segunda-feira, 2 de junho de 2014

Abdicação do Rei Juan Carlos

A notícia da manhã de 2 de junho foi surpreendente e foi dada em dois tempos: primeiro, através do primeiro-ministro, e depois, diretamente pelo abdicante.
Num contexto de crise da casa real espanhola, por motivos atinentes à pessoa do rei, em termos comportamentais, e à família, por motivos ligados à especulação financeira, alguns discutiam se o rei deveria ou não abdicar em favor do Príncipe Filipe, o primeiro na linha da sucessão. Apesar de tudo, o monarca não abria o jogo e poderia continuar para salvar a monarquia induzindo a sepultura da mesma, como poderia renunciar com a probabilidade igual de salvar o regime político ou de o levar ao precipício.
Juan Carlos, como dizem historiadores e jornalistas, foi o sexto rei da história espanhola a abdicar e o primeiro a fazê-lo desde a renúncia de Alfonso XIII, que a assumiu, em 1941, em favor do seu filho, Juan de Borbón, pai do rei espanhol que acabou por renunciar ao cargo. Porém, a proclamação da República, em 1931, precipitou no exílio Alfonso XIII, que em Roma e pouco antes de falecer, em 1941, abdicou para o seu terceiro filho, Juan de Borbón, conde de Barcelona, o qual nunca chegou a reinar, porque em 1977 apresentou oficialmente a renúncia aos seus direitos ao trono, cedendo o cargo ao rei Juan Carlos, que já era Chefe de Estado desde 1975, em articulação com as disposições do caudilho do regime ditatorial, o Generalíssimo Franco, que presidiu ao regime pátrio, que nem era republicano nem monárquico: o chefe não o era por condição de nascimento nem por eleição. Mas era na prática o monarca que conquistou o poder sem mandato que o legitimasse e sem termo à vista.
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Porém, a história das renúncias/abdicações em Espanha é mais complexa, como se pode ver pela recordação de factos, muitos dos quais se devem a influências externas – o que não é de espantar tendo em conta o dinamismo diplomático e os interesses expressos em termos bélicos.
Quase setenta anos antes, Afonso XIII, Amadeo I de Saboya – o primeiro monarca eleito pelas Cortes – abdicou em 1873 depois de três anos de reinado, devido à instabilidade política.
A anterior soberana renunciante foi Isabel II a quem a revolução de 1868 forçou ao exílio em França, acabando dois anos depois, em Paris, por abdicar em favor do filho Afonso XII.
No início do século XIX, em 1808, Carlos IV entregou a coroa a seu filho Fernando VII, que, em seguida, a devolveu ao pai, o qual, por sua vez, a deu a Napoleão, que, por sua vez, finalmente, a confiou ao seu irmão Joseph.
O primeiro Borbón, Filipe V, abdicara, a 10 de janeiro de 1724, em favor do seu filho Luís I, que morreu de doença, oito meses depois, forçando o pai a voltar ao trono até à sua morte em 1746.
Durante a Casa das Astúrias, o rei Carlos V cedeu os seus direitos dinásticos como rei de Espanha, em 1556, em favor de seu filho Filipe II, e como imperador, em favor de seu irmão, Fernando I de Habsburgo.
Agora, Juan Carlos de Borbón y Borbón manifestou a sua vontade de entregar a coroa ao filho, depois de um reinado de 39 anos, um dos mais longos da história espanhola, que começou na sua proclamação como Chefe de Estado, a 22 de novembro de 1975.

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Porém, as forças políticas, muitas delas latentes, aproveitaram a oportunidade, talvez com alguma precipitação, para reivindicarem o referendo sobre a opção popular de regime, ou seja, querem que o povo seja chamado a pronunciar-se sobre o regime espanhol em quadro de monarquia ou de monarquia. Tal reivindicação arrastará o novel soberano para o estatuto de herói, se a monarquia vingar, ou de vítima, se a república triunfar. Segundo a informação corrente, os atuais protestos são, formalmente, considerados ilegais, uma vez que não foi pedida autorização às delegações governamentais para a sua realização.
No entanto, dezenas de milhares de pessoas concentraram-se hoje, 2 de junho, no centro de inúmeras localidades espanholas, com destaque para as duas maiores cidades Madrid e Barcelona, exigindo referendo sobre a monarquia. Não se pode ignorar o fervilhar das autonomias, travado pelo politicamente correto, ao serviço dos interesses centralistas de Madrid.
Fontes policiais referiram que se concentraram mais de 20 mil pessoas na Puerta do Sol, no centro de Madrid, e nas ruas de acesso ao ponto que, como todos recordam, se tornou famoso como palco dos protestos da cidadania espanhola.
“Espanha, mañana, será republicana”, era uma das frases mais repetidas na praça onde continuam a chegar pessoas. “Referendo já”, lia-se em muitos cartazes.
Protesto similar congregou milhares de pessoas na Praça da Catalunha, no centro de Barcelona, onde além das bandeiras tricolores (vermelhas, amarelas e roxas) da 2.ª republica se viam bandeiras independentistas catalãs e cartazes em prol da independência na Catalunha. E estes manifestantes põem o dedo na ferida, neste momento conturbado, já que ninguém teve a lucidez de colocar em discussão a matéria de regime. E agora profere-se em direção ao Príncipe o que nunca se disse ao pai: “Felipe, querido, ninguém te elegeu”. Insiste-se na não eleição, problema que nunca se colocou ao rei.
Durante as manifestações multiplicaram-se os ‘tweets’ e as partilhas de informações relativas ao referendo, com o ‘tag’ III republica a tornar-se um dos mais citados no mundo, a par de ‘tags’ como el rey abdica e filipe VI. E, logo que o primeiro-ministro comunicou a decisão de renúncia do soberano, surgiram espontaneamente nas redes sociais os protestos, marcados para várias localidades espanholas e várias cidades europeias, incluindo o Porto e Lisboa.
Depois da abdicação do rei da Espanha, o seu filho mais velho (do género masculino) será declarado o novo Rei, por herança, mas com a formalidade do voto pela maioria dos elementos das cortes.
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Dada esta anormalidade democrática, provocada motu proprio pelo rei, as redes sociais responderam convocando protestos em todo o país para pedir um referendo sobre a monarquia.
“Após 39 anos de falsa democracia, após 39 anos de monarquia, cai o bipartidarismo e cairá a monarquia. Agora chegou o tempo de um processo constitucional e uma democracia real” – explica uma das notas distribuídas.
Nas manifestações madrilenas, estiveram, entre os manifestantes, líderes de várias forças políticas que advogam a realização de um referendo sobre o futuro modelo de Estado em Espanha, incluindo Cayo Lara, responsável da Esquerda Unida (IU). Esteve ainda presente o co-porta-voz federal da plataforma Equo, Juantxo López de Uralde.
Têm os ativistas a consciência clara de que a República ainda não chegou, mas hoje está mais próxima com a abdicação do rei, pelo que é legítimo e necessário dar voz ao povo. No entanto, a par dos protestos estão a ser partilhadas pelas redes sociais duas petições a favor de um debate parlamentar sobre o futuro modelo de Estado em Espanha, que naturalmente não afaste a realização de um referendo sobre a monarquia. As petições, oito horas depois da abdicação de Juan Carlos, já reuniam mais de 120 mil assinaturas.
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Por fim, leia-se o texto real, assinado por Juan Carlos e entregue em tempo ao primeiro-ministro, Mariano Rajoy: “Para os efeitos constitucionais procedentes, adjunto o escrito que li e entrego ao senhor presidente do Governo neste ato, mediante o qual lhe comunico a minha decisão de abdicar da Coroa de Espanha”.
É óbvio que este emérito não o será pelos mesmos motivos que levaram Bento XVI à renúncia pontifical nem Juan Carlos será substituído por via eleitoral (o sucessor está definido), muito menos se recolherá em oração num qualquer mosteiro madrileno ou catalão.

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