segunda-feira, 23 de junho de 2014

Sobre a utilização da Bandeira Nacional

Segundo referência do Público de hoje, 23 de junho, “Élsio Menau arrisca-se a uma pena de prisão por ter exposto uma instalação artística, representando, de forma crítica, a situação do país”. Trata-se de uma polémica obra de arte subordinada ao título Portugal na Forca, em que surge a bandeira nacional “enforcada” numa estrutura de madeira, que serviu de trabalho final da licenciatura em Artes Visuais pela Universidade de Faro, a que o júri atribuiu a classificação de 17 valores.
O caso exemplifica o conflito de valores: académico-artístico e cívico. Na primeira vertente, exalta-se o mérito artístico e académico; no segundo, os poderes públicos vislumbram o crime de ultraje à bandeira enquanto símbolo da Pátria.
É verdade que a CRP, no seu artigo 11.º, define como símbolos nacionais: Bandeira Nacional, a adotada pela República instaurada pela Revolução de 5 de outubro de 1910 (símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal, é); e Hino Nacional, A Portuguesa. E o mesmo artigo consagra como língua oficial o Português.
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O uso da bandeira está regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 150/87, de 30 de março, dada a necessidade de a dignificar como símbolo da Pátria e de avivar o seu culto entre todos os portugueses. Sintetiza-se nos seguintes termos:
A Bandeira Nacional, como símbolo da Pátria, deve ser respeitada por todos os cidadãos, sob pena de sujeição à cominação prevista na lei penal (vd CP cit em baixo). No seu uso, deverá ser apresentada de acordo com o padrão oficial e em bom estado, de modo a ser preservada a sua dignidade.
Em termos temporais, é hasteada em domingos, feriados e em dias de realização de cerimónias oficiais ou outros atos ou sessões solenes de caráter público. Pode ainda ser hasteada noutros dias a critério do Governo ou, nos respetivos territórios, dos órgãos de governo das regiões autónomas ou dos órgãos executivos das autarquias locais e dirigentes de instituições privadas.
Nos edifícios-sede dos órgãos de soberania, a Bandeira pode ser arvorada diariamente, por direito próprio. E será hasteada em edifícios de caráter civil ou militar, qualificados como monumentos nacionais, e nos demais edifícios públicos ou instalações onde funcionem serviços da administração central, regional e local e da administração das regiões autónomas, bem como nas sedes dos institutos públicos e das empresas públicas. Pode também ser hasteada pelos institutos públicos e empresas públicas, fora dos locais da respetiva sede, bem como por instituições privadas ou pessoas singulares, desde que respeitados os vigentes procedimentos legais e protocolares.
Aos domingos e feriados e nos dias em que tal seja determinado pelo Primeiro-Ministro, a Bandeira será hasteada em todo o território nacional; fora destes dias, será hasteada nos locais de celebração dos respetivos atos. Permanecerá hasteada entre as 9 horas e o pôr-do-sol. E, quando por motivos devidamente justificados permanecer hasteada durante a noite, deverá, sempre que possível, ser iluminada por meio de projetores.
Para observância de luto nacional, a Bandeira será colocada a meia haste durante o número de dias que tiver sido fixado. E, sempre que seja colocada a meia haste, qualquer outra bandeira que com ela seja desfraldada será hasteada da mesma forma. Para ser içada a meia baste, a Bandeira vai a tope antes de ser colocada a meia adriça, seguindo-se igual procedimento quando for arreada.
A Bandeira Nacional, quando desfraldada com outras bandeiras, portuguesas ou estrangeiras, ocupará sempre o lugar de honra, de acordo com as normas protocolares em vigor, devendo observar-se, designadamente: havendo dois mastros, o do lado direito de quem está voltado para o exterior será reservado à Bandeira Nacional; e, havendo três mastros, a Bandeira Nacional ocupará o do centro.
No caso de haver mais de três mastros: se colocados em edifício, a Bandeira Nacional ocupará o do centro, se forem em número ímpar, ou o primeiro à direita do ponto central em relação aos mastros, se forem em número par; em todos os outros casos, a Bandeira Nacional ocupará o primeiro da direita, ficando todas as restantes à sua esquerda.
Quando os mastros forem de alturas diferentes, a Bandeira Nacional ocupará sempre o mastro mais alto, que deverá ser colocado de forma a respeitar as regras definidas anteriormente. Nos mastros com verga, a Bandeira Nacional será hasteada no topo do mastro ou no lado direito quando o topo não estiver preparado para ser utilizado.
Em instalações de organismos internacionais sedeados em território nacional ou em caso de realização de reuniões de caráter internacional, a Bandeira Nacional será colocada segundo a regra protocolar em uso para esses casos.
A Bandeira Nacional, quando desfraldada com outras, não poderá ter dimensões inferiores.
Os mastros deverão ser colocados em lugar honroso no solo, nas fachadas ou no topo dos edifícios, competindo aos responsáveis dos serviços a aprovação da forma e do local da fixação.
Em atos públicos, a Bandeira, quando não se apresente hasteada, poderá ser suspensa em lugar honroso e bem destacado, mas nunca usada como decoração, revestimento ou com qualquer finalidade que possa afetar o respeito que lhe é devido. 
Quanto ao uso do hino nacional, o site do protocolo, acedido em 23 de junho de 2014, citando a respetiva legislação (vd http://www.portugalprotocolo.com/PROTOCOLO_SIMB_NAC.php), explicita:
“O Hino Nacional é executado em cerimónias civis e militares onde se presta homenagem a Portugal, à Bandeira Nacional, ao Presidente da República, ou quando se dá a saudação a um chefe de Estado estrangeiro de visita a Portugal, depois de tocado o hino do seu país. Conforme a ocasião em que é tocado ou cantado, há ligeiras versões do mesmo, desde que não se infrinjam as disposições apresentadas  no Diário do Governo, 2.ª série, n.º 206, de 4 de setembro de 1957.
Também se ouve em cerimónias desportivas como nos Jogos Olímpicos e outros jogos internacionais em que participam atletas portugueses. Foi só a partir do século XIX que as nações Europeias  começaram a incluir um Hino como um dos símbolos da Nação, embora desde sempre tenham existido gritos de guerra, marchas patrióticas e louvores musicais os seus líderes.
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 332 do Código Penal estabelece o seguinte:
“Quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.”
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No entanto, com o dever de respeito pelos símbolos nacionais, coexiste a liberdade de criação cultural, consagrada no artigo 42.º da CRP, que nas suas vertentes intelectual, artística e científica, compreende “o direito à invenção, produção e divulgação da obra científica, literária ou artística, incluindo a proteção legal dos direitos de autor”. E o seu artigo 73.º/3, referindo-se à democratização da cultura, estatui para o Estado como mobilizador dos agentes culturais (a que estes devem corresponder convenientemente) para a realização deste desiderato o seguinte:
“O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social, as associações e fundações de fins culturais, as coletividades de cultura e recreio, as associações de defesa do património cultural, as organizações de moradores e outros agentes culturais”.
E o artigo 26.º da CRP, no seu n.º 4, determina que “a privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos”.
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O trabalho do jovem licenciado em Artes Visuais pela Universidade do Algarve, validado pelo respetivo júri conforme se afirmou já, vai hoje responder no Tribunal de Faro pelo crime de ultraje à bandeira nacional.
Não sabemos o desfecho, dado o melindre e a complexidade da situação: a peça esteve exposta num terreno particular em Faro, há cerca de um ano; mas, ao fim de dois dias, a GNR foi ao local e levou a obra, que, mais tarde, foi selecionada para a integrar a exposição coletiva dos alunos finalistas da Universidade do Algarve. por outro lado, um dos jurados, que abona como testemunha do jovem acusado, justifica, afastando qualquer ideia de ultraje a um dos símbolos nacionais: “Trata-se de uma metáfora, num país com a corda na garganta”. E garante que o seu antigo aluno mais não fez do que “expressar o mesmo que muitos políticos oficiais têm dito de forma verbal — o país está com a corda na garganta”.
O escritor e advogado Fernando Cabrita, ao tomar conhecimento do caso pelas redes sociais, ofereceu-se para defender o artista de Quarteira, sem cobrar honorários, por estar em causa a liberdade de expressão, argumentando que a arte, “por natureza, transcende alguns limites”.
Sabe-se também que o jovem artista apresentou, no mesmo ano, o Super-tuga, onde a bandeira nacional surge como elemento caracterizador do “super-homem” que iria salvar o país. E aí ele não foi elogiado pelos poderes, como seria sensato.
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Não tendo motivos para me pronunciar sobre as referidas obras de arte, que, à partida, não me parecem quadrar nos meus padrões de apreciação, devo, no entanto, tomar posição pelo excessivo rigor policial e judicialista com que o caso está a ser encarado. Parece-me que a intervenção das autoridades se justificaria se tivesse a obra de arte sido acompanhada de palavras ou gestos complementares ultrajantes ou se houvesse provocado escândalo e/ou incentivo a desrespeito aos símbolos. De outro modo, ficarei eu então escandalizado por terem permitido e incitado à proliferação de bandeiras a partir do ano 2004, de fabrico chinês, com pagodes em vez dos castelos. Eram colocadas de qualquer modo em qualquer sítio e abandonadas à intempérie e sujeitas aos piores tratos, mesmo a adornar sapatos e outros objetos. Não é fácil ver em cerimónias públicas ou lugares a correta ordenação de bandeiras. Não vejo as pessoas a parar diante dela ou a olhar para ela e os indivíduos do sexo masculino a descobrir a cabeça em sinal de respeito. Usam a bandeira para acenarem, se cobrirem ou embrulharem. E as autoridades não chamam à atenção. Quanto ao hino nacional, a sua execução, vocal e/ou instrumental sofre de cuidados (?) análogos. Quanto ao Português, que política da Língua, a nível interno e externo? Que discurso dos governantes e do PR – representantes da Pátria – em Inglês em vez do Português!
Mas faz-se justiça ao académico e artista…

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