segunda-feira, 2 de junho de 2014

A propósito do Dia Mundial da Criança

Em Portugal, como em muitos outros países (cerca de 50) e como vem sendo hábito, celebrou-se, a um de junho, o Dia da Criança. No entanto, o Dia Mundial da Criança é oficialmente o dia 20 de novembro, data que a ONU reconhece como dia universal das crianças por ser o dia em que foram aprovados dois documentos fundamentais para o estatuto da criança, a saber: a declaração dos direitos da criança, em 1959; e a convenção dos direitos da criança, em 1989.
Porém, a data efetiva da comemoração varia de país para país, par razões de interesse nacional ou por motivos comerciais; e, como se referiu, Portugal é um dos países que celebra a efeméride a no dia primeiro de junho, enquanto outros o fazem no primeiro domingo de junho. A razão de ser da comemoração nos primeiros dias de junho prende-se, em países de tradição católica, com o facto de ocorrer no rescaldo do mês de maio, que é dedicado a Maria, a mãe de Jesus e considerada a mãe espiritual de todas as crianças, e a todo o ambiente de pujança primaveril amadurecida. Por outro lado, em 1950, o dia da criança foi celebrado em todo o mundo a um de junho. Ora, o que importa é que efetivamente o dia seja celebrado; e não por motivos meramente comerciais, como sucede em tantos casos, mas por razões significativas atinentes às problemáticas da dignidade da criança.
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À luz da dignidade inerente à vida e integridade de todas as crianças, o MAAC (Movimento de Apostolado de Adolescentes e Crianças), organismo ligado à Igreja Católica, publicou no dia da criança uma mensagem em que expressa a sua grande preocupação pelas situações de violência que se têm abatido sobre os mais novos, designadamente as “marcas profundas” que as agressões físicas, verbais e psicológicas do bullying ou fenómenos como “a violência doméstica” e “a pedofilia” deixam “no mais íntimo de cada criança e adolescente”.
A mensagem do MAAC surge na sequência de uma reflexão feita nos vários grupos do movimento, com as crianças e os adolescentes. Dessa reflexão resulta um levantamento de causas de mal-estar vivenciado por muitas crianças e adolescentes, em que sobressaem: o desemprego dos pais; o desentendimento entre o casal; a falta de confiança; a solidão”; a procura de afirmação de “superioridade”, da parte “de algumas pessoas e até dos amigos da escola”; ou “a ilusão de encontrar amizades verdadeiras”. Poderíamos acrescentar outras, como a violência de rua, a tentação de experimentar o que se vê em televisão, a exploração do trabalho infantil, a falta de expectativas sobre o futuro, a degradação do ambiente escolar e a deficiência de acolhimento dos mais débeis por falta da autoridade dos agentes do Estado e míngua de recursos da parte da instituições vocacionadas para o apoio às crianças.
Por outro lado, o facto de não terem voz ativa, terem medo e vergonha de denunciar as situações de abusos sexuais – a que são inicialmente aliciados de modo cativante e irresistível – provoca um enorme sofrimento em muitas destas crianças e consequências diversas como: o isolamento, o medo de ir para a escola; o receio em falar aos pais por medo de sofrerem represálias dos agressores; o insucesso escolar e educativo.
O MAAC, na sua atenta análise, infere que a pobreza, em virtude do desemprego, que atinge hoje milhares de portugueses, é “outro problema sentido fortemente hoje pelas crianças no país”, de que resultam factos consequenciais que atingem crianças e adolescentes, perante estas realidades, se tornam “tristes, assustados e até com tendências para o suicídio”, sobretudo se a situação vivida pelos pais se afigura sem retorno.
Reconhecendo a extensão internacional do fenómeno, a MAAC olha também o que se passa no resto do mundo em que as novas gerações veem o seu futuro adiado e os seus “direitos fundamentais” ameaçados por situações de conflito, como na Síria, de que surgem grupos numerosos de refugiados, e por “redes organizadas” de escravatura, exploração e tráfico humano. Mais: é enorme a “pressão” a que estão hoje sujeitas “muitas crianças e jovens”, no meio de “uma sociedade cada vez mais competitiva e cruel, que lhes retira tempo para brincar, conviver com outros, para crescer” normalmente.
Por isso, este movimento de apostolado deixa algumas propostas para inverter esta conjuntura, que condiciona o desenvolvimento dos mais novos.
Assim, é essencial a insistência na construção de uma sociedade onde “se dê tempo às crianças para serem simplesmente crianças, para brincarem, para viverem o respeito, o amor, a partilha no seio das suas relações familiares e sociais”, afastando de vez toda a situação de exploração infantil. É urgente evitar que os mais novos fiquem sujeitos “à violência e à privação” da guerra e reconhecer “cada criança como protagonista na construção de uma sociedade mais justa e fraterna”, escutando as suas autênticas aspirações e opiniões e valorizando as suas iniciativas de cidadania.
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Por outro lado e por mim, devo dizer que é necessário educar as crianças e os adolescentes numa perspetiva de desenvolvimento integral e integrador a nível pessoal e social, em que sejam cultivadas as relações interpessoais, a obrigação da verdade, o espírito de tolerância e respeito mútuos, se atinjam patamares de excelência no âmbito dos valores, atitudes e comportamentos e no quadro da procura dos conhecimentos e sua aplicação nas diversas situações em que eles devam ser mobilizados. Tudo isto na certeza de que ao quadro da diciologia corresponde um quadro não menos importante de parâmetros deônticos. Por outro lado, arredando de vez a tentação da exploração do trabalho infantil, mesmo em novelas televisivas, é conveniente apostar na educação pelo trabalho e pela arte e promover menos tardiamente a iniciação profissional.
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Nesse sentido, apraz-me citar a iniciativa que o Vaticano desenvolveu a 31 de maio com cerca de 500 crianças da periferia de Nápoles e Roma (de 6 escolas marcadas pelo risco do abandono escolar), numa organização do Pontifício Conselho para a Cultura, no âmbito do projeto “Pátio das Crianças”. O Papa Francisco recebeu-as, falou-lhes e convidou-as à confiança no Amor de Deus.
“Quando estamos na escuridão, caminhamos em direção à luz. Mas dentro de nós: sempre. E todos nós temos a possibilidade de encontrar a luz”, afirmou o Papa, reforçando o conceito de Deus como “amor”.
Através da técnica de pergunta-resposta, Francisco explicou que as catacumbas são sinónimo de trevas e que a escuridão é feita para a luz – luz que está dentro de nós, que nos dá alegria e esperança. Ficam para reflexão dois exemplos da utilização desta técnica usada por Bergoglio:
“Quando o Apóstolo João, que era muito amigo de Jesus, queria dizer quem era Deus, sabem o que ele disse? “Deus é amor”. E nós vamos rumo à luz para encontrar o amor de Deus.”
“Mas o amor de Deus também está dentro de nós, nos momentos escuros? Sim, sempre. O amor de Deus jamais nos abandona. Está sempre connosco. Tenhamos confiança neste amor”.
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Entretanto, nunca podemos esquecer que toda a criança tem direitos e eles vêm inscritos e reconhecidos naqueles supramencionados documentos da ONU. Retenhamos, embora meramente de forma epigráfica, os princípios axiomáticos, como que constituindo um decálogo, em torno dos quais gravitam os direitos constantes da declaração dos direitos da criança:
Direito à igualdade, sem distinção de raça, religião ou nacionalidade;
Direito a especial proteção para o seu desenvolvimento físico, mental e social;
Direito a um nome e a uma nacionalidade;
Direito à alimentação, moradia e assistência médica adequadas para a criança e a mãe;
Direito à educação e a cuidados especiais para a criança física ou mentalmente deficiente;
Direito ao amor e à compreensão por parte dos pais e da sociedade;
Direito à educação gratuita e ao lazer infantil.
Direito a ser socorrido em primeiro lugar, em caso de catástrofes;
Direito a ser protegido contra o abandono e a exploração no trabalho;
Direito a crescer dentro de um espírito de solidariedade, compreensão, amizade e justiça entre os povos.
Por seu turno, a convenção dos direitos da criança (CDC), que surge 30 anos depois da declaração, configura um tratado internacional que se assume como importante e significativo instrumento legal, devido ao seu carácter universal e também ao facto de ter sido ratificado pela quase totalidade dos Estados do mundo (192). O documento que enuncia um amplo conjunto de direitos fundamentais – direitos civis e políticos, e também direitos económicos, sociais e culturais – de todas as crianças, bem como as respetivas disposições para que sejam aplicados. A CDC não é apenas uma declaração de princípios gerais, uma vez que, após a ratificação (Portugal ratificou-a em 21 de setembro de 1990), representa um vínculo jurídico para os Estados que a ela aderem, os quais devem adequar as normas de direito interno às da convenção, para a promoção e proteção eficaz dos direitos e liberdades nela consagrados.
Aqui deixamos uma pequena súmula.
A CDC assenta, ideológica e estruturalmente, em quatro pilares fundamentais que se relacionam com todos os outros direitos das crianças:
 – A não discriminação, que significa que todas as crianças têm o direito de desenvolver todo o seu potencial de capacidades e competências, no regime de igualdade de oportunidades – todas as crianças, em todas as circunstâncias, em qualquer momento, em qualquer parte do mundo;
– O interesse superior da criança, que deve ser a consideração prioritária em todas as ações e decisões que lhe digam respeito, sem nunca ficar a camuflar os mesquinhos interesses dos adultos;
– A sobrevivência e desenvolvimento, que sublinham a importância vital da garantia de acesso a serviços básicos e à igualdade de oportunidades para que as crianças possam desenvolver-se plena e harmoniosamente;
– A opinião da criança, que significa que a voz das crianças deve ser ouvida e tida em conta em todos os assuntos que se relacionem com os seus direitos, embora tendo em conta a equidade e proporcionalidade frente às diversas situações sociais e económicas, sem necessidades de britar as estruturas organizacionais.
Os 54 artigos da CDC podem ser agrupados em quatro categorias de direitos:
Os respeitantes à sobrevivência  (ex. o direito a cuidados adequados);
Os respeitantes ao desenvolvimento  (ex. o direito à educação);
Os respeitantes à proteção  (ex. o direito de ser protegida contra a exploração);
Os respeitantes à participação  (ex. o direito de exprimir a sua própria opinião.
Perante tal panóplia legislativa, temos que nos interrogar como é que continua a exploração do trabalho infantil, a exploração publicitária e ficcional, o tráfico de crianças, a pedofilia e outras modalidades de abuso sexual, a mobilização dos meninos-soldados, o retardamento da iniciação à formação profissional.
É imenso o campo de prevenção, educação e combate que têm diante de si as famílias, as escolas, as associações cívicas, os partidos, as Igrejas, os Estados, em temos do desenvolvimento sadio das crianças e adolescentes. Faz falta a educação para a paz, que passa pelo respeito pelas autoridades, pais e professores, família e Igrejas.
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Paralelamente, a APFN (Associação Portuguesa das Famílias Numerosas), no último dia de maio, revelou a pretensão de criar o “dia dos irmãos”, a celebrar a 31 de maio, e lançou uma petição pública para depois entregar na Assembleia da República. O comunicado distribuído justifica:
“Os irmãos são os nossos mais próximos. Crescemos com eles, na família, numa teia de cumplicidades e vivências comuns. O que vivemos entre irmãos é único, irrepetível, molda a nossa vida para sempre”.
Recordando o recentemente falecido fundador e presidente da APFN, Fernando Ribeiro e Castro, a petição cita a frase, da sua autoria, que marca o espírito da iniciativa e celebração:
“Se queres ver uma criança feliz, dá-lhe um irmão. Se queres ver uma criança muito feliz, dá-lhe muitos irmãos.
O 31 de maio foi o dia escolhido para celebrar o “dia dos irmãos” por se tratar de uma festa de família. Ora, “como o Dia da Mãe, em Portugal, ocorre no primeiro domingo de maio e o Dia Internacional da Família, a 15 de maio, encerrar o mês, no dia 31 de maio, com a festa do Dia dos Irmãos é fechar o mês com chave de ouro, exaltando uma das mais fortes relações de geração e sustentação familiares” – reza o preâmbulo da referida petição pública. 
Outro motivo razão para a escolha desta data é o facto de ser a véspera da celebração do dia mundial da Criança, 1 de junho, o que “proporciona, por coincidência, uma sequência bem feliz e inspiradora à luz da frase emblema do dia.”
A petição, lançada no passado dia 27, conta já com mais de 650 assinaturas e está aberta a subscrição de quem o entender que o deve fazer, já que todas iniciativas que surjam em prol da natalidade serão bem-vindas num país cuja população parece estar envias de extinção.
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Importa, pois, que o dia da criança não se tenha reduzido a um painel de troca de prendas ou de iniciativas de sentido oco, mas que tenha redundado em atividades de festa, sim, mas sobretudo de reflexão sobre o muito que há a fazer no âmbito da educação/prevenção, correção/combate em prol da criança e da sociedade cujo futuro lhe será confiado.

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