segunda-feira, 30 de junho de 2014

Os Santos Protomártires da Igreja de Roma

Peixe         XP    
Antes de Constantino          Depois de Constantino
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A 30 de junho, após a solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, a Igreja Católica, segundo o calendário romano universal pós-conciliar, celebra os primeiros Mártires da Igreja de Roma, vítimas da perseguição de Nero, subsequente ao incêndio de Roma, ocorrido a 19 de julho do ano 64.
Nunca o seu número foi contabilizado. E dos nomes, a História regista os dos Apóstolos Pedro e Paulo. Os outros luzem no firmamento eclesial como luminosa constelação de anónimos. O primeiro ato deste drama martirológico teve início na noite de 19 de julho daquele predito ano, com os repetidos toques de trombetas dos vigias postados em pontos-chave da capital do mundo de então, toques de alerta, bem conhecidos e temidos, logo seguidos dos primeiros gritos de incêndio.
Numa cidade de Roma superpovoada, com bairros pobres em que se amontoavam casas de madeira, um incêndio era acidente corriqueiro. Porém, este logo se revelou dotado de grande poder destruidor. Em poucos minutos, os brados de “Fogo! Fogo”, cada vez mais alarmantes, espalharam-se pelas ruas do bairro popular do Grande Circo e, logo depois, por outros. As labaredas pareciam ter-se estendido simultaneamente por várias zonas habitacionais, devorando implacavelmente residências e lojas comerciais. Topando no percurso depósitos de óleo e outros materiais combustíveis, alastraram por toda a urbe e subúrbios em torno dos montes Palatino e Célio. Quando, ao fim de 6 dias, se extinguiram os diversos focos de incêndio, haviam sido destruídos 10 dos 14 bairros da metrópole imperial. Tão pavorosa fora a catástrofe que se tornou impossível calcular o número de mortos.
Como, durante esses terríveis dias, grandes grupos de homens terão sido vistos a impedir, por meio de ameaças, a ação de quantos tentavam jugular o incêndio e mesmo alguns terão sido vistos a atiçar o fogo, os romanos imediatamente se puseram a proferir doestos contra Nero, a quem acusavam de ter provocado o incêndio ou de, pelo menos, o ter favorecido. Hoje, essa acusação deixou de merecer o crédito que tradicionalmente lhe foi atribuído.
Não obstante, é facto inegável que o Imperador, para se livrar da incomensurável vaga de indignação contra si levantada, alijou a culpa para os cristãos. Para o homem que mandara matar a própria mãe, a construção de tal calúnia pouco lhe pesaria na consciência. Por consequência, Nero mandou prender, de início, quantos se proclamavam cristãos. Delatores movidos pelos mais vis interesses logo possibilitaram a prisão de muitos outros. Alguém da coevidade afirmava ter sido uma grande multidão. Foram todos sumariamente condenados à morte – o que parece contrariar o propalado rigor do processo judicial romano – e cruelmente martirizados. Em breve se espalhou pelo Império, à maneira de aforismo, a palavra de ordem: “Non licet esse christianus”, não é permitido ser cristão”.
A sanha bimilenária do Príncipe das Trevas e de seus asseclas humanos está bem espelhada nas cenas brutais e execrandas dessa primeira perseguição. Não se limitaram os algozes a torturar e, a seguir, decapitar ou crucificar os putativos criminosos em espetáculos no Circo de Calígula e Nero, localizado na Colina do Vaticano. “Tudo quanto se pode conceber na imaginação de um sádico a quem se concedesse plena liberdade para praticar o mal, foi posto em prática numa atmosfera de pesadelo”, afirma o historiador Daniel Rops, na sua História da Igreja de Cristo.
Segundo o referido autor, foi aberto à populaça o jardim do parque imperial, onde se organizaram “caçadas” em que os alvos eram cristãos revestidos de peles de animais ferozes para assim serem perseguidos e, por fim, dilacerados pelos cães. Mulheres eram arremessadas ao ar por brutais chifradas de touros, numa visual analogia com episódios de fábula mitológica. Não faltaram sequer ignominiosos ultrajes e atentados à donzelia das meninas. Caindo a noite, os carrascos ergueram numerosos postes ao longo das diversas alamedas do parque, nos quais amarraram corpos de cristãos besuntados de resina e pez e lhes atearam fogo, a fim de servirem de iluminação festiva. Decorado com o traje de cocheiro, Nero passeava em seu carro puxado a cavalos pelas ditas alamedas abarrotadas de espectadores deslumbrados e iluminadas por aquelas tochas humanas.
Clemente Romano, o terceiro sucessor de São Pedro, relata, na sua Epístola aos Coríntios (capítulos 5 e 6), as horrorosas cenas daquela noite, das quais foi testemunha visual. E o historiador latino Tácito (Annales 15,44), homem claramente hostil ao Cristianismo, escreveu que tal excesso de atrocidade acabou por levantar em algumas parcelas da opinião pública um movimento de piedade para com os cristãos.
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Naquele tempo, a par da considerável comunidade judaica, em Roma, vivia a pequena comunidade dos cristãos. Sobre estes pouco conhecidos, circulavam denominações caluniosas, designadamente: de ateus, porque recusavam o culto ao Imperador, considerado um deus; de idólatras, porque nas catacumbas eram encontradas esculturas do Crucificado, perante as quais viram prostrados os fiéis; de antropófagos, porque diziam comer o corpo de Cristo e beber o Seu sangue; e de incestuosos, porque se tratavam por irmãos e irmãs e havia casamento e prole entre eles.
Só a partir do século IV, depois do édito de Milão e do aparecimento misterioso do lábaro a Constantino, com o sinal da cruz e o letreiro “in hoc signo vinces”, é que a cruz passou a ser o símbolo do cristianismo e se inventou o monograma de Cristo XP, formado pela sobreposição das duas primeiras letras (digrama) da grafia da palavra grega Cristo (grego: "Χριστός"), chi = ch  e rho = r, de tal forma a produzir o monograma(vd epígrafe). O Chi Rho é uma das primeiras formas de cristograma, e é usado por cristãos. Embora não seja tecnicamente uma cruz, o Chi Rho evoca a crucificação de Jesus, bem como simboliza o seu status como o Cristo, o Messias, o Ungido. Até aí o emblema dos cristãos (vd epígrafe) era o peixe e o seu símbolo ou marca era Ichthys ou Ichthus (do grego antigo ἰχθύς, em maiúsculas ΙΧΘΥΣ ou ΙΧΘΥC, significando “peixe”), mas funcionava como o acrónimo da expressão “Iēsous Christos Theou Yios Sōtēr”, que significa “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador” (em grego antigo, Ἰησοῦς Χριστός, Θεοῦ ͑Υιός, Σωτήρ).
A sua doutrina não é conquista do génio inquieto de homens perscrutadores; nem professam, como fazem alguns, um sistema filosófico humano.
Vivendo em cidades gregas ou bárbaras, conforme a sorte reserva a cada um, e adaptando-se às tradições locais quanto às roupas, à alimentação e a tudo o mais da vida, dão exemplo de estilo próprio de vida social maravilhosa, que, segundo a confissão de todos, tem em si qualquer coisa de incrível. 
Vivem na sua respetiva pátria, mas como estrangeiros. Participam de todos os deveres como cidadãos e suportam as obrigações como estrangeiros. Qualquer terra estrangeira é pátria para eles e qualquer pátria lhes é terra estrangeira. Casam-se como todos os outros e geram filhos, mas não os abandonam. Têm em comum a mesa, mas não o leito. Vivem na carne, mas não segundo a carne. Passam sua vida na terra, mas são cidadãos do céu. Observam as leis estabelecidas, mas com seu modo de vida as superam. Amam a todos e por todos são perseguidos.
Não são conhecidos e são condenados. Dá-se-lhes a morte, e eles dela recebem a vida. São pobres, mas a muitos tornam ricos. Nada possuem, mas têm tudo em abundância.
São desprezados, mas encontram no desprezo a glória diante de Deus. Ultraja-se a sua honra e acrescenta-se testemunho à sua inocência. Insultados, abençoam. Demonstram-se insolentes com eles, e eles tratam-nos com respeito. Fazem o bem e são punidos como malfeitores. E, punidos, gozam como se lhes dessem vida. Os judeus fazem-lhes guerra como raça estrangeira. Os gregos perseguem-nos, mas aqueles que os odeiam não sabem dizer o motivo de seu ódio. Para dizer com uma só palavra, os cristãos estão no mundo como a alma está no corpo. (da Carta a Diagoneto, sec. II e III).

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Nero descarregou sobre os cristãos, com a sua fúria e hipocrisia, as acusações a si feitas, condenando-os a cruéis sacrifícios. E teve a responsabilidade de haver dado início à absurda hostilidade do povo romano, que até aí era muito tolerante em matéria de religião, sobretudo em relação aos cristãos: a ferocidade com que fustigou os presumíveis incendiários não encontra justificação no supremo interesse do império. Aquela perseguição não se circunscreveu ao ano incendial de 64, mas estendeu-se ao ano 67.
Dos mártires no circo de Nero destacam-se, como já foi referido, os Apóstolos São Pedro e São Paulo, que foram presos e encerrados no cárcere Mamertino, onde não cessaram de fazer o seu apostolado, vindo a conseguir até a conversão dos próprios carcereiros. Pedro, o Príncipe dos Apóstolos foi crucificado (de cabeça para baixo, a seu pedido, por não se julgar digno de morrer como Cristo) e sepultado no lugar onde se erigiu a sumptuosa basílica de São Pedro, e Paulo, o Apóstolo dos Gentios, foi decapitado nas Águas Salvianas (evitou a crucifixão apoiado no estatuto de cidadão romano) e sepultado na via Ostiense, no lugar onde se encontra a magnífica Basílica de São Paulo Extramuros.
A esta primeira perseguição sucederam-se mais nove, ao longo dos 250 anos subsequentes, até que Constantino deu a paz à Igreja, em 313. Calcula-se que, nessa fase da Igreja, 6 milhões de mártires terão selado com a morte a sua fé em Jesus Cristo, ou seja, em média, 24 mil por ano, 66 por dia.
“O sangue dos mártires é semente de novos cristãos” (sanguis martyrum semen christianorum), como escreve Tertuliano. Esse sangue que regou e empapou a terra nos primeiros séculos do Cristianismo continua a produzir seus frutos até hoje, e assim será até ao dia em que a humanidade inteira for convocada para o derradeiro ato da História, quando o Cristo Glorioso ditar a última sentença: “Vinde, benditos de meu Pai”... “Afastai-vos de mim, malditos” (Mt 25, 34.41).
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Referida que foi a primeira perseguição massiva aos cristãos, há que recordar que, logo após o nascimento de Cristo, se deu o martírio dos santos inocentes, pela sanha de Herodes a descarregar-se sobre as crianças com menos de dois anos de idade, e que o primeiro mártir do cristianismo foi o diácono Estêvão. E ao martírio do protomártir dos cristãos seguiram-se outros diversos. Só que o martírio dos primeiros cristãos não advinha dos pagãos, mas dos judeus, mesmo na diáspora, já que os seguidores de Jesus apresentavam como Messias e Senhor aquele cuja crucifixão as autoridades políticas e religiosas do judaísmo solicitaram ao poder romano, exatamente por se afirmar filho de Deus. Aqueles que não aceitavam Jesus de Nazaré como o Messias que havia de vir, não podiam tolerar nem a denominação de “deicidas” nem a profanação da Torá, da Sinagoga e do Templo por este grupo pusilânime. Paulo, que passou a ser vaso da eleição divina e o Apóstolo dos Gentios, até à visão da estrada de Damasco, fora feroz perseguidor de Jesus nas pessoas dos cristãos.
Por outro lado, não se podem olvidar os factos que dão conta da intensa e alargada perseguição aos cristãos na atualidade. O próprio Papa Francisco a denuncia:
“Os cristãos perseguidos são uma preocupação que me toca de perto como pastor. Sei de muitas coisas sobre perseguições que não me parece prudente contar aqui para não ofender ninguém. Mas, em alguns locais é proibido ter uma Bíblia ou ensinar o catecismo ou levar uma cruz… Mas quero deixar claro uma coisa: estou convencido de que a perseguição contra os cristãos, hoje, é mais forte que nos primeiros séculos da Igreja. Hoje, há mais cristãos mártires do que naquela época. E não é por fantasia, é por números”. (vd La Vanguardia, 13-06-2014).

Devem, ainda, acrescentar-se os inúmeros casos de vedação de acesso à profissão, a desempenho de cargo público, precarização no trabalho e até despedimento; de ridicularização e chacota pelo facto de adesão pública à fé cristã ou suspeita de prestação privada do culto; e de anulação de meios de expressão da doutrina e do culto, como ataque a boletins e estações de inspiração cristã, destruição, danificação e abandono de templos, proibição e condicionamento de procissões, etc.

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