De acordo com a
informação da agência Ecclesia, a
Assembleia da República aprovou, no dia 27 de junho, a instituição do Dia do Peregrino, a celebrar a 13 de
outubro. A iniciativa decorre do projeto de resolução n.º 1050/XII, da maioria
PSD/CDS, que visa “dignificar o papel do peregrino na construção da sociedade
portuguesa”, pelo que recomenda
(trata-se somente de uma recomendação!) ao Governo a instituição do Dia do Peregrino.
O texto justifica a
iniciativa com a verificação de que, em Portugal, “existe uma forte tradição na
realização de peregrinações cristãs direcionadas para os mais variados locais
de culto, com destaque para aquelas que decorrem no Santuário de Fátima”. E
acrescenta que a
condição de peregrino “não se esgota na intenção de caminhar na direção de um
lugar sagrado”, antes, “o ato de peregrinar abrange
uma amplitude que vai muito para além da condição de crente de quem o pratica,
abrangendo uma dimensão social, cultural e económica que se deve também
valorizar”.
O projeto de resolução em causa passou
com os votos da maioria e do PS, e com a abstenção do PCP, BE e PEV. No
entanto, 26 deputados socialistas abstiveram-se, contrariando o sentido de voto
da sua bancada, entre os quais se contam: Jorge Lacão, Pedro Silva Pereira,
Pedro Nuno Santos, Ferro Rodrigues, Ana Catarina Mendes, Eduardo Cabrita e Ana
Vitorino. E quatro deputados, também do PS – Pedro Delgado Alves, Marcos
Perestrello, Isabel Moreira e Sérgio Sousa Pinto – votaram contra.
Não vendo, apesar das
justificações apresentadas, interesse especial nesta iniciativa parlamentar e
consequente tomada posição governativa futura, devo, no entanto, pronunciar-me
criticamente sobre a respeitável posição dos deputados que votaram contra e dos
que optaram pela abstenção. Uma vez que a questão se colocou, ela deve ser convenientemente
encarada dos pontos de vista epistemológico e pragmático. Para tanto, é
conveniente proceder a um pequeno excursus
sobre o sentido das noções de peregrino e peregrinação, como se explana a
seguir.
***
É certo que os termos peregrino e peregrinação têm hoje uma conotação religiosa, mas nem sempre assim
foi. E essa conotação hodierna não esgota o sentido religioso que se lhe
atribui nem é assumida exclusivamente nesse sentido por Cristo, segundo o
Evangelho de Mateus, “era peregrino e agasalhastes-me” (Mt 25,35; cf
25,38.43.44). Neste passo evangélico, o peregrino é aquele que está em penúria
e desconforto, porque se encontra fora de casa e sem recursos para se proteger,
abrigar e agasalhar. Do lado da caminhada, partilha da situação e dificuldade
do caminhante para um santuário ou para uma festividade, para uma feira, para a
leira que está longe do povoado, para o exílio. Eventualmente, pode sofrer
semelhante situação o aventureiro, o emigrante e o imigrante e até o turista. A
tradição portuguesa conta com o precioso contributo de outros viandantes que
prestaram um serviço inestimável às populações mais arredadas dos benefícios da
civilização e do progresso, como os almocreves, os azeméis, os cantores e
artesãos ambulantes e, ainda hoje, a plêiade de carteiros, estafetas e inúmeros
bate-portas, que nos permitem não sair da nossa zona de conforto, mas
satisfazer muitos dos nossos encargos, apesar de muitos nada mais fazerem do que
incomodar.
Também, o cristianismo, na
esteira de filósofos como Platão, considera a vida na Terra uma constante
peregrinação que termina no momento em que o homem regressa ao híperurânio
platónico ou chega ao patamar do paraíso prometido e espiritualmente almejado,
preparado para os homens desde o princípio do mundo (cf Mt 25,34).
Qualquer dicionário de
latim-português nos fornece suficientes subsídios para o entendimento do
significado do termos acima grifados e na pluralidade de sentidos explicitados.
Neste caso, podemos ater-nos ao de Francisco Torrinha, de 1945.
Devemos começar por afirmar que
tudo se radica nas palavras latinas “ager,
agri” (campo, terreno, território…) e a preposição “per” (através de,
por…), que nas palavras derivadas serve de prefixo. Assim, se formou o verbo “peragrare”, que significa percorrer
(viajando), atravessar, visitar sucessivamente; e o nome “peragratio, onis” (ação de percorrer, percurso). Depois, formou-se
o advérbio “peregre” (por influência
de longe e com metafonia de “a” para
“e”: *pero, longínquo + ager – no campo, no estrangeiro); e,
como derivados de “peregre”, os
adjetivos “peregrinus” (que viaja no
estrangeiro, que vem do estrangeiro, estrangeiro, estranho, bárbaro, não
cidadão romano) e “peregrinabundus”
(dado a longas viagens, que percorre terras longínquas, que corre terras
viajando), o verbo “peregrinari” (verbo depoente: andar em viagem, viajar,
viajar pelo estrangeiro, percorrer, andar, estar ou viver no estrangeiro) e os
nomes “peregrinatio, onis” (longa
viagem, grande viagem, peregrinação, exílio, viagem pelo estrangeiro), “peregrinator, oris” (o que viaja muito,
o que corre terras, o que é dado a largas viagens) e “peregrinitas, atis” (condição, costumes, moda, acentuação ou falar
de estrangeiro). É de reparar que o adjetivo peregrinus (adjetivo da primeira classe), como os termos da mesma
família, consolidam a metafonia do “a” em “e” por influência do “i” no corpo da
palavra.
Na língua portuguesa, o termo “peregrino” surge na primeira metade do
século XIII, para denominar os cristãos que viajavam a Roma (que passaram a
chamar-se também romários ou romeiros e a sua ação romaria ou romagem – termos esses derivados da palavra “Roma”) ou à
Terra Santa (onde
atualmente se encontra o Estado de Israel e os Territórios Palestinianos) para
visitar os lugares sagrados, umas vezes como castigo autoimposto com o escopo
de redenção de determinados pecados e outras vezes para cumprir penas canónicas.
Desses peregrinos surgiria mais tarde a ideia e o movimento bélico das Cruzadas, com vista à “reconquista” dos
lugares que os cristãos consideravam santos e que estavam em poder de islâmicos.
Porém, o ato de peregrinar e as
peregrinações formais ocorrem desde os tempos mais remotos, mesmo nos chamados
tempos primitivos em que predominavam os costumes ou ritos pagãos, bem como no
judaísmo (neste caso, em relação a Jerusalém onde estava o Templo, Lc 2,22).
Existem escritos de locais de peregrinação muitas vezes ofuscados pela própria cristianização,
como é o caso da Catedral de Santiago de Compostela, que
dizem ter sido construída em sítio onde passaria antes uma outra rota mais
antiga e pagã, a da peregrinação à Finisterra (fim-da-terra, cabo do mundo), na costa
mais ocidental da Europa, para ver o deus Sol a “morrer” no mar e que no dia
seguinte ressuscitaria no oriente, nos territórios do sol nascente. O
designativo de Sol Nascente é
atribuído pela Bíblia ao Messias vindouro, que a Liturgia Católica, apoiada nos
escritos neotestamentários, aplica a Jesus Cristo.
As primeiras peregrinações
cristãs datam
do início do século IV (quando o Cristianismo ganhou carta de alforria, tornando-se religio
lícita pelo édito de Milão em 313,
de Constantino, já que, antes, era a religião clandestina das catacumbas romanas),
e tinham por destino a Terra Santa (a mais conhecida e a primeira a deixar
relato de peregrinação é a hispânica Erétria, uma provável familiar de
Teodósio I, imperador romano, que tornou o cristianismo religião oficial do
império). Mais tarde, tiveram grande incremento mercê da pregação de São
Jerónimo.
Por outro lado, as peregrinações
começaram também abranger locais onde estavam sepultados os apóstolos, os
mártires e outros santos, com destaque para
lugares onde se diz ter aparecido a Santíssima Virgem Maria ou onde foi
encontrada misteriosamente uma imagem sua.
Em Portugal, são muitos os lugares de peregrinação. O destaque vai necessariamente para o Santuário de Fátima, que
emparceira em volume e notoriedade com o Santuário de Lourdes, em França. No
entanto, não podem ignorar-se lugares de peregrinação, romagem ou romaria como:
Abadia (Amares); Almortão (Idanha-a-Nova); Beata Alexandrina de Balazar (Póvoa
de Varzim); Bom Jesus (Braga); Cárquere (Resende); Cerejais (Alfândega da Fé);
Coração de Jesus (Ermesinde); Cristo-Rei (Almada); Lapa (Sernancelhe); Monte da
Virgem (Vila Nova de Gaia); Peneda (Arcos de Valdevez); Penha (Guimarães); Remédios
(Lamego); Sameiro (Braga); Santa Luzia (Viana do Castelo); São Bento da Porta
Aberta (Terras do Bouro); e tantos outros.
Para peregrinar em sentido
religioso, há que ter em conta que não se trata apenas do ato de caminhar (no
caso da peregrinação a pé), ou executar um trajeto com um determinado número de
quilómetros. É característica inerente ao peregrinar a motivação “por” ou “para
algo”.
A peregrinação tem, assim, um
sentido e um valor acrescentado que é necessário descobrir por cada pessoa que
a empreende. Tal não significa que quem se encontre a viajar sem rumo, sem
destino ou sem motivação não precise de acolhimento, apoio e orientação.
Ao conceito de peregrino
corresponde genericamente a situação do homem sobre a terra que perfaz o seu
tempo de provações para merecer a Terra Prometida, à maneira dos hebreus no
deserto após o êxodo do Egito, onde eram oprimidos pelo poder faraónico (Ex
7,1ss). O termo “peregrino”, em
conformidade com o excursus
etimológico percorrido acima, designa aquele que se sente estranho ou
estrangeiro no sítio ou no meio onde está ou vive e, por conseguinte, mais não
faz do que procurar a cidade ideal. A carta
a Diagoneto (entre os séculos II e III ) afirma categoricamente que os
cristãos estão no mundo, mas vivem como se não foram do mundo:
“Vivem em sua respetiva pátria, mas como estrangeiros.
Participam de todos os deveres como cidadãos e suportam as obrigações como
estrangeiros. Qualquer terra estrangeira é pátria para eles e qualquer pátria
lhes é terra estrangeira. Casam-se como todos os outros e geram filhos, mas não
os abandonam. Têm em comum a mesa, mas não o leito. Vivem na carne, mas não
segundo a carne. Passam a vida na terra, mas são cidadãos do céu.”. (vd http://gracaquebasta.blogspot.pt/2007/06/carta-diagoneto.html, ac.2014.06.28).
O termo “peregrino”
exprime assim, além do caráter transitório de uma situação existencial, o desprendimento
interior em relação ao presente e a ligação a fins escatológicos e de natureza
superior. A Alma de peregrino pode
significar a conformação com um idealismo um tanto sentimental, aliado a uma
certa utopia (mas o homem é também o sujeito que sonha, imagina, idealiza – o que
também contribui para a realização humana). Mas essa marca de peregrino vem
conotada com as ideias de expiação e purificação, contra qualquer tipo de luxo
ou ostentação, bem como a de preito de homenagem àquela entidade (Cristo, Maomé,
Osíris, Buda – ou seus enviados) que santificou os comummente reconhecidos
lugares de peregrinação, a da côngrua identificação pessoal com o titular
desses lugares e a da assimilação de suas diretrizes.
O cajado a que se arrima o peregrino simboliza a prova de resistência,
o despojamento e o amparo de que minimamente necessita; e o bornal com o cantil,
a reabastecer de vez em quando, representam o mínimo de víveres exigíveis para
aguentar a caminhada. (cf Chevalier, J e Cheerbrant, A – Dicionário dos Símbolos: Teorema, 1994; cf http://pt.wikipedia.org/wiki/Peregrina%C3%A7%C3%A3o,
ac.2014.06.28).
***
Em face do exposto, é de concluir o seguinte:
Não parece essencial ou pertinente a criação do Dia do Peregrino, sendo censurável a
iniciativa da maioria parlamentar se o que a moveu foi a esperteza saloia de
contabilizar ganhos políticos ante um eleitorado, sensível a estas matérias,
que a penalizou eleitoralmente por duas vezes consecutivas. Se assim for,
estamos perante uma atitude – não demagógica, porque essa significaria uma arte
apurada de condução do povo – eminentemente provinciana e de âmbito supinamente
paroquial no pior sentido do termo (que, em si, também o tem de positivo).
Os senhores deputados que se refugiaram no voto contra ou na abstenção, uma vez
levantada a questão, deveriam assumir, do meu ponto de vista, outra postura. Se
o problema era responder a uma provocação, não lhes cairiam os parentes na lama
se votassem a favor, embora com necessária declaração de voto a denunciar a
provocação e aquela atitude provinciana. Se o motivo assenta efetivamente em
valores republicanos como a laicidade, a secularidade ou a não confessionalidade
do Estado, tenho de discordar pelos seguintes motivos:
Não se trata de princípios absolutos, já que devem articular-se
com outros valores como os da tolerância e convivência, e o do respeito pelas
tradições ancestrais e pela idiossincrasia popular.
Contrariar a ideia de peregrinação não contribui pragmaticamente
em nada para a mais-valia de progresso que as reformas e as revoluções queiram
implementar em termos civilizacionais e culturais no Estado e/ou no povo.
Como se pode verificar pelo conteúdo do excursus praticado, as ideias de “peregrinação” e de “peregrino”,
sem as negarem, ultrapassam em larga medida as malhas da religiosidade.
No quadro da laicidade positiva, ultimamente definida e
reconhecida, não é crível nem desejável que a República não preste um serviço (ou
apoie as entidades disponíveis par o prestar) de apoio, acolhimento e
orientação aos inúmeros peregrinos (sobretudo os que marcham a pé) rumo a
santuários ou a celebração de efemérides significativas para o seu credo.
Não deve a República desperdiçar mais uma oportunidade que
lhe é oferecida no sentido da reflexão em ordem ao combate à exploração que
alguns fazem sobre a situação dos peregrinos a pé, cobrando-lhes mais que o
devido ou negando o atendimento àqueles que legitimamente viajam em autocarro.
Há dias de tudo: do pai, da mãe, do animal, do professor, do
estudante, do enfermeiro, do bombeiro, etc. Porque não o dia do peregrino? Que encargo traz este? Que engulho cria?
Não é decente responder a uma atitude provinciana com uma postura
de urbanismo exacerbado, a coberto da confissão do mais fundamentalista
republicanismo.
Ademais, interrogo-me se os candidatos a deputados mantêm
esse escrupuloso prurido republicanicista quando, a nível local, visitam bispos,
feiras, igrejas, missas, procissões, centros paroquiais, romarias, etc. Ou será
que o voto, e só o voto, justifica e republicaniza tudo?
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