Será que os atuais agentes e fautores
da guerrilha entre órgãos de soberania desejam a regressão civilizacional
político-jurídica? Ficaram encantados com ditaduras de tipo chinês, sul-americano,
afro-asiático, czarino-soviético – em que os órgãos existem, mas sem poder?
***
Quando as leis emanavam diretamente
da divindade, todos os seres humanos lhes estavam sujeitos, pudera, não?!
Ninguém estava acima da lei, ninguém ficava fora da lei. Isto era pacificamente
sabido e assumido nas civilizações antigas, em que os sacerdotes comunicavam as
leis e lhes geriam o cumprimento, e a Torá bíblica, outorgada por Deus a Moisés
e sucessores em liderança (Josué, juízes, reis, profetas, sábios…), a todos obrigava,
mostrando-se como caminho de vida e liberdade, frente ao caminho da morte,
trilhado pelos que recusassem o cumprimento da lei.
Cedo, porém, as coisas se alteraram
quando líderes de topo se arvoravam em deuses. Estes, como é óbvio, declararam-se
superiores à lei e, por outro lado, a lei era aplicada aos súbditos, aos seres
humanos, ficando fora de lei aqueles e aquelas que não eram considerados
pessoas. Estes, por conseguinte, coisificados como eram, recebiam o tratamento
de coisas de que o senhor, como seu proprietário, podia dispor a capricho; e,
se resistiam com a força ou a agilidade do animal, eram submetidos ao
tratamento adequado à condição do resistente sem direitos. E assim surgiram na
sociedade aqueles que estavam acima das leis, os deuses e aqueles que na sua
circunscrição a eles se equiparavam, e os fora de lei, os não cidadãos. E os
estrangeiros, por não pertencerem ao povo, também não eram tratados segundo a
lei: ou eram votados ao desprezo, não viessem as retaliações dos povos de
origem, ou eram tratados com hostilidade. Não é sem razão que o discurso
bíblico clama por tratamento humano episodicamente para com os estrangeiros e
recorrentemente para com as mulheres, as crianças e os escravos. (vg: Lv 19,10.20-22.33-34;
Dt 24,17-18; 26,12; Lc 18,15-17; Gl 3,28).
A tradição eclesiástica herdou,
alegadamente do direito romano, o princípio de que o legislador não está
sujeito à lei. E, brincando, alguns estudantes de teologia em seminário diziam
que o Papa poderia casar, já que, sendo o celibato eclesiástico produto de uma
disposição legística da Igreja, o Papa como supremo legislador não está sujeito
à lei eclesiástica. E os alegadamente mais entendidos em História da Igreja
referiam o exemplo de papas casados, ao passo que os mais votados à venusta
catarinidade da Igreja lá iam rezando que o Papa não o faria para dar exemplo
aos sacerdotes.
Ao mesmo tempo, foi crescendo a
tentação absolutista régia que perdurou. Os soberanos começaram a deixar de
ouvir as Cortes (que, não sendo órgãos deliberativos, constituíam orientação do
exercício do poder real). Mas a lei frequentemente era confundida com a vontade
do monarca, o qual detinha todo o poder: produzia as leis, instava e geria a
sua vigência e julgava os súbditos (habitualmente através de juízes por si
nomeados ou eleitos nos concelhos, mas muitas vezes por si diretamente),
aplicando o castigo, às vezes, pelas suas próprias mãos e entregava os
estrangeiros aos soberanos homólogos. Fernão Lopes, no prólogo da Crónica d’ El
Rei Dom Pedro, o justiçoso ou o justiceiro, dá conta dessa confusão de
poderes e da lei e príncipe como faces da mesma moeda: “a lei é príncipe sem alma” ao passo que “o príncipe é lei e regra da justiça com alma”. Por estas palavras e
por todo o arrazoado do cronista se infere que o monarca, embora reconheça a
importância da virtude da justiça no povo e no rei, se coloca acima das leis,
que “são a regra do que os súbditos hão
de fazer”.
***
Esta ordem
político-jurídica tem o primeiro óbice de impacto com a “magna carta”. Esta “Grande
Carta das liberdades ou concórdia entre o rei João e os barões para a outorga
das liberdades da Igreja e do reino inglês” constitui o primeiro documento, de índole
constitucional, a colocar em letra de forma direitos do povo (dos cidadãos),
limitando o poder régio. O rei da Inglaterra, João sem Terra, não tendo força
suficiente para se opor aos barões, assinou-a em 15 de junho de 1215. Daqui
ficou estabelecido que o rei devia seguir a lei e não podia mais reinar arbitrariamente.
A Magna Carta, ao livrar da ingerência
do monarca os barões e a Igreja Católica, outorgando-lhes a prerrogativa de
declaração de guerra ao soberano se este não respeitasse o documento, fez
sobressair o poder do direito. Assim, além do mais, garantiu o direito de as
mulheres e as crianças herdarem propriedades, como estatuiu que ninguém poderia
ser punido por crime que não estivesse previamente tipificado e antes de ser
legalmente condenado como culpado. E, sobretudo, serviu de inspiração para a
redação das modernas constituições.
Cedo emergiu o Parlamento Inglês
(mais tarde, do Reino Unido) como sede do poder legislativo, desempenhando
também algumas funções judiciais. O Monarca
constitui-se como o mais alto juiz, mas o Conselho Privado também exerce poder sobre algumas
jurisdições.
***
Entretanto,
desenha-se na Europa a teoria da separação dos poderes ou
da tripartição dos poderes do Estado, teoria da ciência política que tem
origem nos filósofos gregos Platão e Aristóteles. Porém, quem, pela
primeira vez, a expôs de forma coerente e sistematizada foi o filósofo
iluminista Charles-Louis de Secondat (Montesquieu),
no tratado O Espírito das Leis
(1748), com vista à moderação do Poder, especificando as suas diversas funções
(doravante poderes) e atribuindo-as a diferentes órgãos, a partir de então órgãos
de soberania. As ideias de Montesquieu inspiraram-se nas teses de John Locke,
formuladas cerca de cem anos antes.
Analisando as
relações das leis com a natureza e com os princípios de cada governo e olhando
para a experiência da Inglaterra, Montesquieu explana a teoria de governação
que alimenta as ideias do constitucionalismo face ao poder régio absoluto.
Advoga, assim, a distribuição da autoridade, de modo a evitar o arbítrio e
a violência institucionais. O filósofo político distinguiu cuidadosamente a
separação dos poderes em executivo, judiciário e legislativo
(que não era clara no parlamento inglês), o que deu azo à elaboração da
Constituição dos Estados Unidos.
Considerando
o abuso do poder régio, Montesquieu infere que “só o poder freia o poder” e o seu freamento se consegue com o “sistema de freios e contrapesos”.
Daí a necessidade de repartição do Poder em poderes e de cada poder se manter
autónomo e ser prerrogativa de pessoas e grupos diferentes: os poderes agiriam
como freios mútuos, cada um impedindo que o outro abusasse de suas
prerrogativas de poder. O Poder Executivo seria exercido pelo rei (diremos
hoje: em República, pelo Presidente), com direito de veto sobre as decisões do
órgão legislativo. O Poder Legislativo, convocado pelo executivo, deveria ser
distribuído por duas câmaras: o Corpo dos Comuns, composto pelos representantes
do povo (eleitos), e o Corpo dos Nobres, formado por nobres, hereditário (os republicanos
substituem-no pelo senado de eleitos e/ou designados) e com a faculdade de
moderar as disposições do Corpo dos Comuns. Cada uma das câmaras teria
assembleia e decisões separadas, interesses e opiniões independentes.
É que o
relevante não é o rei, o chefe de Estado, o órgão de soberania ou a lei.
Relevante é o povo constituído em Estado. E o que é o Estado? Marcello Caetano
define ESTADO como
Um
povo, fixado num território de que é senhor, e que dentro das fronteiras desse
território institui, por autoridade própria, órgãos que elaborem as leis
necessárias à vida coletiva e imponham a respetiva execução – (Manual
de C. Política e Dir. Constitucional, 6.ª ed., I, pg.122).
Embora
aceitável, esta definição é suscetível de aprimoramento,
sobretudo no quadro da semântica do poder político. E Freitas do Amaral avança com a seguinte
definição:
O Estado é a comunidade constituída por um povo que, a
fim de realizar os seus ideais de segurança, justiça e bem-estar, se
assenhoreia de um território e nele institui, por autoridade própria, o poder
de dirigir os destinos nacionais e de impor as normas necessárias à vida coletiva – (C. de Dir. Ad., Almedina:1996).
Daqui, dois sentidos de Estado: ESTADO-NAÇÃO
e ESTADO-PODER. No primeiro sentido,
ressalta o Estado como comunidade nacional independente; no segundo, o Estado
como organização, aparelho, ou seja, o conjunto de órgãos e instituições, ou os
incumbidos de exercer o poder político numa comunidade nacional senhora de um
território. Assim vistas as coisas, quem mais ordena é o povo, a comunidade
nacional, em quem reside a soberania, o poder político.
A Constituição da República Portuguesa (CRP), à semelhança das congéneres
mais recentes, consagra com a da separação, a teoria complementar da
interdependência dos poderes. Assumindo, como fundamental, a natureza política
de Portugal como “uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana
e na vontade popular” (art.º 1.º), cuja “soberania, una e indivisível, reside
no povo” (art.os 2.º e 3.º), reconhece que “o poder político
pertence ao povo” (art.º 108.º) e que “o povo exerce o
poder político através de sufrágio universal” (art.º 10.º). E enumera
como órgãos de soberania os seguintes: “o Presidente da República, a Assembleia
da República, o Governo e os Tribunais” (art.º 110.º).
Desta forma, o poder soberano fica distribuído por diferentes órgãos, o que
permite o controlo recíproco do exercício das suas competências e garante, à
partida, a qualidade da concretização dessas mesmas competências/poder – no
quadro do princípio misto da Separação e Interdependência dos Poderes (cf art.º
111.º).
O Presidente da República desempenha funções estritamente políticas (art.os 120.º-140.º): a representação externa do
país (art.º 120.º), o controlo da Assembleia da República e do
Governo (art.º 133.º), incluindo o poder de dissolver ou demitir (art.º 133.º/e, g, respetivamente).
No atinente à Assembleia da República (art.os 147.º-181.º),
cabe-lhe o poder legislativo (discussão e aprovação de projeto de lei, proposta
de lei, petição de cidadãos, resolução) e o poder político. O seu poder
político (fiscalizador, de censura ou de aceitação do pedido de confiança) incide
no controlo sobre o Governo e concernentes atuações legislativas (decreto-lei,
proposta de lei…) e limita e/ou condiciona as ações do Presidente da República
atinentes à representação do Estado (por via de autorização e, no limite, de destituição).
O Governo (art.os 182.º-201.º), além de funções políticas e
legislativas próprias (ou sob autorização parlamentar), superintende na
administração pública e pratica atos administrativos.
Os Tribunais têm a função jurisdicional (art.os 202.º-224.º),
ou seja, têm o poder de interpretar a lei com vista à sua aplicação: julgar,
resolver litígios. Ponderam, determinam e aprovam em conformidade com a convicção
que formulam sobre os factos à face da Constituição e das leis.
Se o Presidente (que não se limite a dizer que já avisou) é o garante da
independência nacional, da unidade do Estado e do cumprimento da Constituição; se
a Assembleia da República é a “casa do povo” (representativa de todos os
cidadãos nacionais); e se o Governo é o condutor da política geral do país e da
administração – por outro lado, é ao povo que pertence o poder político, o
poder de escolher, em liberdade de consciência, responsabilidade cívica,
espírito crítico e autónomo, o destino da Nação. É, pois, ao Povo que se imputa
a responsabilidade da construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a
criação de uma “terra da fraternidade” (Vd Zeca Afonso, Grândola Vila Morena).
Ora, em democracia, o principal instrumento que está nas mãos do povo é o
voto. Mas o voto não esgota a capacidade do exercício do poder. O povo tem ao
seu dispor a liberdade de crítica através dos órgãos de comunicação, das
manifestações, das petições, da missiva aos titulares dos órgãos de soberania,
os concursos profissionais e culturais. Por outro lado, a via eleitoral não é a
única via de legitimação do exercício do poder e de funções públicas
administrativas. Desde que haja um parlamento (ou órgão de natureza similar)
eleito diretamente e por escrutínio universal e secreto, o Chefe de Estado pode
não provir de eleição direta e universal: pode ser eleito no Parlamento ou num
colégio eleitoral mais alargado ou ser um rei. A composição do governo não
resulta de eleição direta (tem somente de ter em conta os resultados
eleitorais); os quadros técnicos resultam, não de eleição, mas de nomeação
transparente e com regras claras, desejavelmente em resultado de concurso
público, sob tutela do governo, órgão que superintende na administração. Os juízes
administram a justiça “em nome do povo” (art.º 202.º), mas não são eleitos pelo
povo, nem o poderão ser em razão da natureza técnica da tramitação da justiça,
tal como no atinente aos quadros técnicos.
***
Invulgarmente, o atual governo tem desferido ataques sobre ataques de
crítica verrinosa ao Tribunal Constitucional (TC), só porque o mesmo tem
respondido aos pedidos de apreciação dos normativos legais de forma nem sempre
alinhada (ultimamente muitas vezes) com as opções governamentais. E tem-no
feito a priori em jeito de aviso ao
povo, secundado por fazedores de opinião e por instâncias internacionais; e
fá-lo a posteriori, de forma
autovitimizadora, dizendo que respeita as suas decisões, mas acenando com
medidas mais gravosas em virtude de o TC tentar desfazer com suas decisões o
que o governo quer construir. Recentemente começou a pôr em causa a metodologia
da eleição dos juízes preceituada pela lei fundamental e coloca altifalantes
públicos a executar orquestralmente o chorrilho das críticas, que roçam o
estilo catilinário, chegando a alvitrar a inépcia dos magistrados em causa e
até a necessidade de impedir a fiscalização preventiva.
Ora, ao contrário de outros, destes juízes, 10 são eleitos no parlamento
por maioria de dois terços dos deputados e os outros 3 são cooptados pelos
restantes. Nem todos são constitucionalistas? Nem têm de ser. É melhor a
diversificação de especialidades jurídicas e de carreiras de proveniência que o
monobloco de especialização, que poderia redundar no autismo profissional. Se o
governo, ao quer escrutinar o TC, quer usar do direito de crítica, que o faça,
mas sem contestar, de momento (deixando para sede de revisão constitucional), a
forma de provimento ou a competência do órgão e dos seus titulares. E,
sobretudo, que não passe a vida a espingardear: se não gosta, evite; se governa
mal, passe a aprender a governar; se a dificuldade está na Europa, aprenda a
negociar com a Europa e a exigir-lhe um pouco mais de respeito por nós; e não
verta sobre o povo o fel da insatisfação contra o TC, mas cumpra as decisões do
TC que, como as dos outros tribunais, prevalecem sobre as demais.
O TC é um tribunal político? Pois é e tem de ser: emana de um órgão
político e foi criado para julgar leis face à lei fundamental, que são fruto do
poder político e a forma do seu exercício. E os outros tribunais também o são:
são órgãos de soberania, julgam em nome do povo. Ora povo é comunidade política
e soberania é poder político; e na fabricação das principais leis, os representantes
das principais formações (e os das dos magistrados também e, se não são, que o
exijam) costumam ser ouvidos. Por isso, os senhores juízes não devem atirar com
toda a culpa para cima dos “políticos”, como não é decente o Presidente do TC
achar disparate a crítica feita pelos governantes. A contenção fica bem a
todos.
É certo que os tribunais são o único órgão de soberania que não sofre
moderação externa ao seu sistema, a não ser pelo lado da tomada de posição
crítica que os cidadãos podem ousar ter. No entanto, não se pode afirmar que
funcionem sem controlo a vários níveis e instâncias. Mesmo assim, o Presidente
da República, a quem compete nomear dois vogais do Conselho Superior da
Magistratura, tem a liberdade de chamar os titulares de topo dirigir mensagem
aos órgãos superiores das magistraturas, como ao parlamento.
Por isso, os órgãos de soberania que trabalhem em separado, colaborem entre
si, critiquem-se mutuamente, mas respeitem-se. É para isso que eles existem no
quadro da distribuição, separação e interdependência dos poderes que fazem “o
Poder”. É assim a democracia, que alguns não querem, mas que ganhem juízo e não
andem a distrair o povo da discussão dos grandes problemas! Que não intentem
arruinar, pela via da guerrilha institucional, as bases do Estado de Direito Democrático.
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