quinta-feira, 26 de junho de 2014

A “ocidade” de certas declarações públicas

Portugal recebeu recentemente a visita do Presidente da República da Alemanha. Não discuto a validade da visita nem o sentido de hospitalidade com que o Chefe de Estado estrangeiro foi acolhido pelas diversas entidades portuguesas.
Há, no entanto, alguns aspetos que merecem alguma reflexão crítica, tais como a vanidade de alguns aspetos de agenda como a “ocidade” de certas declarações.
Os atos oficiais ligados à visita presidencial alemã, que foi classificada como “visita de negócios” (que nem por isso deixa de ser uma visita de chefe de Estado), ficaram ofuscados com o acolhimento nas instalações da fábrica de Palmela – o que, embora constitua facto de relevo na relação comercial entre os dois países e uma considerável valia de índole económica para a República Portuguesa, não se confina ao conteúdo estrito da missão do Estado, nomeadamente nuns países que privilegiam a economia de mercado e a autonomia da mesma em relação aos poderes políticos, ficando o Estado com o papel de regulador e de garante do desígnio nacional e do lançamento da estratégia global. Pode objetar-se que não é bem assim, dado que o poder económico-financeiro condiciona fortemente o devir do Estado, num mundo em mudanças profundas. Será certo, mas não me apraz ter de reconhecer que ao Chefe de Estado alemão fique reservado o mesmo papel que ao Presidente da República de Portugal: visitar umas unidades de produção, fazer umas inaugurações de empreendimentos de incidência cultural e social visitar umas autarquias, endereçar umas mensagens – deixando a inauguração de obras públicas ou semipúblicas de significado para o regime para o chefe de governo ou para os ministros das respetivas pastas. No caso da Alemanha, o Presidente é eleito, não por sufrágio direto e universal, mas por um colégio eleitoral, que na sua grande maioria mobiliza o voto dos deputados. No entanto, a Alemanha tem uma história e uma dimensão que não se compadecem com perspetivas de âmbito provinciano ou, como sói dizer-se, de horizonte paroquial. O caso de Portugal é politicamente mais aberrante, já que o Presidente “é eleito por sufrágio universal, direto e secreto dos cidadãos portugueses eleitores recenseados no território nacional, bem como dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro”, tendo “em conta a existência de laços de efetiva ligação à comunidade nacional” (vd CRP, art.º 121.º), o que lhe confere uma legitimidade igual ou mesmo superior à do Primeiro-Ministro e demais governantes, cuja legitimidade é a que deriva da nomeação presidencial, ouvidos os partidos com assento parlamentar e tendo em conta os resultados eleitorais (cf CRP, art.º 187.º).
Mas, voltando à visita presidencial alemã, é de salientar que mesmo o facto que lhe poderia emprestar relevo circunstancial e económico – o da apresentação do novo modelo de veículo a fabricar em Palmela – ficou desligado factualmente da visita do estadista (ou seja o seu anúncio e apresentação sofreram considerável protelamento), que se limitou a reconhecer o funcionamento exemplar daquela unidade de produção e a considerá-lo um caso da boa relação laboral.
Por outro lado e acima de tudo, merecem referência as declarações dos dois chefes de Estado pelo conteúdo, que, em circunstâncias normais, seria considerado anódino, mas nas atuais ultrapassa as marcas do indecoro.
O Presidente alemão acha que Portugal é um exemplo de recuperação económica e de estabilidade. Perguntamos à custa de quê ou de quem. E a Alemanha tem muito para oferecer ao mundo e a Portugal. E o exemplo concreto é o do investimento e o da formação dual. É de nos interrogarmos se efetivamente o investimento alemão em Portugal é tão determinante e tão sustentável que possa ser considerado exemplar ou se a Alemanha não é detentora de um património cultural, sobretudo imaterial, que tem sido pasto alimentar de cérebros e sensibilidades em todo o mundo. A formação profissional dual não nos vem da Alemanha, muito menos do consulado da chancelerina Merkel e da presidência de Joachim Gauck. Não temos culpa de só muito recentemente alguns empresários e políticos se terem dado conta do sistema da formação profissional dual, com o silêncio do IEFP, entidade tutelar de inúmeros centros de formação profissional e apoiante de outros.
A deputada Gabriela Canavilhas reagiu afirmando que, mesmo na Alemanha, o sistema tem sido objeto de críticas sustentadas, o que não deixa de ser verdade. No entanto, o que me parece ser relevante é que, pelo menos desde 1989, vigoram em Portugal (mercê em muito grande parte da visão e do trabalho do professor Joaquim Azevedo e seus colaboradores) vários sistemas de ensino e formação profissional, salientando-se o regime de aprendizagem, formação em alternância, em escola profissional, em empresa, etc. – habitualmente estribado no sistema da organização modular e consequente modalidade de avaliação (avaliação modular), com dupla certificação, a escolar e a profissional. Este tipo de ensino teve a preocupação de responder às necessidades do mercado de trabalho e da qualificação dos trabalhadores. Em qualquer dos casos, este tipo de ensino, além da formação teórica (que é necessária), exige a ministração de módulos de formação prática, constante de tempos de prática simulada e de prática em contexto de trabalho, ou seja, esta ligada ao mundo empresarial ou dos serviços. Seria pertinente questionar por que motivo nem sempre o empresário acolhe esta modalidade de formação. Será a quebra de produção não compensada? A desconfiança em relação às entidades formadoras e/ou gestoras, nomeadamente escolas? O despique entre os departamentos da tutela estatal? Os comportamentos desviantes? Quer parecer-me que as principais razões passam pela desatenção e pela superficialidade com que se encaram as coisas ou pela generalização dos eventuais erros, confundindo-se a árvore com a floresta e não penalizando os infratores.
Por seu turno, Cavaco Silva produziu declarações não menos miserabilistas. Então dizer que, nestes anos, Portugal aprendeu a lição não constitui um ultraje ao sacrifício a que os portugueses foram obrigados por quem não topou alternativa à instalação e engorda da austeridade? Se ao menos tal asserção fosse produzida numa celebração interna, seria grave por implicar um juízo do Chefe de Estado, mas não tinha a conotação de um juízo enunciado Urbi et Orbi. E referir que, nestes anos, a Alemanha ajudou Portugal sempre que estiveram em causa questões essenciais, além de deselegante, é uma afirmação que contraria a verdade e sanciona a incapacidade negocial do Governo; e é mais um exemplo da subserviência acrítica do Estado soberano aos interesses e exigências de Estados alheios e mais poderosos, alegadamente em nome de erros cometidos pelos desmiolados dos países periféricos, que se limitaram a seguir as diretrizes daqueles em quem acreditaram e que a classe política e os “generosos” poderes financeiros propalaram como boas e necessárias.
Já basta de sermos os bons alunos ou os frequentadores da europeia sopa dos pobres.

Com reis destes, como não poderemos ser fraca gente? Só resta a mudança de políticas, de perspetivas e de representantes do povo… Para quando?

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