quarta-feira, 9 de julho de 2014

A respeito da visita dos monarcas de Espanha a Portugal

A Comunicação Social foi pródiga nas referências à visita de Felipe VI, rei de Espanha recém-aclamado, acompanhado da rainha consorte, no âmbito do périplo que a Coroa Espanhola, secundada pela diplomacia do país vizinho determinou por um significativo conjunto de Estados. De facto, além da apresentação pública do Soberano à nação cujos cidadãos quase se esquecem de que são súbditos, arredando assim qualquer semântica de sujeição ou de submissão ao “Reinado”, graças à mentalidade e à prática democráticas em interação, é natural que a diplomacia tenha julgado pertinente umas jornadas de reconhecimento por outros países com os quais a Espanha mantém especial relacionamento.
Os comentadores não deixaram de levantar alguns fantasmas a propósito do périplo em questão. Primeiro, suspeitaram de que o facto da primeira visita de Estado dos novéis monarcas à Santa Sé tivesse como intenção e eventualmente como consequência a alteração da índole do Estado Espanhol, designadamente numa opção pelo Catolicismo com efeitos na assunção de valores tradicionais da Religião Católica com repercussão nas opções políticas de fundo. Depois, alguns consideraram que a visita a Portugal poderia significar a abertura de caminho para uma fusão política dos dois Estados ibéricos, obviamente com a hegemonia do país vizinho, por de maior extensão e peso internacional.
Ora, a não ser que o furor revolucionário incendeie por aí os dois países, ou ao menos um deles, tais suposições não deixam de se circunscrever a uma postura de desconfiança nas instituições e de alguma tacanhez política.
Se olharmos para o texto constitucional do Reino de Espanha, aprovada, em 1978, pelas Cortes e referendada pelo povo no mesmo ano, poderemos tranquilizar os timoratos. Com efeito, por mais interessante que seja o seu papel, não é ao Rei que fica atribuída a competência da definição da política interna ou a política externa, mas ao Governo. Por outro lado, o Governo não é responsável perante o Rei, mas perante o Congresso.
O artigo 97 da Constituição Espanhola é claro, ao estabelecer:
El Gobierno dirige la política interior y exterior, la Administración civil y militar y la defensa del Estado. Ejerce la función ejecutiva y la potestad reglamentaria de acuerdo con la Constitución y las leyes”.
São, pois, suas atribuições fundamentais: a direção da política, interna e externa, a administração civil e militar e a defesa do Estado. Mais: no exercício das funções executiva e regulamentadora está sujeito à Constituição e às leis e não a qualquer poder limitador do Rei, como o veto político.
Por seu turno, o artigo 108 define a responsabilidade, ao dispor que “El Gobierno responde solidariamente en su gestión política ante el Congreso de los  Diputados”.
É certo que, nos termos do n.º 1 do artigo 56, o Rei é o Chefe do Estado e símbolo da sua unidade e permanência. É o árbitro e garante do regular funcionamento das instituições e assume o papel da mais alta representação do Estado nas relações internacionais, sobretudo com as nações da comunidade de língua espanhola – o que lhe confere o estatuto de reserva política e moral do Estado:
El Rey es el Jefe del Estado, símbolo de su unidad y permanencia, arbitra y modera el funcionamiento regular de las instituciones, asume la más alta representación del Estado español en las relaciones internacionales, especialmente con las naciones de su comunidad histórica, y ejerce las funciones que le atribuyen expresamente la Constitución y las leyes”.
No entanto, os seus atos, mesmo que formalmente necessários são, de acordo com o preceituado no artigo 64, referendados pelo governo (através do Presidente ou dos competentes ministros, conforme o caso), exceto a proposta e nomeação do Presidente do Governo e a dissolução das Cortes, que serão referendadas pelo Presidente do Congresso. E são responsáveis pelos atos do Rei as pessoas que os referendarem:
1. Los actos del Rey serán refrendados por el Presidente del Gobierno y, en su caso, por los Ministros competentes. La propuesta y el nombramiento del Presidente del Gobierno, y la disolución prevista en el artículo 99, serán refrendados por el Presidente del Congreso.
2. De los actos del Rey serán responsables las personas que los refrenden.
É então de concluir que nenhuma alteração da natureza constitucional do Estado Espanhol pode resultar da ação do Rei, cuja postura deve primar pelo simbolismo e pela postura prestigiante, sem que, tal como acontece, por exemplo, com Portugal, Alemanha e Grécia, nos grandes areópagos internacionais – como o Europeu, em que são chamados a decidir os conselhos de Chefes de Estado e de Governo – Rei ou Presidente da República não participam (ao contrário de França, Estados Unidos ou Brasil em que é o Presidente que, por dispor de poderes executivos integra obrigatoriamente conselhos e cimeiras). Já, em virtude da proximidade linguística e histórica que une aqueles países à Espanha, o Rei costuma participar nas cimeiras ibero-americanas. Quem não se lembra do “Por qué no te callas?”, dirigido a Chavez?
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Todavia, não pode deixar de atentar-se no facto de a aclamação de Felipe VI ter sido rodeada de alguma perturbação pelo lado do movimento republicano, que exigia o referendo popular sobre a forma do regime de governo: a monárquica ou a republicana.
Talvez seja oportuno adiantar que as coisas não mudam tanto como parece à primeira vista, a não ser o facto de a Chefatura do Estado, não resultar da condição de nascimento e ser marcada por uma limitação temporal de mandato. Mesmo nos Estados Unidos ou no Brasil, de sistema presidencialista, ou em França, de regime semipresidencialista, mas em que o Presidente coordena no topo o poder executivo, os poderes do Presidente são limitados e os do Parlamento também são meticulosamente escrutinados. E nem sempre o Presidente é eleito por sufrágio universal, direto e secreto (vg Alemanha, Itália e Estados Unidos).
No caso, português, de sistema semipresidencialista, em que os poderes executivos residem na figura do Primeiro-ministro, o ordenamento político-constitucional é, no mínimo, curioso.
Assim, o artigo 120.º da CRP (Constituição da República Portuguesa) estabelece:
O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas”.
Não deixa de ter um papel simbólico e de garante das instituições, como o Rei de Espanha, mas reconhece-se-lhe a prerrogativa de Comandante Supremo das Forças Armadas. Porém, além dos atos formais, dispõe, ao contrário do Rei, do poder de veto político sobre os decretos do Parlamento e do Governo (vd art.os 136.º, 278.º e 279.º), o poder solitário de dissolução do Parlamento e das Assembleias Legislativas das regiões autónomas (vd art.º 172.º e alíneas “e” e “j” do art.º 133.º, bem como o art.º 234.º), embora no respeito pelos condicionalismos estatuídos constitucionalmente, o poder de demitir o Governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado (vd art.º 195.º/2) e a prerrogativa de solicitar ao Tribunal Constitucional a fiscalização prévia dos normativos legais (vd alíneas g e h do art.º 134.º e art.os 278.º e 279.º). De resto, o seu maior poder pessoal é ordinariamente o poder da Palavra, habitualmente designado como magistratura de influência – o que em termos constitucionais fica protegido na prerrogativa de dirigir mensagens à Assembleia da República e às Assembleias Legislativas das regiões autónomas (vd alínea d do art.º 133.º) e “pronunciar-se sobre todas as emergências graves para a vida da República” (vd alínea e do art.º 134.º).
No entanto, a independência nacional pode correr riscos, se os governos continuarem a sujeitar-se acriticamente às indicações internacionais, nomeadamente da UE, da Zona Euro e do FMI, não assumindo a necessária capacidade negocial e a defesa dos interesses dos seus cidadãos. É que, segundo o art.º 182.º da CRP é o Governo o “órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública”.
É certo que o Governo, conforme o estipulado no art.º 190.º, é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República; e, de acordo com o art.º 191.º/1, O Primeiro-Ministro é responsável perante o Presidente da República e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República. Todavia, o Presidente não tem assumido uma postura política além de ou acima do espectro partidário, apesar de a maioria que o elege ficar dissolvida com o ato eleitoral. E a Assembleia da República tende a divagar por temas nem sempre essenciais e os deputados do alinhamento governativo pouco surpreendem no debate, a não ser para elogiar as medidas governamentais ou para arrasar as oposições.
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Postos de parte os fantasmas unionistas ou de conformação religiosa dos Estados ibéricos, centremo-nos nos conteúdos da visita real.
Do lado de Portugal, o Presidente da República manifestou o desejo de que Portugal vá mais longe na cooperação com Espanha. “Portugal e Espanha conhecem-se hoje melhor e trabalham muito melhor em conjunto, mas nem tudo está feito” – sentenciou Cavaco Silva nos brindes do banquete oferecido ao casal régio no Palácio da Queluz. E adiantou que “podemos ir mais longe na nossa cooperação e na nossa coordenação”, assegurando o propósito de manter a ambição e o empenho na construção dum futuro de relações cada vez mais estreitas e frutuosas”.
Por seu lado, Felipe destacou a existência, nas duas sociedades, “de um inaceitável aumento do desemprego”. O monarca revelou que, após a visita ao Papa Francisco, iniciou em Lisboa um périplo pelas capitais dos países vizinhos. E, referindo-se à relação de vizinhança ibérica, sublinhou o “tecido de vínculos de todo o tipo” entre Espanha e Portugal.
No entanto, se Cavaco enalteceu a “renovação geracional” que representa a recente proclamação do novo monarca e enumerou os pontos da cooperação – das trocas comerciais aos fluxos turísticos, das universidades à cultura, dos transportes aos recursos hídricos, da energia à ciência –, Felipe VI focou outros importantes aspetos:
– “A plena superação desta crise [económica] e, em especial, do desemprego, representa um dos principais desafios coletivos dos nossos dois países que tanto os cidadãos portugueses como os espanhóis abordam com coragem, esforço e sacrifício”.
– O compromisso dos dois países “com a democracia, os direitos humanos, a paz, a liberdade, a justiça e a igualdade”, enquanto “guia de atuação dos nossos Estados de direito [...] e da nossa projeção” além-fronteiras.
– Evocando a União Europeia, os dois países “se reencontraram há pouco mais de um quarto de século, depois de muitos anos de trajetórias paralelas, mas sem os devidos lugares de encontro e convergência.”
– E a hospitalidade ao conde de Barcelona, seu avô, no exílio no Estoril durante o franquismo.

Então, que a visita de Estado, longe de ressuscitar fantasmas antigos, consolide a união de interesses económicos e culturais, no respeito pelas diferenças, e constitua um poderoso contraforte da Europa.

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