A
Comunicação Social foi pródiga nas referências à visita de Felipe VI, rei de
Espanha recém-aclamado, acompanhado da rainha consorte, no âmbito do périplo
que a Coroa Espanhola, secundada pela diplomacia do país vizinho determinou por
um significativo conjunto de Estados. De facto, além da apresentação pública do
Soberano à nação cujos cidadãos quase se esquecem de que são súbditos, arredando
assim qualquer semântica de sujeição ou de submissão ao “Reinado”, graças à
mentalidade e à prática democráticas em interação, é natural que a diplomacia
tenha julgado pertinente umas jornadas de reconhecimento por outros países com
os quais a Espanha mantém especial relacionamento.
Os
comentadores não deixaram de levantar alguns fantasmas a propósito do périplo
em questão. Primeiro, suspeitaram de que o facto da primeira visita de Estado
dos novéis monarcas à Santa Sé tivesse como intenção e eventualmente como
consequência a alteração da índole do Estado Espanhol, designadamente numa opção
pelo Catolicismo com efeitos na assunção de valores tradicionais da Religião
Católica com repercussão nas opções políticas de fundo. Depois, alguns
consideraram que a visita a Portugal poderia significar a abertura de caminho para
uma fusão política dos dois Estados ibéricos, obviamente com a hegemonia do
país vizinho, por de maior extensão e peso internacional.
Ora,
a não ser que o furor revolucionário incendeie por aí os dois países, ou ao
menos um deles, tais suposições não deixam de se circunscrever a uma postura de
desconfiança nas instituições e de alguma tacanhez política.
Se
olharmos para o texto constitucional do Reino de Espanha, aprovada, em 1978,
pelas Cortes e referendada pelo povo no mesmo ano, poderemos tranquilizar os
timoratos. Com efeito, por mais interessante que seja o seu papel, não é ao Rei
que fica atribuída a competência da definição da política interna ou a política
externa, mas ao Governo. Por outro lado, o Governo não é responsável perante o
Rei, mas perante o Congresso.
O
artigo 97 da Constituição Espanhola é claro, ao estabelecer:
“El Gobierno dirige la política interior y
exterior, la Administración civil y militar y la defensa del Estado. Ejerce la
función ejecutiva y la potestad reglamentaria de acuerdo con la Constitución y
las leyes”.
São,
pois, suas atribuições fundamentais: a direção da política, interna e externa,
a administração civil e militar e a defesa do Estado. Mais: no exercício das
funções executiva e regulamentadora está sujeito à Constituição e às leis e não
a qualquer poder limitador do Rei, como o veto político.
Por
seu turno, o artigo 108 define a responsabilidade, ao dispor que “El Gobierno responde solidariamente en su
gestión política ante el Congreso de los
Diputados”.
É
certo que, nos termos do n.º 1 do artigo 56, o Rei é o Chefe do Estado e
símbolo da sua unidade e permanência. É o árbitro e garante do regular
funcionamento das instituições e assume o papel da mais alta representação do
Estado nas relações internacionais, sobretudo com as nações da comunidade de
língua espanhola – o que lhe confere o estatuto de reserva política e moral do Estado:
“El Rey es el
Jefe del Estado, símbolo de su unidad y permanencia, arbitra y modera el
funcionamiento regular de las instituciones, asume la más alta representación
del Estado español en las relaciones internacionales, especialmente con las
naciones de su comunidad histórica, y ejerce las funciones que le atribuyen
expresamente la Constitución y las leyes”.
No
entanto, os seus atos, mesmo que formalmente necessários são, de acordo com o
preceituado no artigo 64, referendados pelo governo (através do Presidente ou
dos competentes ministros, conforme o caso), exceto a proposta e nomeação do
Presidente do Governo e a dissolução das Cortes, que serão referendadas pelo
Presidente do Congresso. E são responsáveis pelos atos do Rei as pessoas que os
referendarem:
1. Los actos del Rey
serán refrendados por el Presidente del Gobierno y, en su caso, por los
Ministros competentes. La propuesta y el nombramiento del Presidente del
Gobierno, y la disolución prevista en el artículo 99, serán refrendados por el
Presidente del Congreso.
2. De los actos del Rey
serán responsables las personas que los refrenden.
É
então de concluir que nenhuma alteração da natureza constitucional do Estado
Espanhol pode resultar da ação do Rei, cuja postura deve primar pelo simbolismo
e pela postura prestigiante, sem que, tal como acontece, por exemplo, com
Portugal, Alemanha e Grécia, nos grandes areópagos internacionais – como o
Europeu, em que são chamados a decidir os conselhos de Chefes de Estado e de
Governo – Rei ou Presidente da República não participam (ao contrário de
França, Estados Unidos ou Brasil em que é o Presidente que, por dispor de
poderes executivos integra obrigatoriamente conselhos e cimeiras). Já, em
virtude da proximidade linguística e histórica que une aqueles países à
Espanha, o Rei costuma participar nas cimeiras ibero-americanas. Quem não se lembra
do “Por qué no te callas?”, dirigido a
Chavez?
***
Todavia,
não pode deixar de atentar-se no facto de a aclamação de Felipe VI ter sido
rodeada de alguma perturbação pelo lado do movimento republicano, que exigia o
referendo popular sobre a forma do regime de governo: a monárquica ou a republicana.
Talvez
seja oportuno adiantar que as coisas não mudam tanto como parece à primeira
vista, a não ser o facto de a Chefatura do Estado, não resultar da condição de
nascimento e ser marcada por uma limitação temporal de mandato. Mesmo nos
Estados Unidos ou no Brasil, de sistema presidencialista, ou em França, de
regime semipresidencialista, mas em que o Presidente coordena no topo o poder
executivo, os poderes do Presidente são limitados e os do Parlamento também são
meticulosamente escrutinados. E nem sempre o Presidente é eleito por sufrágio
universal, direto e secreto (vg Alemanha, Itália e Estados Unidos).
No
caso, português, de sistema semipresidencialista, em que os poderes executivos
residem na figura do Primeiro-ministro, o ordenamento político-constitucional
é, no mínimo, curioso.
Assim,
o artigo 120.º da CRP (Constituição da República Portuguesa) estabelece:
“O Presidente da República representa a
República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o
regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência,
Comandante Supremo das Forças Armadas”.
Não
deixa de ter um papel simbólico e de garante das instituições, como o Rei de
Espanha, mas reconhece-se-lhe a prerrogativa de Comandante Supremo das Forças
Armadas. Porém, além dos atos formais, dispõe, ao contrário do Rei, do poder de
veto político sobre os decretos do Parlamento e do Governo (vd art.os 136.º,
278.º e 279.º), o poder solitário de dissolução do Parlamento e das Assembleias
Legislativas das regiões autónomas (vd art.º 172.º e alíneas “e” e “j” do art.º 133.º, bem como o art.º 234.º), embora no respeito
pelos condicionalismos estatuídos constitucionalmente, o poder de demitir o Governo
quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das
instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado (vd art.º 195.º/2) e a
prerrogativa de solicitar ao Tribunal Constitucional a fiscalização prévia dos
normativos legais (vd alíneas g e h do art.º 134.º e art.os
278.º e 279.º). De resto, o seu maior poder pessoal é ordinariamente o poder da
Palavra, habitualmente designado como magistratura de influência – o que em
termos constitucionais fica protegido na prerrogativa de dirigir mensagens à
Assembleia da República e às Assembleias Legislativas das regiões autónomas (vd
alínea d do art.º 133.º) e
“pronunciar-se sobre todas as emergências graves para a vida da República” (vd
alínea e do art.º 134.º).
No
entanto, a independência nacional pode correr riscos, se os governos
continuarem a sujeitar-se acriticamente às indicações internacionais,
nomeadamente da UE, da Zona Euro e do FMI, não assumindo a necessária
capacidade negocial e a defesa dos interesses dos seus cidadãos. É que, segundo
o art.º 182.º da CRP é o Governo o “órgão de condução da política geral do país
e o órgão superior da administração pública”.
É
certo que o Governo, conforme o estipulado no art.º 190.º, é responsável
perante o Presidente da República e a Assembleia da República; e, de acordo com
o art.º 191.º/1, O Primeiro-Ministro é responsável perante o Presidente da
República e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a
Assembleia da República. Todavia, o Presidente não tem assumido uma postura
política além de ou acima do espectro partidário, apesar de a maioria que o
elege ficar dissolvida com o ato eleitoral. E a Assembleia da República tende a
divagar por temas nem sempre essenciais e os deputados do alinhamento
governativo pouco surpreendem no debate, a não ser para elogiar as medidas
governamentais ou para arrasar as oposições.
***
Postos
de parte os fantasmas unionistas ou de conformação religiosa dos Estados
ibéricos, centremo-nos nos conteúdos da visita real.
Do
lado de Portugal, o Presidente da República manifestou o desejo de que Portugal
vá mais longe na cooperação com Espanha. “Portugal e Espanha conhecem-se hoje
melhor e trabalham muito melhor em conjunto, mas nem tudo está feito” – sentenciou
Cavaco Silva nos brindes do banquete oferecido ao casal régio no Palácio da
Queluz. E adiantou que “podemos ir mais longe na nossa cooperação e na nossa
coordenação”, assegurando o propósito de manter a ambição e o empenho na construção
dum futuro de relações cada vez mais estreitas e frutuosas”.
Por
seu lado, Felipe destacou a existência, nas duas sociedades, “de um inaceitável
aumento do desemprego”. O monarca revelou que, após a visita ao Papa Francisco,
iniciou em Lisboa um périplo pelas capitais dos países vizinhos. E,
referindo-se à relação de vizinhança ibérica, sublinhou o “tecido de vínculos
de todo o tipo” entre Espanha e Portugal.
No
entanto, se Cavaco enalteceu a “renovação geracional” que representa a recente
proclamação do novo monarca e enumerou os pontos da cooperação – das trocas
comerciais aos fluxos turísticos, das universidades à cultura, dos transportes
aos recursos hídricos, da energia à ciência –, Felipe VI focou outros importantes
aspetos:
–
“A plena superação desta crise [económica] e, em especial, do desemprego,
representa um dos principais desafios coletivos dos nossos dois países que
tanto os cidadãos portugueses como os espanhóis abordam com coragem, esforço e
sacrifício”.
–
O compromisso dos dois países “com a democracia, os direitos humanos, a paz, a
liberdade, a justiça e a igualdade”, enquanto “guia de atuação dos nossos
Estados de direito [...] e da nossa projeção” além-fronteiras.
–
Evocando a União Europeia, os dois países “se reencontraram há pouco mais de um
quarto de século, depois de muitos anos de trajetórias paralelas, mas sem os
devidos lugares de encontro e convergência.”
– E a hospitalidade ao
conde de Barcelona, seu avô, no exílio no Estoril durante o franquismo.
Então,
que a visita de Estado, longe de ressuscitar fantasmas antigos, consolide a
união de interesses económicos e culturais, no respeito pelas diferenças, e
constitua um poderoso contraforte da Europa.
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