segunda-feira, 9 de junho de 2014

A iniquidade da guerrilha entre órgãos de soberania

Será que os atuais agentes e fautores da guerrilha entre órgãos de soberania desejam a regressão civilizacional político-jurídica? Ficaram encantados com ditaduras de tipo chinês, sul-americano, afro-asiático, czarino-soviético – em que os órgãos existem, mas sem poder?
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Quando as leis emanavam diretamente da divindade, todos os seres humanos lhes estavam sujeitos, pudera, não?! Ninguém estava acima da lei, ninguém ficava fora da lei. Isto era pacificamente sabido e assumido nas civilizações antigas, em que os sacerdotes comunicavam as leis e lhes geriam o cumprimento, e a Torá bíblica, outorgada por Deus a Moisés e sucessores em liderança (Josué, juízes, reis, profetas, sábios…), a todos obrigava, mostrando-se como caminho de vida e liberdade, frente ao caminho da morte, trilhado pelos que recusassem o cumprimento da lei.
Cedo, porém, as coisas se alteraram quando líderes de topo se arvoravam em deuses. Estes, como é óbvio, declararam-se superiores à lei e, por outro lado, a lei era aplicada aos súbditos, aos seres humanos, ficando fora de lei aqueles e aquelas que não eram considerados pessoas. Estes, por conseguinte, coisificados como eram, recebiam o tratamento de coisas de que o senhor, como seu proprietário, podia dispor a capricho; e, se resistiam com a força ou a agilidade do animal, eram submetidos ao tratamento adequado à condição do resistente sem direitos. E assim surgiram na sociedade aqueles que estavam acima das leis, os deuses e aqueles que na sua circunscrição a eles se equiparavam, e os fora de lei, os não cidadãos. E os estrangeiros, por não pertencerem ao povo, também não eram tratados segundo a lei: ou eram votados ao desprezo, não viessem as retaliações dos povos de origem, ou eram tratados com hostilidade. Não é sem razão que o discurso bíblico clama por tratamento humano episodicamente para com os estrangeiros e recorrentemente para com as mulheres, as crianças e os escravos. (vg: Lv 19,10.20-22.33-34; Dt 24,17-18; 26,12; Lc 18,15-17; Gl 3,28).
A tradição eclesiástica herdou, alegadamente do direito romano, o princípio de que o legislador não está sujeito à lei. E, brincando, alguns estudantes de teologia em seminário diziam que o Papa poderia casar, já que, sendo o celibato eclesiástico produto de uma disposição legística da Igreja, o Papa como supremo legislador não está sujeito à lei eclesiástica. E os alegadamente mais entendidos em História da Igreja referiam o exemplo de papas casados, ao passo que os mais votados à venusta catarinidade da Igreja lá iam rezando que o Papa não o faria para dar exemplo aos sacerdotes.
Ao mesmo tempo, foi crescendo a tentação absolutista régia que perdurou. Os soberanos começaram a deixar de ouvir as Cortes (que, não sendo órgãos deliberativos, constituíam orientação do exercício do poder real). Mas a lei frequentemente era confundida com a vontade do monarca, o qual detinha todo o poder: produzia as leis, instava e geria a sua vigência e julgava os súbditos (habitualmente através de juízes por si nomeados ou eleitos nos concelhos, mas muitas vezes por si diretamente), aplicando o castigo, às vezes, pelas suas próprias mãos e entregava os estrangeiros aos soberanos homólogos. Fernão Lopes, no prólogo da Crónica d’ El Rei Dom Pedro, o justiçoso ou o justiceiro, dá conta dessa confusão de poderes e da lei e príncipe como faces da mesma moeda: “a lei é príncipe sem alma” ao passo que “o príncipe é lei e regra da justiça com alma”. Por estas palavras e por todo o arrazoado do cronista se infere que o monarca, embora reconheça a importância da virtude da justiça no povo e no rei, se coloca acima das leis, que “são a regra do que os súbditos hão de fazer”.
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Esta ordem político-jurídica tem o primeiro óbice de impacto com a “magna carta”. Esta Grande Carta das liberdades ou concórdia entre o rei João e os barões para a outorga das liberdades da Igreja e do reino inglêsconstitui o primeiro documento, de índole constitucional, a colocar em letra de forma direitos do povo (dos cidadãos), limitando o poder régio. O rei da Inglaterra, João sem Terra, não tendo força suficiente para se opor aos barões, assinou-a em 15 de junho de 1215. Daqui ficou estabelecido que o rei devia seguir a lei e não podia mais reinar arbitrariamente.
A Magna Carta, ao livrar da ingerência do monarca os barões e a Igreja Católica, outorgando-lhes a prerrogativa de declaração de guerra ao soberano se este não respeitasse o documento, fez sobressair o poder do direito. Assim, além do mais, garantiu o direito de as mulheres e as crianças herdarem propriedades, como estatuiu que ninguém poderia ser punido por crime que não estivesse previamente tipificado e antes de ser legalmente condenado como culpado. E, sobretudo, serviu de inspiração para a redação das modernas constituições.
Cedo emergiu o Parlamento Inglês (mais tarde, do Reino Unido) como sede do poder legislativo, desempenhando também algumas funções judiciais. O Monarca constitui-se como o mais alto juiz, mas o Conselho Privado também exerce poder sobre algumas jurisdições.
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Entretanto, desenha-se na Europa a teoria da separação dos poderes ou da tripartição dos poderes do Estado, teoria da ciência política que tem origem  nos filósofos gregos Platão e Aristóteles. Porém, quem, pela primeira vez, a expôs de forma coerente e sistematizada foi o filósofo iluminista Charles-Louis de Secondat (Montesquieu), no tratado O Espírito das Leis (1748), com vista à moderação do Poder, especificando as suas diversas funções (doravante poderes) e atribuindo-as a diferentes órgãos, a partir de então órgãos de soberania. As ideias de Montesquieu inspiraram-se nas teses de John Locke, formuladas cerca de cem anos antes.
Analisando as relações das leis com a natureza e com os princípios de cada governo e olhando para a experiência da Inglaterra, Montesquieu explana a teoria de governação que alimenta as ideias do constitucionalismo face ao poder régio absoluto. Advoga, assim, a distribuição da autoridade, de modo a evitar o arbítrio e a violência institucionais. O filósofo político distinguiu cuidadosamente a separação dos poderes em executivo, judiciário e legislativo (que não era clara no parlamento inglês), o que deu azo à elaboração da Constituição dos Estados Unidos. 
Considerando o abuso do poder régio, Montesquieu infere que “só o poder freia o poder” e o seu freamento se consegue com o “sistema de freios e contrapesos”. Daí a necessidade de repartição do Poder em poderes e de cada poder se manter autónomo e ser prerrogativa de pessoas e grupos diferentes: os poderes agiriam como freios mútuos, cada um impedindo que o outro abusasse de suas prerrogativas de poder. O Poder Executivo seria exercido pelo rei (diremos hoje: em República, pelo Presidente), com direito de veto sobre as decisões do órgão legislativo. O Poder Legislativo, convocado pelo executivo, deveria ser distribuído por duas câmaras: o Corpo dos Comuns, composto pelos representantes do povo (eleitos), e o Corpo dos Nobres, formado por nobres, hereditário (os republicanos substituem-no pelo senado de eleitos e/ou designados) e com a faculdade de moderar as disposições do Corpo dos Comuns. Cada uma das câmaras teria assembleia e decisões separadas, interesses e opiniões independentes. 
É que o relevante não é o rei, o chefe de Estado, o órgão de soberania ou a lei. Relevante é o povo constituído em Estado. E o que é o Estado? Marcello Caetano define ESTADO como
Um povo, fixado num território de que é senhor, e que dentro das fronteiras desse território institui, por autoridade própria, órgãos que elaborem as leis necessárias à vida coletiva e imponham a respetiva execução –  (Manual de C. Política e Dir. Constitucional, 6.ª ed., I, pg.122).
Embora aceitável, esta definição é suscetível de aprimoramento, sobretudo no quadro da semântica do poder político. E Freitas do Amaral avança com a seguinte definição:
O Estado é a comunidade constituída por um povo que, a fim de realizar os seus ideais de segurança, justiça e bem-estar, se assenhoreia de um território e nele institui, por autoridade própria, o poder de dirigir os destinos nacionais e de impor as normas necessárias à vida coletiva – (C. de Dir. Ad., Almedina:1996).
Daqui, dois sentidos de Estado: ESTADO-NAÇÃO e ESTADO-PODER. No primeiro sentido, ressalta o Estado como comunidade nacional independente; no segundo, o Estado como organização, aparelho, ou seja, o conjunto de órgãos e instituições, ou os incumbidos de exercer o poder político numa comunidade nacional senhora de um território. Assim vistas as coisas, quem mais ordena é o povo, a comunidade nacional, em quem reside a soberania, o poder político.
A Constituição da República Portuguesa (CRP), à semelhança das congéneres mais recentes, consagra com a da separação, a teoria complementar da interdependência dos poderes. Assumindo, como fundamental, a natureza política de Portugal como “uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular” (art.º 1.º), cuja “soberania, una e indivisível, reside no povo” (art.os 2.º e 3.º), reconhece que “o poder político pertence ao povo” (art.º 108.º) e que “o povo exerce o poder político através de sufrágio universal” (art.º 10.º). E enumera como órgãos de soberania os seguintes: “o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais” (art.º 110.º).
Desta forma, o poder soberano fica distribuído por diferentes órgãos, o que permite o controlo recíproco do exercício das suas competências e garante, à partida, a qualidade da concretização dessas mesmas competências/poder – no quadro do princípio misto da Separação e Interdependência dos Poderes (cf art.º 111.º).
O Presidente da República desempenha funções estritamente políticas (art.os 120.º-140.º): a representação externa do país (art.º 120.º), o controlo da Assembleia da República e do Governo (art.º 133.º), incluindo o poder de dissolver ou demitir (art.º 133.º/e, g, respetivamente).
No atinente à Assembleia da República (art.os 147.º-181.º), cabe-lhe o poder legislativo (discussão e aprovação de projeto de lei, proposta de lei, petição de cidadãos, resolução) e o poder político. O seu poder político (fiscalizador, de censura ou de aceitação do pedido de confiança) incide no controlo sobre o Governo e concernentes atuações legislativas (decreto-lei, proposta de lei…) e limita e/ou condiciona as ações do Presidente da República atinentes à representação do Estado (por via de autorização e, no limite, de destituição).
O Governo (art.os 182.º-201.º), além de funções políticas e legislativas próprias (ou sob autorização parlamentar), superintende na administração pública e pratica atos administrativos.
Os Tribunais têm a função jurisdicional (art.os 202.º-224.º), ou seja, têm o poder de interpretar a lei com vista à sua aplicação: julgar, resolver litígios. Ponderam, determinam e aprovam em conformidade com a convicção que formulam sobre os factos à face da Constituição e das leis.
Se o Presidente (que não se limite a dizer que já avisou) é o garante da independência nacional, da unidade do Estado e do cumprimento da Constituição; se a Assembleia da República é a “casa do povo” (representativa de todos os cidadãos nacionais); e se o Governo é o condutor da política geral do país e da administração – por outro lado, é ao povo que pertence o poder político, o poder de escolher, em liberdade de consciência, responsabilidade cívica, espírito crítico e autónomo, o destino da Nação. É, pois, ao Povo que se imputa a responsabilidade da construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a criação de uma “terra da fraternidade” (Vd Zeca Afonso, Grândola Vila Morena).
Ora, em democracia, o principal instrumento que está nas mãos do povo é o voto. Mas o voto não esgota a capacidade do exercício do poder. O povo tem ao seu dispor a liberdade de crítica através dos órgãos de comunicação, das manifestações, das petições, da missiva aos titulares dos órgãos de soberania, os concursos profissionais e culturais. Por outro lado, a via eleitoral não é a única via de legitimação do exercício do poder e de funções públicas administrativas. Desde que haja um parlamento (ou órgão de natureza similar) eleito diretamente e por escrutínio universal e secreto, o Chefe de Estado pode não provir de eleição direta e universal: pode ser eleito no Parlamento ou num colégio eleitoral mais alargado ou ser um rei. A composição do governo não resulta de eleição direta (tem somente de ter em conta os resultados eleitorais); os quadros técnicos resultam, não de eleição, mas de nomeação transparente e com regras claras, desejavelmente em resultado de concurso público, sob tutela do governo, órgão que superintende na administração. Os juízes administram a justiça “em nome do povo” (art.º 202.º), mas não são eleitos pelo povo, nem o poderão ser em razão da natureza técnica da tramitação da justiça, tal como no atinente aos quadros técnicos.
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Invulgarmente, o atual governo tem desferido ataques sobre ataques de crítica verrinosa ao Tribunal Constitucional (TC), só porque o mesmo tem respondido aos pedidos de apreciação dos normativos legais de forma nem sempre alinhada (ultimamente muitas vezes) com as opções governamentais. E tem-no feito a priori em jeito de aviso ao povo, secundado por fazedores de opinião e por instâncias internacionais; e fá-lo a posteriori, de forma autovitimizadora, dizendo que respeita as suas decisões, mas acenando com medidas mais gravosas em virtude de o TC tentar desfazer com suas decisões o que o governo quer construir. Recentemente começou a pôr em causa a metodologia da eleição dos juízes preceituada pela lei fundamental e coloca altifalantes públicos a executar orquestralmente o chorrilho das críticas, que roçam o estilo catilinário, chegando a alvitrar a inépcia dos magistrados em causa e até a necessidade de impedir a fiscalização preventiva.
Ora, ao contrário de outros, destes juízes, 10 são eleitos no parlamento por maioria de dois terços dos deputados e os outros 3 são cooptados pelos restantes. Nem todos são constitucionalistas? Nem têm de ser. É melhor a diversificação de especialidades jurídicas e de carreiras de proveniência que o monobloco de especialização, que poderia redundar no autismo profissional. Se o governo, ao quer escrutinar o TC, quer usar do direito de crítica, que o faça, mas sem contestar, de momento (deixando para sede de revisão constitucional), a forma de provimento ou a competência do órgão e dos seus titulares. E, sobretudo, que não passe a vida a espingardear: se não gosta, evite; se governa mal, passe a aprender a governar; se a dificuldade está na Europa, aprenda a negociar com a Europa e a exigir-lhe um pouco mais de respeito por nós; e não verta sobre o povo o fel da insatisfação contra o TC, mas cumpra as decisões do TC que, como as dos outros tribunais, prevalecem sobre as demais.
O TC é um tribunal político? Pois é e tem de ser: emana de um órgão político e foi criado para julgar leis face à lei fundamental, que são fruto do poder político e a forma do seu exercício. E os outros tribunais também o são: são órgãos de soberania, julgam em nome do povo. Ora povo é comunidade política e soberania é poder político; e na fabricação das principais leis, os representantes das principais formações (e os das dos magistrados também e, se não são, que o exijam) costumam ser ouvidos. Por isso, os senhores juízes não devem atirar com toda a culpa para cima dos “políticos”, como não é decente o Presidente do TC achar disparate a crítica feita pelos governantes. A contenção fica bem a todos.
É certo que os tribunais são o único órgão de soberania que não sofre moderação externa ao seu sistema, a não ser pelo lado da tomada de posição crítica que os cidadãos podem ousar ter. No entanto, não se pode afirmar que funcionem sem controlo a vários níveis e instâncias. Mesmo assim, o Presidente da República, a quem compete nomear dois vogais do Conselho Superior da Magistratura, tem a liberdade de chamar os titulares de topo dirigir mensagem aos órgãos superiores das magistraturas, como ao parlamento.  

Por isso, os órgãos de soberania que trabalhem em separado, colaborem entre si, critiquem-se mutuamente, mas respeitem-se. É para isso que eles existem no quadro da distribuição, separação e interdependência dos poderes que fazem “o Poder”. É assim a democracia, que alguns não querem, mas que ganhem juízo e não andem a distrair o povo da discussão dos grandes problemas! Que não intentem arruinar, pela via da guerrilha institucional, as bases do Estado de Direito Democrático.

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