quarta-feira, 18 de junho de 2014

Quando o governante (?) não tem confiança nas suas opções...

O Primeiro-Ministro referiu à Comunicação Social que recentemente o Conselho de Ministros aprovara um conjunto de disposições de caráter orçamental, entre as quais se conta o reatar dos cortes salariais aos trabalhadores na Administração Pública que a lei do orçamento do Estado determinou para o ano de 2011. E acrescentou que tais disposições constituem proposta de lei a apresentar à Assembleia da República e sucessivamente ao Presidente da República e ao Tribunal Constitucional.
Ao ser questionado por que motivo mencionava já o Tribunal Constitucional (TC), esclareceu que tinha já solicitado ao Presidente da República que submetesse, em tempo oportuno, o decreto do Parlamento à fiscalização preventiva da constitucionalidade. Para esta atitude escudou-se no argumento da não perceção da bússola orientadora daquele Tribunal em matéria da fiscalização da constitucionalidade dos diplomas legais que tenham incidência orçamental.
Subjaz no seu raciocínio o rol de afirmações das figuras políticas da área da maioria governativa de que o TC exorbita nas suas funções judiciárias, querendo dar indicações políticas, que tem acórdãos de teor contraditório em matérias similares, que impede o reequilíbrio das contas públicas ou que segue uma perspetiva corporativista. E entenderam mal uma nota em que o TC refere que um equilíbrio orçamental com base na opção tributária é mais equitativo que o assente exclusivamente ena redução da despesa. Ora, segundo o juízo do cidadão comum, isto não constitui um incentivo ao aumento de impostos, mas o mero reconhecimento de que a redução da despesa pública (que nem tem acontecido) se continuar a cingir-se ao corte de salários e pensões, cria situações insustentáveis, ao passo que a via tributária, pela sua sustentação em valores percentuais e pelo seu caráter progressivo se torna mais equitativa se incidir em qualquer tipo de rendimento e não só de alguns, ou seja, dos mesmos de sempre.
Concorde-se ou não com as decisões do TC, se elas se revestem de alguma índole contraditória, tal não acontece no atinente à justeza da ótica governativa, mas ao universo dos potencialmente lesados (trabalhadores públicos e pensionistas, os de pensão saída dos cofres do Estado) pela opção governamental sucessivamente ratificada em sede parlamentar. Assim, o TC aceitou os cortes salariais na função pública previstos para 2011, dado o seu caráter transitório, que deixou estender para os anos de 2012 e 2103. Mas não autorizou os preceituados para 2014, pelo facto de a lei do orçamento não garantir o carácter transitório dos mesmos e por alargar grandemente o universo dos atingidos (mas, para evitar perturbações de monta, fez valer os efeitos unicamente da decisão a partir da data do acórdão, ex nunc, e não desde a vigência da lei do orçamento, ex tunc). Também o TC não deixou passar a supressão, a um setor considerável dos trabalhadores da Administração Pública (e reformados / aposentados), dos subsídios de férias e de natal e a um dos subsídios (para 2012 e 2013, respetivamente) por razões de equidade e de proporcionalidade. E, no primeiro dos dois anos, tolerou excecionalmente que tal decisão não tivesse efeitos no ano económico em curso, valendo-se do estabelecido no n.º 4 do art.º 282.º da CRP (Constituição da República Portuguesa). E o TC “chumbou” a convergência das pensões da CGA com as do CNP, aparentemente contrariando o princípio da igualdade, mas tendo em conta que o regime de trabalho e de descontos era substancialmente diferente. Porém, só o fez em relação às pensões em pagamento, ou seja, àquelas em que seria necessário proceder a recálculo, deixando passar as opções que vieram a ser decididas em relação às então futuras. Razões semelhantes de igualdade, proporcionalidade e proteção da confiança travaram a redução das pensões de sobrevivência, mas não impediram uma CES temporária sobre pensões de aposentação e ou de reforma.
De que tem medo afinal o Governo? De que o TC não venha a deixar passar as opções constantes do orçamento retificativo; a transformação da CES, de carácter temporário, sobre reformados e aposentados, em TS, de caráter definitivo; os cortes salariais a título definitivo previstos transitoriamente para 2011 e que se estenderam aos anos seguintes; o aumento de contribuição para a ADSE, o aumento do IVA ou da contribuição para a segurança social por parte dos trabalhadores? De facto é muita coisa! Todavia, não é persistindo na não procura de outras formas de governação financeira e económico-social ou fazendo o pedido ao PR no sentido de submeter diplomas à apreciação preventiva da constitucionalidade por parte do TC, o que é inédito.
Esta ou outra forma de continuar a guerrilha institucional a acrescentar à inexplicável explicação das declarações da vice-presidente do PSD Teresa Coelho como não sendo de desrespeito, mas de crítica assente em pressupostos jurídicos de direito à crítica ou da anulabilidade das decisões judiciais (Quem é que poderia suscitar a questão de anulabilidade das decisões do TC?). Claro, que só acredita na validade da explicação quem quer ou quem não leu a entrevista…
Ora, o Governo, enquanto nega a existência de qualquer conflito com o TC e até afirmando que o Governo tem tido atitude muito compreensiva e respeitadora para com o Tribunal, vai intoxicando a opinião pública. E essa postura dá resultado. Não é que juristas de renome opinam que o Primeiro-Ministro está a ter uma atitude sensata ao querer saber da viabilidade das suas opções a tempo!
E o cidadão pergunta-se como deve funcionar o Estado no âmbito da separação e interdependência dos poderes.
Ora, no respeitante ao processo legislativo, há que referir que, em matéria orçamental, cabe ao Governo apresentar proposta de lei à Assembleia da República; a esta competirá a discussão e aprovação genérica, a discussão na especialidade em sede da comissão respetiva (ou comissões respetivas de acordo com o conteúdo material) e a aprovação final. Depois da sua redação definitiva, o diploma, que tem a designação de decreto, sobe ao Presidente da República para promulgação como lei. Sem olvidar as competências constitucionais dos Representantes da República quanto às regiões autónomas, há que referir que o Presidente pode requerer ao TC a apreciação preventiva da fiscalização da constitucionalidade. E cabe também ao Primeiro-Ministro ou a um quinto dos deputados requerer apreciação preventiva da fiscalização da constitucionalidade de qualquer norma que tenha sido enviada ao Presidente para promulgação como lei orgânica, o que não é o caso.
Como a Constituição não especifica se alguma entidade pode ou não solicitar ao Presidente que requeira a apreciação preventiva da constitucionalidade de um diploma, resta verificar o que tem sido hábito nesta República: quando a aprovação de um diploma do Parlamento (ou do Governo) sobe ao Presidente, este, se tem efetivamente dúvidas sobre a constitucionalidade de algumas das suas normas ou do todo do documento, toma a iniciativa de requerer (fá-lo motu proprio) ao TC a apreciação preventiva da sua constitucionalidade. É óbvio que recorre ao avisado conselho de seus assessores para as matérias em causa. Também, muitas vezes, os partidos políticos e grupos de cidadãos, descontentes com o desfecho legislativo de determinada problemática, sugerem, pedem ou quase que exigem que o Presidente tome iniciativa. Por norma, os Presidentes (sobretudo o atual) fazem de conta que não são pressionáveis e têm-se mostrado avessos a esse tipo de sugestões e raramente agem na sequência das mesmas. É claro que as figuras gradas do Governo e/ou do Parlamento agitam o espantalho das pressões ilegítimas sobre os órgãos de soberania. E lá fica como arma disponível o pedido da apreciação sucessiva da apreciação da constitucionalidade com vista à declaração da inconstitucionalidade ou da ilegalidade, com força obrigatória geral, cuja iniciativa é confiável a bastantes entidades, como se pode verificar pelo n.º 2 do art.º 281.º da CRP, com as consequências daí resultantes, sobretudo em razão do momento tardio da decisão.
Porém, no decurso da presente legislatura, regista-se um comportamento atípico. Grupos de cidadãos e partidos da oposição recorrentemente solicitam ao Presidente que requeira ao TC a apreciação preventiva de diplomas legais, normalmente de responsabilidade conjunta do Governo, em razão da sua iniciativa de apresentação de proposta de lei ao Parlamento, e da Assembleia da República, a quem incumbe a discussão e aprovação. O Presidente nalgumas vezes acede, não sem dizer que o faz porque o documento respetivo lhe suscita fortes dúvidas, apresentando argumentação alegadamente condicente com a situação de dúvida e afastando o espectro das pressões; em outras, porém, não acede, invocando razões de inconveniente perturbação da governança ou alegando que os consultores a que recorreu não afiançam a subsistência de tais dúvidas, restando o recurso ao requerimento da apreciação sucessiva da constitucionalidade, iniciativa ao alcance de várias entidades e que o Presidente também já tomou.
Eis senão quando vem o Governo e figuras gradas da maioria parlamentar, acolitadas por significativas instâncias internacionais, acenar com o espantalho da perturbação dos mercados, do bloqueio ao equilíbrio da contas, do agravamento do serviço da dívida, do corporativismo dos juízes, das incongruências do TC, da agenda política de um órgão não eleito, da anulabilidade de decisões suas. Mais: acabou por colocar-se em causa o método de seleção dos juízes do TC, decretar-lhes sanções em nome do escrutínio a que deviam estar sujeitos, solicitar-lhes aclaração de acórdão de si emanado. Tal postura cheira a tentação de desobediência ao Tribunal, a ânsia de partidarização e a desconfiança sobre o estatuto do TC como reduto democrático da garantia da constitucionalidade e da legalidade da produção legislativa e da atuação dos demais órgãos de soberania, tal como os outros tribunais o são em relação aos direitos dos cidadãos e à ministração da justiça. É certo que os tribunais são os órgãos de soberania que não estão sujeitos a um controlo por parte dos demais órgãos de soberania. Mas, por um lado, o controlo da ministração da justiça é seguramente levado à prática em diversos patamares dentro do sistema e não é sensato exigir que seja o TC o único órgão de soberania sujeito a controlo externo. Sempre, embora com o direito a crítica democrática, se entendeu que as decisões dos tribunais transitadas em julgado (ou seja, definitivas) se sobrepõem às demais. Por isso, se propugna a independência dos juízes, a autonomia do ministério público e a liberdade dos advogados.
Ultimamente, o TC respondeu ao requerimento da Presidenta da Assembleia da República, feito a pedido do Governo, com vista à aclaração de acórdão que incomodou o executivo da República, no sentido de que nada havia a aclarar, pois, não dá azo a dupla interpretação, insistindo na data da produção de efeitos do acórdão em causa. Porém, não deixaram os juízes constitucionais de advertir que não pode o TC intrometer-se na função administrativa do Estado, que é da competência do Governo nem dar indicações sobre os procedimentos a adotar por qualquer outro órgão de soberania.

Em que ficamos, pois? Será que os atuais detentores do poder (legislativo, executivo e judicial) não sabem conviver entre si, respeitando o estatuto da separação e o funcionamento do limitador sistema de contrapesos e assumindo o ónus da interdependência? Irá o Presidente ceder à impaciência do Governo? Será que a democracia não atingiu a necessária adultez?

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