sexta-feira, 4 de julho de 2014

Tomé, o incrédulo ou o servidor da fé?


Segundo o imaginário popular, para onde se derramou uma certa tradição eclesiástica, decorrente de leitura apressada do texto bíblico, Tomé, que também dá pelo nome de Tomás, é tido geralmente como o apóstolo que duvidou, o incrédulo. Com efeito, no episódio narrado no evangelho de João referente à aparição do Ressuscitado aos discípulos, na tarde do primeiro dia da semana, estando ausente Tomé (Jo 20,19-25) e marcando a sua reação à notícia de que o Senhor estava vivo, este apóstolo define a sua postura: “Se eu não vir o sinal dos pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no seu peito, não acreditarei (Jo 20,24-25). Ora, neste caso, não estamos perante um modelo a seguir. Porém, a apreciação da sua postura não pode circunscrever-se a um episódio, por mais significativo que seja. É, pois, de ter em conta todo o seu percurso de vida e a sua atuação no colégio apostólico.
Foi Tomé quem convidou os outros a acompanharem Jesus para a Judeia, para morrerem com Ele, “Tomé, chamado o Gémeo, incita os companheiros: Vamos nós também, para morrermos com Ele.” (Jo 11,16). Foi uma interpelação de Tomé (“Senhor, não sabemos para onde vais, como podemos nós saber o caminho?”) que levou Jesus a enunciar a sua definição mais emblemática em sentido pragmático: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir até ao Pai senão por mim” (cf Jo 14, 5-7.). E é este apóstolo quem, no seu desenho de incredulidade resoluta, ajuda a fortalecer a adesão discipular ao Mestre Jesus, por meio de uma profissão de fé muito clara e poderosa, oito dias depois (cf Jo 20, 26-29): “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20, 28). São palavras de Tomé que exprimem uma das mais sintéticas formulações de fé em Cristo. Foram proferidas espontaneamente, logo que o Mestre o desafiou exibindo as chagas do martírio do Gólgota e levaram a que o Senhor testificasse a causa da fé do Gémeo, “Porque viste, acreditaste” e formula a grande condição da fé exemplar, “Felizes os que acreditam sem terem visto” (cf Jo 20,29).
Por isso, S. Gregório Magno propõe a incredulidade de Tomé como “mais útil à nossa fé do que a fé dos discípulos crentes” (vd Liturgia das Horas, III). Aproveitando o episódio pascal, João abre uma pista nova para chegar à libertadora experiência da fé em Jesus ressuscitado. Na aparição pascal oitavária aos discípulos, Jesus convida Tomé a percorrer o caminho de busca, que os colegas já tinham feito. Tomé, disponível e dócil à ordem de Jesus, chega a um ato de fé claro e convicto: “Meu Senhor e meu Deus!” E a bem-aventurança que Jesus proclama em seguida, dirige-se a todos aqueles que, percorrendo um itinerário de fé em atitude de completa disponibilidade, chegam a Jesus morto e ressuscitado. Do seu lado, o Padre Dehon apresenta o apóstolo como o primeiro devoto do Coração de Jesus, uma vez que pretendeu contactar fisicamente com Coração trespassado de Cristo – coração trespassado no lado aberto, comparável ao livro escrito por fora e por dentro, referido no Apocalipse, que fala só de amor. (vdwww.dehonianos.org/portal/santoral_ver.asp?liturgiaid=909, ac 21014.07.03).
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Para ilustrar o percurso de vida deste, mais do que homem incrédulo, exímio servidor da fé e do seguimento de Cristo, há que esmiuçar um pouco mais a História de Tomé, nos termos que se explanam a seguir.
Tomé, conhecido por Dídimo (gémeo) foi um dos doze apóstolos originariamente escolhidos por Jesus, segundo os Evangelhos sinóticos e os Atos dos Apóstolos (cf Mt 10,3; Mc 3,18; Lc 6,15; e At 1,13), não sendo abundantes mais registos a seu respeito.
Nos textos extrabíblicos, muito se divaga sobre Tomé. Assim, é de rejeitar a peregrina hipótese de o apóstolo ser filho de Jesus, formulada por Simcha Jacobovici e Charles Pellegrino em seu livro A tumba da família de Jesus, com base no alegado cuidado do Império Romano em eliminar a prole de quem representasse ameaça à soberania imperial – o que, na ótica dos mencionados estudiosos, o filho do Messias, ou seja neste hipotético caso, Tomé, poderia ser morto à ordem das autoridades romanas, já que a sanha do Império visava filho, esposa e neto. Entretanto, irmão não entrava nesse rol, o que fez com que o nome gémeo fosse acrescentado ao de Juda(s) para que não houvesse suspeita sobre a filiação do mesmo. No dito Evangelho de Tomé (escrito apócrifo) Jesus ter-lhe-á dito “Quando éreis um, vos tornaste dois”, criando o entendimento de que Jesus estava na verdade indicando que Juda (s) e Tomé eram a mesma pessoa, dado que Tomé não era nome próprio (prenome, à moda greco-romana), mas a tradução de um adjetivo do aramaico Tau'ma (תום), vertido para o grego como Didymos, nominalizado, que significava “gémeo”. O termo vem aposto ao prenome Juda(s) nalguns textos. Muito se discute de quem esse Judas Tomé seria irmão gémeo. Há quem entenda tratar-se de Judas Tadeu, irmão de  Tiago Menor, tendo-se confundido com uma outra pessoa, apenas porque o seu nome teria surgido algumas vezes com a alcunha de Gémeo, em lugar de Tadeu. Esse entendimento resulta do facto de não haver consenso sobre a identidade e a proveniência de todos os doze apóstolos, havendo indícios neotestamentários de outros possíveis seguidores escolhidos por Jesus para integrarem o grupo dos doze.
O certo é que as tradições católica e ortodoxa, bem como indícios indianos dos católicos nativos de Malabar, com base nas indicações dos antigos martirológios, apoiam a existência do apóstolo Tomé, sua missão evangelizadora e martírio. De facto, no século XVI, os portugueses que chegaram àquele recanto do mundo disseram ter descoberto a cripta do santo, algumas relíquias suas, incluindo um pedaço de uma das lanças com as quais terá sido trespassado e ainda com vestígios de sangue coagulado. Recentemente regista-se um fenómeno curioso: quando do tsunami de dezembro de 2004, que devastou toda aquela zona, o templo que guarda as suas supostas relíquias ficou imune às ondas gigantescas que destruíram todas as construções adjacentes – o que parece reforçar o teor da antiga tradição que reza que um poste fixado pelo apóstolo (ainda existente na atualidade na porta principal do referido templo) limitaria a ação das águas até ao fim dos tempos. O facto deixou os sacerdotes hindus desconcertados, que prometeram não mais perseguir e discriminar os cristãos daquelas paragens.
O Evangelho de Tomé presente na biblioteca de Nag Hammadi inicia-se com estas palavras: Estes são os ditos secretos que o Jesus vivo disse e Judas Tomé Dídimo registou. Tradições sírias referem que o nome completo do apóstolo era Judas Tomé, ou Jude Tomé. Alguns viram no livro Atos de Tomé, escrito na Síria oriental entre os séculos II e III, uma identificação do apóstolo Tomé com o apóstolo Judas Tadeu, filho de Tiago. No entanto, a primeira frase desse Atos de Tomé segue os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos, distinguindo os apóstolos Judas Tomé e Judas Tadeu. Poucos textos identificam o irmão gémeo de Tomé, apesar de, no Livro de Tomé o Adversário, parte dos manuscritos de Nag Hammadi, se afirmar que Jesus era seu irmão.
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Pondo de parte, embora seja interessante para satisfação da curiosidade, o conteúdo do excursus extrabíblico e fixando-nos nas referências bíblicas e na tradição cristã, diga-se que afinal é menor a importância da retenção histórico-popular da dúvida de fé do Dídimo, ao passo que o seu serviço à caminhada da fé cristológica e à formulação do símbolo é visivelmente mais precioso. O repto aos companheiros “Vamos nós também, para morrermos com Ele” pode ser visto como uma antecipação ao conceito teológico paulino de “morrer com Cristo”. Por outro lado, a pergunta, na Última Ceia, sobre o caminho permite, além do que foi dito, perceber o mistério da relação de Cristo com o Pai. E a confissão de fé, após a visão do Ressuscitado desafiante, faz de Tomé o exemplo do crente que, feita a caminhada até à meta, confessa firmemente que Jesus é Senhor e Deus.
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 E, da mesma forma que Pedro e Paulo, colunas da verdade, disseminaram as sementes do cristianismo por Grécia e Roma – e Marcos, pelo Egito, ou João, pela Ásia Menor, Tomé terá levado à Índia a mesma Palavra de Fé, corroborada com o martírio, tal como sucedeu com os outros apóstolos, sendo assim o primeiro dos evangelizadores a levante.
Eusébio de Cesareia cita Orígenes como aquele que afirma ter sido Tomé o apóstolo dos Partos, mas Tomé é mais conhecido como missionário na Índia por meio dos Atos de Tomé, escrito em torno do ano 200. Por seu turno, as várias denominações da moderna Igreja oriental dos Cristãos de São Tomé atribuem suas origens à sua tradição oral, datada de fins do século II, que alega ter Tomé chegado a Maliankara, próxima da vila de Moothakunnam, na região de Paravoor Thaluk, em 52.  
Como sinal das passagens de Tomé pelo mundo, são-lhe atribuídas formas e marcas em pedras que se assemelham a pegadas, algumas de tamanho gigantesco, como o referido na lenda sobre a “pegada” no Pico de Adão (no Sri Lanca). Por sua vez, A passagem de Maria, texto da Alta Idade Média atribuído a José de Arimateia, refere que Tomé fora a única testemunha da Assunção de Maria. Os outros apóstolos terão sido miraculosamente transportados a Jerusalém para observar a sua morte, ao passo que Tomé, que já estava na Índia, após o funeral fora transportado à tumba da Senhora, onde contemplara o corpo de Maria a subir aos céus, jogando-lhe o cinto virginal. Numa ótica de inversão à imagem de ceticismo associada a Tomé, os outros apóstolos é que terão duvidado de seu relato até verem a tumba vazia e o cinto. A receção do cinto por Tomé é representada várias vezes na arte medieval e pré-tridentina.  
Também a Síria dispõe de referências da tradição de Tomé. Costuma mencionar-se a lenda de Abgar V, rei  de Edessa (Urfa), por ter enviado Tadeu de Edessa a pregar naquela cidade mesopotâmica (hoje síria). Santo Efreu, que também conta a lenda, escreveu uma fábula na qual o demónio confessa ter instigado a Morte a assassinar os apóstolos, para ele próprio escapar das investidas apostólicas, mas o apóstolo que o diabo matara na Índia, veio subjugá-lo em Edessa, onde está em plenitude. Assim, a tradição da igreja de Edessa, que afirma Tomé como o Apóstolo da Índia, gerou inúmeras fábulas atribuídas a Santo Efreu. Tais fábulas sustentam a crença de que os ossos de Tomé foram trazidos da Índia a Edessa por um mercador e que as relíquias operam milagres tanto na Índia como em Edessa, pelo que um pontífice determinara o dia dedicado ao santo e a edificação de templo a ele dedicado, o que atraiu a acorrida de peregrinos para sua veneração. 
Mesmo a América alimentou a lenda de que Tomé viera miraculosamente ao continente e teria estabelecido contacto com os indígenas. E, como “prova” da passagem do santo, diversos sinais tidos como pegadas foram atribuídos a Tomé. A figura da mitologia indígena Sumé (visitante branco pré-colombiano) foi fundida com a de São Tomé.
(vd vg: Turner, John D. The Book of Thomas(NHC II,7 138,7-138,12). Retrieved September 10, 2006.).
Não é, pois, sem motivo cristão que o martirológio jeronimiano do século VI coloca no dia 3 de julho a transladação do corpo do apóstolo para Edessa, na atual Turquia. E, por conseguinte, o calendário litúrgico pós-conciliar reserva o dia para celebrar a sua festa de apóstolo e mártir.
É padroeiro dos geólogos, geógrafos, geometristas, arquitetos, construtores e todas pessoas em dúvida – não para que permaneçam na dúvida, mas para que despertem para a fé e percorram o caminho da fé, por mais escolhos que o caminho ostente.

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