Já algumas vezes me tentei a refletir
sobre o tema referenciado em epígrafe, face à forma como os colégios
eleitorais, de grande ou pequena extensão, catapultam para a liderança das
organizações algumas figurinhas que nem Deus gostaria de ter no paraíso nem
Lúcifer toleraria nas profundezas.
Porém, sucede que o governante-mor, exercendo
uma liderança política de forma desviante, nos quer entreter a desferir doestos
contra o tribunal constitucional, designadamente a exigir maior escrutínio a um
órgão de soberania, pelos vistos não eleito, sobre opções tão importantes como
as orçamentais, dizendo mesmo que a sua escolha deveria ser melhorada e
exigindo ineditamente uma aclaração (que foi excluída recentemente do código do
processo civil) sobre alguns pontos do último acórdão. Pensava que a eleição de
10 dos juízes por maioria de dois terços dos deputados (e subsequente cooptação
de mais 3 pelos eleitos) era democraticamente mais segura que a metodologia de
escolha dos membros do governo.
Sem me pronunciar, de momento, sobre
a necessidade ou conveniência de uma episódica revisão constitucional, entendo
que as metodologias consagradas na lei fundamental não devem ser postas em
causa só porque as decisões de um órgão de soberania, sobretudo o que tem a
missão de ajuizar da constitucionalidade das leis, não agradam ao governo. Que
diria o primeiro-ministro se o cidadão comum ou os académicos, maxime os constitucionalistas se
lembrassem de exigir uma diferente metodologia constitucional de composição e
nomeação do governo ou de eleição do parlamento, quando nos sentimos
excessivamente ludibriados, prejudicados e vilipendiados pela governança? Como
reagiria se lhe exigíssemos uma aclaração das medidas decididas e
implementadas?
A pari, termos
de inferir, pelos factos, que a liderança do Partido Socialista não está a seguir
uma rota mais aceitável, embora a
contrario. É certo que o PS ganhou claramente, em pouco tempo, duas
eleições, autárquicas e europeias. No entanto, as autárquicas não deram uma
maioria confortável aos socialistas, apesar do sofrimento provocado pela
governança, se tivermos em conta o crescendo do fenómeno dos independentes
(genuínos ou resultantes de dissidências) e a feição específica do poder local,
bastante centrado no perfil pessoal dos candidatos. Por outro lado, nas
eleições europeias, a maioria governamental apanhou a derrota estrondosa, a que
se equipara, pouco mais ou menos, uma tímida vitória relativa tangencial do PS.
Será meramente conjetural o que se possa dizer sobre e eventual deslocação de
votos: abstenção, MPT, CDU, votos nulos e brancos?
Perante o epifenómeno, António Costa
desafia a liderança socialista e postula eleições diretas, em que ele se apresentará
como candidato, e, consequentemente, congresso extraordinário onde o líder
eleito apresentará a sua moção estratégica e a escolha de personalidades para
os diversos órgãos estatutários do partido. A isto, António Seguro e o aparelho,
na sua insegura liderança, respondem das piores formas: abespinhamento pela
“afronta”, depois de o partido ter capitalizado duas vitórias eleitorais
sucessivas; resposta negativa aos desafios de Costa; entrincheiramento do
“líder” no seu reduto aparelhístico; lançamento, não previsto estatutariamente,
de eleições primárias para o cargo de primeiro-ministro (eleições que nem não
constam do ordenamento constitucional nem podem confundir-se com as primárias americanas
e francesas para presidente, não para primeiro-ministro), quiçá a privilegiar o
estatuto dos simpatizantes, sem pôr à disposição o cargo de secretário-geral;
declaração de renúncia ao cargo atual, no caso de perda das primárias; e, agora
com as declarações de Passos Coelho, solicitação da intervenção de Cavaco Silva,
por estar em causa o regular funcionamento das instituições democráticas.
Quererá o líder, pressionado pelo desequilíbrio clientelar partidário, que a
coligação PSD/CDS ganhe eleições legislativas antecipadas ao seu partido
fragilizado por um não descolamento de que o líder e o aparelho são os
principais responsáveis, agravado pela teimosia das estruturas em não ler os
sinais do susodito epifenómeno? Um político amigo do partido e do povo não
deveria aceitar, facilitar e até promover a clarificação no interior do
partido, incluindo a liderança? Quererá antes, como Pôncio Pilatos, persistir
na atitude de não atar nem desatar, e deixando que a coligação que nos sugou
até ao tutano ganhe tempo para, com a invasão propagandística do eleitorado,
abocanhar nova legislatura?
***
E aqui importa esclarecer o perfil e
o papel do líder, não propriamente do líder empresarial ou de uma ONG, mas da
ação política, partidária e potencialmente governativa. A empresa tens fins
empresariais, nomeadamente o lucro, que desejavelmente deveria circunscrever-se
ao domínio do “lucro justo” e não apostar no lucro desenfreado. A ONG tem habitualmente
o contributo da dedicação voluntária e o da afeição solidária, que, ultrapassando
as meras relações hierárquicas e/ou laborais, lhe emprestam um capital de humanidade
não facilmente inventariável na empresa ou na política.
José Gil, no seu artigo de índole
ensaística publicado na revista Visão,
desta semana, dissertando sobre “o que é um líder?”, deixa alguns avisos sobre
o perfil de Seguro, de quem diz que “é mais um seguidor, boa pessoa, comum,
sempre politicamente correto”. E acrescenta que “terá muitas qualidades
políticas, mas não as de um líder”. Por mim, entendo que o enunciado deveria
ser formulado de outro modo: Seguro poderá ter grande conhecimento de ciência
política, sobretudo no aspeto teorético, e até muita capacidade de trabalho
político, mas não tem capacidade de liderança, nem mesmo qualidades políticas,
pois estas são essencialmente de condução/liderança.
No entanto, o artigo do filósofo
reveste-se de pertinência e oportunidade. Sem pôr de parte a parametragem da liderança
baseada nos estudos, mormente americanos – de que resultam elencos de caraterísticas
baseadas na personalidade, “com traços essencialmente psicológicos” como extroversão,
empatia, firmeza de vontade, além de outros – opina que deve pôr-se o acento naquilo
“que faz do líder um dispositivo muito particular de forças”. E justifica a sua
asserção ao afirmar que o que torna um indivíduo em líder político “é um certo
jogo de forças que se estabelece entre ele e os que o ouvem e seguem na ação”,
que passa pelo “poder oratório” e pela “capacidade em atrair”.
Reclama o articulista para a
liderança “uma presença intensiva”, entendida como força “tão poderosa e plástica”
que funcione como “um foco atrator, transdutor e emissor de energias”, de modo
que se forme “um plano único de forças convergentes para um fim”, não pela via
da “obediência e submissão”, mas pela via – digamos – da auscultação, avaliação
das situações e diálogo com vista à tomada de decisões concertadas e ações consequentes.
Assim, na asserção de Gil, o líder “é a voz do povo que com ele se sente identificado”,
o que pressupõe “um dom poderoso de comunicação e contágio”, que “provoca adesões
cada vez mais alargadas”. Por outro lado, o filósofo alude a outra caraterística,
pouco evocada: “o líder é um ser habitado”
[…] “Desaparece como pessoa para ganhar uma identidade superior que oferece
certeza, segurança e confiança. Está sempre acima
se si”.
E José Gil não encontra estas
qualidades em Seguro; e tem razão. Por melhores que sejam as pessoas, elas têm
de ser avaliadas como as árvores – pelos frutos, pelos resultados. E os frutos-resultados
não são apetecíveis, convincentes na atual liderança socialista.
***
Se é verdade o que foi referido a propósito
da liderança do ainda maior partido da oposição, também não temos terreno que
leve a acreditar na bondade de uma reentrega do poder aos seus atuais detentores
do poder executivo. E não é preciso afastarmo-nos das caraterísticas apontadas
acima.
Para fazer vingar as sucessivas medidas
políticas que induziram o empobrecimento generalizado do país, o conflito intergeracional,
o enfraquecimento da classe média, a depauperação da administração pública, o
descarte de trabalhadores, etc., os líderes da governação usaram os recursos de
persuasão adequados aos fins, mas sem atenção aos meios. Escudando-se no
documento de ajustamento negociado com as instâncias internacionais, fizeram,
ao arrepio do concertado pré-eleitoralmente, a campanha da inevitabilidade, da honra
dos compromissos assumidos (Coitadinhos de nós, devedores, face aos nossos
generosos credores!) e responsabilizaram os portugueses pela dívida externa que
o desgoverno da República, a delapidação e o descalabro empresarial (leia-se
bancário, financeiro…) provocaram. E valeu tudo: cortes cegos, aposentações
forçadas, rescisões amigáveis claramente induzidas, impostos brutalmente aumentados,
contribuições agravadas, a par de taxas e tarifas incomportáveis – tudo a coberto
de uma propalada reforma do Estado, que não se fez.
Estes líderes fizeram-se pessoas bem
vulgares, pela promessa do que sabiam não poder cumprir, pela mentira, pela
inabilidade de inventar ou reinventar medidas políticas adequadas, pela incapacidade
de negociar em nome de Portugal com as instâncias internacionais, acentuando a componente
mutualista da dívida soberana, pela inépcia comunicativa, pela mentira, pelo desrespeito
aos órgãos de soberania, pela arrogância, pela impunidade da fraude, pelo
compadrio sempre negado… Estes líderes não atraíram, a não ser pela força, pela
mentira, pela inculcação da divisão, pela invocação do estado de necessidade. Estes
líderes foram impiedosamente apupados em público e até acharam graça; não
souberam estar “acima de si”; não estiveram “habitados”; nunca deixaram de ser
o Pedro, o Paulo, o Miguel, a Maria; nunca souberam ser a voz do povo. Nem sei
se os quereria para liderarem empresa minha!
+++
Porque o líder tem de ser: pessoa curiosa, ouvindo pessoas que estejam
fora do círculo do “sim, senhor primeiro-ministro”, para não se tornar
arrogante ou enrocado no seu castelo de marfim; pessoa criativa, sonhando e fazendo (e levando a fazer) o que ninguém imaginaria,
administrando as mudanças que lhe surjam como desafio e aquelas que ele, no seu
papel visionário, entender dever provocar; pessoa comunicativa, sabendo expor as suas ideias (inéditas ou concertadas
com as dos cooperadores) e atrair os outros, cada vez em maior número e qualidade,
para as suas causas; pessoa de caráter,
sabendo discernir entre o certo e o errado e tendo a coragem de sempre seguir e
fazer o que é certo, sem alguma vez faltar à verdade e sem abusar do poder; pessoa
corajosa, assumindo a coragem, e não
a presunção, de se sentar à mesa para falar e negociar; pessoa convicta, sentindo a sinceridade e a
paixão por aquilo que lhe é dado fazer, levando por diante sem desfalecer as
iniciativas que houve por bem tomar; pessoa carismática, sendo inspirador de confiança segura, provocando as pessoas
a segui-lo inabalavelmente e fazendo render ao serviço da comunidade os seus
talentos; pessoa competente, tendo a
noção clara do que está empreendendo, da sua validade e interesse para a
comunidade e para os fins para que tende, e cercando-se de colaboradores que
saibam sempre o que estão a fazer, que não sejam capazes de o trair ou enganar pela
adulação; pessoa de senso comum,
longe de qualquer egoísmo ou egocentrismo, mas com atenção à comunidade,
universo da sua liderança; e, sobretudo, pessoa que saiba enditar-se com as
crises.
É que, segundo Luís Piovenaza, os líderes
não nascem líderes, fazem-se: a liderança é lapidada em tempos de crise. Onde estão
esses líderes, que, em vez de se deixarem arrastar por ela, saltem por cima da
crise?!
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