Na entrevista concedida pelo Papa ao
correspondente da SIC em Jerusalém Henrique
Cymerman, publicada no jornal La Vanguardia e passada naquela estação televisiva,
no passado dia 13, Francisco referiu a carta pastoral Réhabiliter la politique do episcopado francês, de
1999. E proferiu este juízo avaliativo: “É um belíssimo texto que faz a gente
dar-se conta de todas essas coisas”.
Ora,
quando os venerandos sumos pontífices romanos fazem questão de declarar que a
Igreja não tem uma função política, mas ensinam que os leigos devem inserir-se
na política e contribuir para a modulação da mesma segundo critérios
evangélicos, estão a professar a dimensão política da Igreja. É conveniente
pensar e sentir que o maior número de pessoas no interior da Igreja é formado
pelos leigos. Por outro lado, torna-se pertinente atentar no facto de há muito
se ter esbatido, ou mesmo abolido, a distinção abissal entre a Igreja docente e
a Igreja discente, em que a primeira era constituída pelo Papa e pelos bispos
em união como ele, e a segunda, pelos padres e leigos. É claro que os
sacerdotes participavam do múnus de docência por mandato dos bispos (o pregador
tinha de ser encartado e os párocos, por si ou pelos sacerdotes que com eles
cooperassem, faziam a prática dominical na missa e encarregavam-se das
catequeses de acordo com os catecismos aprovados pelos bispos). E os leigos
puderam, no segundo quartel do século XX, organizar-se em “ação católica”, por
mandato da hierarquia, para chegarem aos setores aonde a hierarquia não
conseguia chegar, segundo o ditame: “Há caminhos não andados que esperam por
alguém”.
Hoje,
sem minorar o papel específico da hierarquia, cabe a todo o Povo de Deus e a
cada um dos seus membros, graças à incorporação em Cristo pelo Batismo, a
participação ativa no tríplice múnus de Cristo: ensinar, santificar e dirigir.
Pelo que o leigo, quando imerso nas realidades temporais, não deixa de agir, se
o quiser e puder fazer, in persona
Ecclesiae – é óbvio – sem a esgotar e sem deixar de ficar sujeito à
correção fraterna. Por isso, lhe cabe a interiorização e utilização da metodologia,
em prática na Ação Católica, do “ver, julgar e agir” e, sobretudo, a fazer seu
o lema de Sá Carneiro:
O que não posso, porque não tenho esse direito, é calar-me, sob que
pretexto for.
Depois,
Suas Santidades, autolegitimam-se para intervir junto dos Estados com o
argumento de que, não tendo a Igreja uma missão de caráter estritamente político
e sendo a sua uma missão eminentemente religiosa, apesar de tudo, ela é perita
em humanidade, pela experiência multissecular que adquiriu, e professa os
princípios e valores evangélicos que têm necessariamente consequências no devir
social. É natural que a luta pela justiça, a tomada de posição contra a
opressão, a exploração e a repressão, a sua colocação na denúncia da miséria e
a solidariedade com os pobres e deserdados da sorte ou da sociedade, a
escalpelização da economia que mata ao centrar-se na idiolatria do dinheiro – tudo
isto constitua o envolvimento em matéria política. Não constitui
necessariamente, como é razoável, a agremiação em torno de um projeto político
de sociedade em concreto, sob uma bandeira político-partidária, com a força
organizativa que lhe advém da ideologia específica e com os limites que um estreito
ângulo de visão comporta. A projetos desses provavelmente a hierarquia não
deverá emprestar a liderança de topo nem mesmo dar-lhe a mão, a não ser in extremis quando estiver em perigo a
identidade e a dignidade do povo. Mas os leigos devem empenhar-se social e
politicamente segundo a sua vocação, a disponibilidade e a avaliação que
fizerem da necessidade de intervirem desta ou daquela maneira, cabendo-lhes a
obrigação de não se deixarem acorrentar por matrizes de injustiça e/ou por
desvios de metas e caminhos antievangélicos. E a hierarquia, não devendo
abraçar, por princípio, projetos de limitação partidária, para não fomentar ou
favorecer divisões desnecessárias, deverá intervir sempre que seja necessária a
sua mediação em situações de conflito, promover a coexistência e a convivência
de todos e usar o poder da palavra.
Depois
de todo este arrazoado, não posso deixar de afirmar que a missão da Igreja,
sendo radicalmente religiosa e humanitária, não deixa de ser eminentemente
política. Veja-se o testemunho do Papa Francisco quando o entrevistador o
questionou a este respeito:
Vieram muitos [líderes políticos] e é interessante a variedade. Cada
qual tem sua personalidade. Chamou-me a atenção um facto comum aos políticos
jovens, quer sejam de centro, de esquerda ou de direita. Talvez falem dos
mesmos problemas, mas com uma nova música, e gosto disso, me dá esperança,
porque a política é uma das formas mais elevadas de amor, da caridade. Porquê?
Porque leva ao bem comum. E uma pessoa que, podendo fazê-lo, não se compromete
na política com o bem comum, é egoísmo; ou que usa a política para o bem
próprio, é corrupção. Há 15 anos, os bispos franceses escreveram uma carta
pastoral intitulada “Réhabiliter la politique”
[Reabilitar a política]. É um belíssimo texto que faz a gente dar-se conta de
todas essas coisas.
O homem é, por
natureza, um ser político e social, conforme vêm afirmando os filósofos. Sendo
assim, ele sempre está envolvido nalguma atividade relacionada com as outras
pessoas: jamais pode ser comparado a uma ilha, onde refugiado no seu pequeno
mundo possa viver a sua vidinha longe de tudo e de todos. Aliás, como poderia
sobreviver sem a teia de relações e permuta de bens e serviços?
Fazendo questão na
reivindicação de seus direitos inalienáveis e protestando o cumprimento de seus
deveres intransmissíveis, o homem de hoje tem uma vida de alegrias ou
dissabores, realizações ou frustrações – frutos dos reflexos de seu caráter,
pensamentos e atitudes, bem como das motivações daqueles que o cercam e das
vicissitudes inerentes às circunstâncias por que passa. Se a miséria dos nossos
pobres não é causada pelas leis da natureza, mas pelas nossas instituições,
grande é a culpa dos homens, já que as instituições não existem nem funcionam
sem os homens, que devem colocar acima de tudo o bem comum, o bem-estar de
todos e de cada um, não deixando ninguém para trás.
Ora, para que a
política funcione como arte de conduzir os povos e prestigiar as instituições
de modo que elas funcionem ao serviço das pessoas, assente num ciência política
consistente e numa conceção de estado de direito democrático social, é
necessário que o poder político se institua com determinadas caraterísticas:
tenha origem na eleição democrática e não em arremedilho eleitoral; se assuma
como verdadeiro poder e não como palco de compadres e roda de lacaios (sirva e
não se sirva); pratique a justiça social pela via da audição, da legística e da
administração da justiça comutativa (e não se enclausure na sua torre de marfim);
não se deixe manobrar pelos poderes económico-financeiros ou pela manipulação
da Comunicação Social; e se estribe numa ética em que as pessoas estejam no
centro, a começar pelas que a sociedade tende a pôr à margem, pois como dizia
Demóstenes, é necessário que “os
princípios de uma política sejam justos e verdadeiros”.
Ora, a ausência do autêntico
poder político (que não se banalize ou “arrapaze”) boicota a existência e o
exercício de qualquer
liberdade, exceto a liberdade dos mais fortes ou dos chamados chicos espertos.
Talvez por isso se afigure redutora a clássica visão liberal da liberdade como
mera preservação de uma esfera pessoal, impedindo a interferência de outros,
incluindo a do Estado. Nem se perspetiva como razoável encarar o poder político
como um mal necessário ou mal a evitar, na medida do possível. A política e o
poder são – ou melhor, devem ser – algo de positivo.
E, quando se jogam
coisas consideradas muito importantes, como nos anos seguintes ao 25 de Abril,
a política é preocupação obsessiva de muitos e, por consequência, muitas pessoas
de alta envergadura se deixam atrair para o campo político. Porém, quando se dá
a normalização democrática dos países, como é o caso de Portugal e de Espanha,
ou quando se tem a perceção de que os centros de decisão estão longe das nossas
periferias existenciais do nosso quotidiano, como é o facto alegadamente
desejado pelo povo da adesão à União Europeia, a política perde o seu lado mais
dramático e apaixonante. Assim, muitos, porventura os melhores, afastam-se
desta arena por desencanto e desinteresse. E galopa a abstenção em atos eleitorais,
tornando-se notoriamente maioritária. Parece um fenómeno natural, dado que a
política não é tudo na vida, nem é saudável viver em permanente agitação coletiva.
Mas o exagero da demissão cívica dá azo à degradação do espectro político ou ao
seu vazio. E a degradação tende a acentuar-se e o vazio a ser preenchido de
qualquer maneira.
E este mal torna-se
generalizado. “O sentido do político tende a degradar-se” – afirmava a Comissão
Social do Episcopado católico de França no documento há pouco referido. Os
bispos franceses apontam sintomas: a impressão generalizada de que os políticos
são impotentes para resolver os problemas, a sensação de distância crescente
entre o homem comum e os centros de decisão (levando ao absentismo e à queda da
militância), a corrupção e os escândalos... “A democracia parece envelhecida e a
sofrer de anemia, diziam aqueles bispos, proclamando ser urgente reabilitar a
política e construir uma ligação ativa entre ela e a vida quotidiana dos
cidadãos”.
Ora, aquilo que os
bispos afirmavam há quinze anos tem hoje plena aplicação. O vazio político foi
preenchido por agentes medíocres, os quais, ao serem advertidos por aqueles que
poderiam funcionar como velhos senadores, ou ignoram suas chamadas de atenção
ou os pretendem silenciar com o argumento de que o seu tempo já passou.
Provindos das juventudes partidárias, sem suficiente experiência de vida, sem
caldo profissional consistente e sem percurso académico relevante, almejam
visibilidade pública para se alcandorarem a lugar de relevo na esfera
internacional, na área da gestão de topo empresarial ou nos altos escalões da
administração pública. Não se pretende ser governante; pretende-se passar pela
governança para atingir patamares de notoriedade e alcançar uma situação de
conforto paraprofissional. E os aparelhos partidários propõem a exclusividade
da atividade política, não pelas melhores razões, mas basicamente para preparar
a sucessão e, a seu tempo, alcançarem os altos lugares então disponíveis. E,
como a preparação técnico-política não se constitui em prioridade, multiplicam-se
as consultorias público-privadas no Estado para disfarçar a onda de
mediocridade e incompetência, com tudo o que isso acarreta de aproveitamento
dos grandes grupos económicos e profissionais. Depois, surge a guerrilha
institucional: Presidente propõe ineficazmente consensos e cola-se a um setor
do poder; os tribunais remetem para “os políticos” a culpa de todos os males da
justiça; Governo transforma derrota de moção de censura em vitória de moção de
confiança; Parlamento culpa o Governo da insanidade da legislação que o
Parlamento aprova; e grupos de deputados e/ou Provedor de Justiça utilizam a
figura do pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade das leis. E
as instâncias internacionais, com o beneplácito do Governo e silêncio do
Presidente, atacam vergonhosamente o Tribunal Constitucional, que o
Primeiro-Ministro recorrentemente questiona. Nos últimos dias, uma
vice-presidente do partido mais votado nas últimas eleições legislativas vem
dizer que os juízes do Tribunal Constitucional, quando extrapolam as suas
competências judiciais de apreciação da constitucionalidade, devem ser sofrer
as respetivas sanções (Quem as determinaria?). E argumenta acusando os juízes
escolhidos pelos deputados do “partido” de traírem a filosofia do mundo que
enforma o partido que os escolheu para o desempenho do cargo, como se os juízes
na sua decisão tivessem de ser telecomandados!
Há, pois, que
reabilitar a política para a reconfigurar no seu pendor mais nobre e eficaz – a
verdadeira “demagogia” – “antropagogia” e “coinonagogia” – enquanto condução
das pessoas e da sociedade, respetivamente.
Sabes, em que site posso ler na integra o Reabilitar a politica?
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