Peixe XP
Antes de Constantino Depois de Constantino
← 313 →
A 30 de junho, após a solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, a
Igreja Católica, segundo o calendário romano universal pós-conciliar, celebra
os primeiros Mártires da Igreja de Roma, vítimas da perseguição de Nero,
subsequente ao incêndio de Roma, ocorrido a 19 de julho do ano 64.
Nunca
o seu número foi contabilizado. E dos nomes, a História regista os dos Apóstolos
Pedro e Paulo. Os outros luzem no firmamento eclesial como luminosa constelação
de anónimos. O primeiro ato deste drama
martirológico teve início na noite de 19 de julho daquele predito ano, com os
repetidos toques de trombetas dos vigias postados em pontos-chave da capital do
mundo de então, toques de alerta, bem conhecidos e temidos, logo seguidos dos
primeiros gritos de incêndio.
Numa cidade de Roma superpovoada, com bairros pobres
em que se amontoavam casas de madeira, um incêndio era acidente corriqueiro. Porém,
este logo se revelou dotado de grande poder destruidor. Em poucos minutos, os
brados de “Fogo! Fogo”, cada vez mais alarmantes, espalharam-se pelas ruas do
bairro popular do Grande Circo e, logo depois, por outros. As labaredas
pareciam ter-se estendido simultaneamente por várias zonas habitacionais,
devorando implacavelmente residências e lojas comerciais. Topando no percurso
depósitos de óleo e outros materiais combustíveis, alastraram por toda a urbe e
subúrbios em torno dos montes Palatino e Célio. Quando, ao fim de 6 dias, se extinguiram
os diversos focos de incêndio, haviam sido destruídos 10 dos 14 bairros da metrópole
imperial. Tão pavorosa fora a catástrofe que se tornou impossível calcular o
número de mortos.
Como, durante esses terríveis dias, grandes grupos de
homens terão sido vistos a impedir, por meio de ameaças, a ação de quantos
tentavam jugular o incêndio e mesmo alguns terão sido vistos a atiçar o fogo,
os romanos imediatamente se puseram a proferir doestos contra Nero, a quem
acusavam de ter provocado o incêndio ou de, pelo menos, o ter favorecido. Hoje,
essa acusação deixou de merecer o crédito que tradicionalmente lhe foi
atribuído.
Não obstante, é facto inegável que o Imperador, para
se livrar da incomensurável vaga de indignação contra si levantada, alijou a
culpa para os cristãos. Para o homem que mandara matar a própria mãe, a construção
de tal calúnia pouco lhe pesaria na consciência. Por consequência, Nero mandou
prender, de início, quantos se proclamavam cristãos. Delatores movidos pelos
mais vis interesses logo possibilitaram a prisão de muitos outros. Alguém da
coevidade afirmava ter sido uma grande multidão. Foram todos sumariamente
condenados à morte – o que parece contrariar o propalado rigor do processo
judicial romano – e cruelmente martirizados. Em breve se espalhou pelo Império, à maneira de
aforismo, a palavra de ordem: “Non licet
esse christianus”, não é permitido ser cristão”.
A sanha bimilenária do Príncipe das Trevas e de seus
asseclas humanos está bem espelhada nas cenas brutais e execrandas dessa
primeira perseguição. Não se limitaram os algozes a torturar e, a seguir, decapitar
ou crucificar os putativos criminosos em espetáculos no Circo de Calígula e
Nero, localizado na Colina do Vaticano. “Tudo quanto se pode conceber na
imaginação de um sádico a quem se concedesse plena liberdade para praticar o
mal, foi posto em prática numa atmosfera de pesadelo”, afirma o historiador
Daniel Rops, na sua História da Igreja de
Cristo.
Segundo o referido autor, foi aberto à populaça o
jardim do parque imperial, onde se organizaram “caçadas” em que os alvos eram
cristãos revestidos de peles de animais ferozes para assim serem perseguidos e,
por fim, dilacerados pelos cães. Mulheres eram arremessadas ao ar por brutais
chifradas de touros, numa visual analogia com episódios de fábula mitológica.
Não faltaram sequer ignominiosos ultrajes e atentados à donzelia das meninas. Caindo
a noite, os carrascos ergueram numerosos postes ao longo das diversas alamedas
do parque, nos quais amarraram corpos de cristãos besuntados de resina e pez e
lhes atearam fogo, a fim de servirem de iluminação festiva. Decorado com o
traje de cocheiro, Nero passeava em seu carro puxado a cavalos pelas ditas alamedas
abarrotadas de espectadores deslumbrados e iluminadas por aquelas tochas humanas.
Clemente Romano, o terceiro sucessor de São Pedro,
relata, na sua Epístola aos Coríntios
(capítulos 5 e 6), as horrorosas cenas daquela noite, das quais foi testemunha visual.
E o historiador latino Tácito (Annales
15,44), homem claramente hostil ao Cristianismo, escreveu que tal excesso de
atrocidade acabou por levantar em algumas parcelas da opinião pública um
movimento de piedade para com os cristãos.
***
Naquele tempo, a par da considerável comunidade judaica, em
Roma, vivia a pequena comunidade dos cristãos. Sobre estes pouco conhecidos,
circulavam denominações caluniosas, designadamente: de ateus, porque recusavam
o culto ao Imperador, considerado um deus; de idólatras, porque nas catacumbas
eram encontradas esculturas do Crucificado, perante as quais viram prostrados
os fiéis; de antropófagos, porque diziam comer o corpo de Cristo e beber o Seu
sangue; e de incestuosos, porque se tratavam por irmãos e irmãs e havia
casamento e prole entre eles.
Só a partir do século IV, depois do édito de Milão e do
aparecimento misterioso do lábaro a Constantino, com o sinal da cruz e o
letreiro “in hoc signo vinces”, é que
a cruz passou a ser o símbolo do cristianismo e se inventou o monograma de
Cristo XP, formado pela
sobreposição das duas primeiras letras (digrama) da grafia da palavra grega Cristo (grego: "Χριστός"), chi
= ch e rho = r, de tal forma a produzir
o monograma☧(vd epígrafe). O Chi Rho é uma das primeiras formas de cristograma, e é usado por cristãos.
Embora não seja tecnicamente uma cruz, o Chi Rho evoca a crucificação de Jesus,
bem como simboliza o seu status como
o Cristo, o Messias, o Ungido. Até aí o emblema dos
cristãos (vd epígrafe) era o peixe e o seu símbolo ou marca era Ichthys ou Ichthus
(do grego antigo ἰχθύς, em
maiúsculas ΙΧΘΥΣ ou ΙΧΘΥC, significando “peixe”), mas funcionava como o
acrónimo da expressão “Iēsous Christos Theou Yios Sōtēr”, que significa “Jesus
Cristo, Filho de Deus, Salvador” (em grego antigo, Ἰησοῦς Χριστός, Θεοῦ ͑Υιός,
Σωτήρ).
A sua doutrina
não é conquista do génio inquieto de homens perscrutadores; nem professam, como
fazem alguns, um sistema filosófico humano.
Vivendo em
cidades gregas ou bárbaras, conforme a sorte reserva a cada um, e adaptando-se
às tradições locais quanto às roupas, à alimentação e a tudo o mais da vida,
dão exemplo de estilo próprio de vida social maravilhosa, que, segundo a
confissão de todos, tem em si qualquer coisa de incrível.
Vivem na sua
respetiva pátria, mas como estrangeiros. Participam de todos os deveres como
cidadãos e suportam as obrigações como estrangeiros. Qualquer terra estrangeira
é pátria para eles e qualquer pátria lhes é terra estrangeira. Casam-se como
todos os outros e geram filhos, mas não os abandonam. Têm em comum a mesa, mas
não o leito. Vivem na carne, mas não segundo a carne. Passam sua vida na terra,
mas são cidadãos do céu. Observam
as leis estabelecidas, mas com seu modo de vida as superam. Amam a todos e por
todos são perseguidos.
Não são
conhecidos e são condenados. Dá-se-lhes a morte, e eles dela recebem a vida.
São pobres, mas a muitos tornam ricos. Nada possuem, mas têm tudo em
abundância.
São desprezados,
mas encontram no desprezo a glória diante de Deus. Ultraja-se a sua honra e
acrescenta-se testemunho à sua inocência. Insultados,
abençoam. Demonstram-se insolentes com eles, e eles tratam-nos com respeito.
Fazem o bem e são punidos como malfeitores. E, punidos, gozam como se lhes
dessem vida. Os judeus fazem-lhes guerra como raça estrangeira. Os gregos
perseguem-nos, mas aqueles que os odeiam não sabem dizer o motivo de seu ódio. Para dizer com uma só palavra, os
cristãos estão no mundo como a alma está no corpo. (da Carta a Diagoneto, sec. II e III).
***
Nero descarregou sobre os cristãos, com a sua fúria e hipocrisia,
as acusações a si feitas, condenando-os a cruéis sacrifícios. E teve a
responsabilidade de haver dado início à absurda hostilidade do povo romano, que
até aí era muito tolerante em matéria de religião, sobretudo em relação aos
cristãos: a ferocidade com que fustigou os presumíveis incendiários não
encontra justificação no supremo interesse do império. Aquela perseguição não
se circunscreveu ao ano incendial de 64, mas estendeu-se ao ano 67.
Dos mártires no circo de Nero destacam-se, como já foi referido,
os Apóstolos São Pedro e São Paulo, que foram presos e
encerrados no cárcere Mamertino, onde não cessaram de fazer o seu apostolado, vindo
a conseguir até a conversão dos próprios carcereiros. Pedro, o Príncipe dos Apóstolos foi crucificado (de cabeça para
baixo, a seu pedido, por não se julgar digno de morrer como Cristo) e sepultado
no lugar onde se erigiu a sumptuosa basílica de São Pedro, e Paulo, o Apóstolo
dos Gentios, foi decapitado nas Águas Salvianas (evitou a crucifixão apoiado no
estatuto de cidadão romano) e sepultado na via Ostiense, no lugar onde se encontra a magnífica Basílica de São Paulo
Extramuros.
A esta primeira perseguição sucederam-se mais nove, ao
longo dos 250 anos subsequentes, até que Constantino deu a paz à Igreja, em
313. Calcula-se que, nessa fase da Igreja, 6 milhões de mártires terão selado
com a morte a sua fé em Jesus Cristo, ou seja, em média, 24 mil por ano, 66 por
dia.
“O sangue dos mártires é semente de novos cristãos” (sanguis martyrum semen christianorum),
como escreve Tertuliano. Esse sangue que regou e empapou a terra nos primeiros
séculos do Cristianismo continua a produzir seus frutos até hoje, e assim será
até ao dia em que a humanidade inteira for convocada para o derradeiro ato da
História, quando o Cristo Glorioso ditar a última sentença: “Vinde, benditos de
meu Pai”... “Afastai-vos de mim, malditos” (Mt 25, 34.41).
***
Referida que foi a primeira perseguição massiva aos
cristãos, há que recordar que, logo após o nascimento de Cristo, se deu o
martírio dos santos inocentes, pela
sanha de Herodes a descarregar-se sobre as crianças com menos de dois anos de
idade, e que o primeiro mártir do cristianismo foi o diácono Estêvão. E ao martírio do protomártir dos
cristãos seguiram-se outros diversos. Só que o martírio dos primeiros cristãos
não advinha dos pagãos, mas dos judeus, mesmo na diáspora, já que os seguidores
de Jesus apresentavam como Messias e
Senhor aquele cuja crucifixão as autoridades políticas e religiosas do
judaísmo solicitaram ao poder romano, exatamente por se afirmar filho de Deus.
Aqueles que não aceitavam Jesus de Nazaré como o Messias que havia de vir, não
podiam tolerar nem a denominação de “deicidas” nem a profanação da Torá, da Sinagoga
e do Templo por este grupo pusilânime. Paulo, que passou a ser vaso da eleição
divina e o Apóstolo dos Gentios, até à visão da estrada de Damasco, fora feroz
perseguidor de Jesus nas pessoas dos cristãos.
Por outro lado, não se podem olvidar os factos que dão
conta da intensa e alargada perseguição aos cristãos na atualidade. O próprio
Papa Francisco a denuncia:
“Os cristãos perseguidos são uma preocupação
que me toca de perto como pastor. Sei de muitas coisas sobre perseguições que
não me parece prudente contar aqui para não ofender ninguém. Mas, em alguns
locais é proibido ter uma Bíblia ou ensinar o catecismo ou levar uma cruz… Mas
quero deixar claro uma coisa: estou convencido de que a perseguição contra os
cristãos, hoje, é mais forte que nos primeiros séculos da Igreja. Hoje, há mais
cristãos mártires do que naquela época. E não é por fantasia, é por números”.
(vd La Vanguardia,
13-06-2014).
Devem, ainda, acrescentar-se os inúmeros casos de
vedação de acesso à profissão, a desempenho de cargo público, precarização no
trabalho e até despedimento; de ridicularização e chacota pelo facto de adesão pública
à fé cristã ou suspeita de prestação privada do culto; e de anulação de meios
de expressão da doutrina e do culto, como ataque a boletins e estações de inspiração
cristã, destruição, danificação e abandono de templos, proibição e
condicionamento de procissões, etc.
Sem comentários:
Enviar um comentário