formado pelo Libro de la Vida, pelo Libro de las Fundaciones e pelas Cartas. O Libro de la Vida
é uma obra fundamental para o conhecimento da formação pessoal da autora e do
seu crescimento humano. Escrito nas calhas das Confissões de Agostinho, a que a Mística
teve acesso precoce, apresenta semelhanças de conteúdo e postura. Assim, nas
Confissões, Agostinho
dirige-se a Deus, louvando-O e pedindo-Lhe perdão pelos acontecimentos da vida;
Teresa dirige-se ao Senhor também com inúmeras exclamações de louvor e de pesar,
como no seguinte passo do início, “Oh Señor
mío!: pues parece tenéis determinado que me salve, plega a Vuestra Majestad sea
ansí [...]” (Libro de la Vida, 1,8), ou no final: “Cómo se sufre, Dios mío, cómo se
compadece tan gran favor y merced a quien tan mal os lo ha merecido?” (Libro
de la Vida, 40,4).
O tecido literário da sua autobiografia, como forma de expressão
peculiar que as dificuldades lhe estimularam a adquirir, é constituído por
metáforas, alegorias e símiles, retirados sobretudo da vida quotidiana. Escrevendo
assim, Teresa transmite todo o encanto da experiência concreta, mesmo em
páginas que glosam temas espirituais. Entre as imagens que traduzem a vida
espiritual, a mais conhecida é a do horto:
“Ha de hacer
cuenta el que comienza [en la vida espiritual], que comienza a hacer un huerto
en tierra muy infructuosa que lleva muy malas hiervas, para que se deleite el
Señor. Su Majestad arranca las malas hiervas y ha de plantar las buenas. Pues
[...] con ayuda de Dios hemos de procurar, como buenos hortelanos, que crezcan
estas plantas y tener cuidado de regarlas para que no se pierdan, sino que
vengan a echar flores que den de sí gran olor, para dar recreación a este Señor
nuestro, y ansí se venga a deleitar muchas veces a esta huerta y a holgarse
entre estas virtudes” (Libro de la Vida, 9,6).
A natureza é tida como caminho para Deus, o que fornece à obra
notório realismo. Não se trata da natureza idealizada, mas das coisas imediatas,
objetivas. Não é uma escrita abstrata ou desligada da realidade: os símbolos são
tomados do quotidiano, do compreensível para todo o leitor. O horto, a nora, a
água, as flores... são símbolos usuais para expressar altos estados de oração.
E, para os assumir, Teresa recorre aos diferentes modos de regar o horto: desde
tirar a água do poço com um balde, procedimento penoso, até à chuva repousada
que molha tudo por igual e sem trabalho, passando pelo rego de nora, rio ou
fonte. Porém, o realismo teresiano estende-se mesmo a algo tão difícil e
abstrato como a oração mental. Para explicar esta oração, Teresa vale-se da
imagem da conversa entre amigos: “que no es
otra cosa oración mental, a mi parecer, sino tratar de amistad, estando muchas
veces tratando a solas con quien sabemos nos ama” (Libro de la Vida,
8,5). Reencontramos aqui o que já se havia visto na poesia, ou seja,
que o amor humano é o caminho para falar da experiência do amor divino. A mesma
analogia se acha, nos séculos XIII e XIV, em escritores espirituais europeus,
como os alemães mestre Eckart e seus sucessores, Suso e Tauler, para lá do
flamengo Ruysbroeck. Imagens de amor esponsal, fogo, sangue notam-se ainda, por
exemplo, nos escritos místicos de Santa Catarina de Sena, na Itália do século
XIV. Apesar de essas lições terem passado à Península Ibérica, a crítica
entende que foi na Espanha do século XVI que a literatura mística encontrou seus
clássicos, principalmente em João da Cruz e Teresa de Jesus.
Muitas das características literárias do Libro de la Vida acham-se também no Libro
de las Fundaciones, em que Teresa narra as suas atarefadas peripécias por
toda a Espanha, como fundadora de numerosos conventos de carmelitas descalças.
Se aquele
está voltado especialmente para o desenvolvimento interior, este
volta-se preferencialmente para a obra externa, apresentando, assim, peculiar
relevância para o estudo da sociedade espanhola da época.
É importante para o estudo de Teresa como escritora o exame das
numerosas cartas que escreveu, de que se perderam bastantes, algumas das quais
mercê da sua destruição pelos destinatários, com medo de se comprometerem,
quando a reforma teresiana passou a sofrer hostilidade generalizada, até em
meios religiosos. Mas as cartas que se conservam contêm páginas de grande
espontaneidade, constituindo um epistolário notável pela beleza e graça,
nascidas do linguajar fluente e das imagens concretas, emersas do quotidiano,
que bem revelam o sentido pragmático da incessante reformadora.
Por seu turno, os textos ascético-místicos compaginam verdadeiros
tratados de vida espiritual. Logo o Camino de Perfección é um tratado de
espiritualidade destinado às carmelitas descalças. Subsistem duas versões: a de
1564; e outra, posterior, mais desenvolvida. A primeira foi lida pelo censor, Padre
García de Toledo, que riscou páginas inteiras e mudou termos potencialmente
suspeitos aos olhos dos inquisidores, o que levou à necessidade de a autora
reescrever a obra em conformidade. A segunda versão foi muito divulgada em
cópias manuscritas, algumas das quais contêm correções autógrafas de Teresa.
Ora, o estilo destas duas versões difere: a primeira preserva melhor o tom
vivo, espontâneo com a que a autora se dirigia às irmãs, as primeiras carmelitas
descalças, de São José de Ávila; a segunda mostra um tom mais grave, mais
doutrinal, mas perde em espontaneidade.
A obra-prima e a mais conhecida é Las Moradas o Castillo Interior, tratado destinado a auxiliar quem
deseje aprender eficazmente a oração. Logo que foi redigida, em 1577, o
carmelita descalço amigo de Teresa, Jerónimo Gracián, ocultou a obra em
Sevilha, para a salvar da Inquisição, que dois anos antes havia apreendido a
autobiografia de Teresa. O texto salvo foi posteriormente publicado pelo poeta
do século XVI, frei Luis de León, em sua edição das obras teresianas. Caraterística
das Moradas é a variedade de destinatários, o que
condiciona de modo decisivo o seu estilo, que vai mudando, segundo a pessoa a
quem a escritora se dirige (por exemplo, aos cristãos,
às carmelitas ou ao próprio Deus). É
notável que ao falar com Deus, o estilo de Teresa não perde as caraterísticas
de quem se dirige a interlocutores visíveis: pelo contrário, torna-se muito
mais afetivo. “Rey mío”, “Dios mío”, “Señor de mi alma”, “Padre y Criador mío”
são algumas expressões de Teresa, que poderiam formar uma lista inesgotável.
Entretanto, a organização do texto das Moradas tem como fio condutor o simbolismo do
“castelo interior” ou a alma. A figura do castelo era imagem antiga na tradição
literária cristã, mas fora também usada por autores que lera na biblioteca
paterna, como Bernardino de Laredo. Se a crítica lembra que a imagem do castelo
é símbolo da mística muçulmana – e sabe-se da importância da presença muçulmana
na cultura espanhola medieval – não se pode menosprezar a importância dos
castelos nas novelas de cavalaria, tão apreciadas por Teresa, nem o facto de a
autora ter crescido a ver as grandiosas muralhas de Ávila, sua cidade natal. Seja
qual for a origem dessa imagem, o certo é que ela se tornou um dos recursos
literários de maior êxito a explicar o processo da vida espiritual de
interiorização e união. O Castelo teresiano é esférico, formado por sete moradas concêntricas
e “en el centro
y mitad de todas éstas tiene la más principal, que es adonde pasan las cosas de
mucho secreto entre Dios y el alma” (Moradas, I,1,3). Isso simboliza a caminhada, que parte, nas primeiras moradas, da
fase de purificação, mas chega aos desposórios místicos nas últimas. Em todos
os escritos de Teresa, vemos, pois, refletir-se toda a sua vida espiritual e
toda a sua vida de fundadora do Carmelo reformado.
***
Mas a obra não tem somente valor documental histórico, biográfico
ou espiritual. É uma obra importantíssima pelo valor literário, como percebera
o seu primeiro editor, o poeta frei Luís de León, que louva a dicção castiça da
Santa, chamando a atenção para a beleza da linguagem teresiana, uma beleza
quase “caseira” – o que acontece porque ela escrevia, com propriedade e sem
afetação, a língua que havia aprendido desde a meninice. Nos últimos tempos anos, percebeu-se
afinal a enorme importância da obra literária teresiana. Para a crítica, o que
é genuinamente original na literatura teresina é a liberdade e ousadia de
expressão. Antes, na literatura espiritual, partia-se do sistema de princípios,
para em segunda instância aplicar à situação pessoal. Teresa inverte o
processo: parte não de princípios abstratos, mas de um facto da sua experiência,
que se esforça por interiorizar em profundidade e expressar em extensão. Assim,
afasta-se das teorias convencionais e inaugura, na espiritualidade europeia, a
modernidade renascentista.
A grandeza mística de Santa Teresa e a sua
importância para a história da Igreja são reconhecidas desde há muito tempo.
Mas, nestes dias, em que se valoriza o contributo feminino para a arte e
ciência, mais do que nunca os estudiosos têm de voltar-se para Teresa como
escritora, ou seja, a mulher que soube criar beleza através da escrita. Ou seja,
agora que se redescobre a presença feminina na literatura, pode-se, com boas
razões, exalçar a redescoberta literária de Santa Teresa.
– Santa Teresa de Jesus, Obras Completas, edição del P. Efrem
dela Madre de Diós, 1962
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