Portugal recebeu recentemente a
visita do Presidente da República da Alemanha. Não discuto a validade da visita
nem o sentido de hospitalidade com que o Chefe de Estado estrangeiro foi
acolhido pelas diversas entidades portuguesas.
Há, no entanto, alguns aspetos
que merecem alguma reflexão crítica, tais como a vanidade de alguns aspetos de
agenda como a “ocidade” de certas declarações.
Os atos oficiais ligados à visita
presidencial alemã, que foi classificada como “visita de negócios” (que nem por
isso deixa de ser uma visita de chefe de Estado), ficaram ofuscados com o acolhimento
nas instalações da fábrica de Palmela – o que, embora constitua facto de relevo
na relação comercial entre os dois países e uma considerável valia de índole
económica para a República Portuguesa, não se confina ao conteúdo estrito da missão
do Estado, nomeadamente nuns países que privilegiam a economia de mercado e a
autonomia da mesma em relação aos poderes políticos, ficando o Estado com o
papel de regulador e de garante do desígnio nacional e do lançamento da
estratégia global. Pode objetar-se que não é bem assim, dado que o poder
económico-financeiro condiciona fortemente o devir do Estado, num mundo em
mudanças profundas. Será certo, mas não me apraz ter de reconhecer que ao Chefe
de Estado alemão fique reservado o mesmo papel que ao Presidente da República
de Portugal: visitar umas unidades de produção, fazer umas inaugurações de
empreendimentos de incidência cultural e social visitar umas autarquias,
endereçar umas mensagens – deixando a inauguração de obras públicas ou
semipúblicas de significado para o regime para o chefe de governo ou para os
ministros das respetivas pastas. No caso da Alemanha, o Presidente é eleito,
não por sufrágio direto e universal, mas por um colégio eleitoral, que na sua
grande maioria mobiliza o voto dos deputados. No entanto, a Alemanha tem uma história
e uma dimensão que não se compadecem com perspetivas de âmbito provinciano ou,
como sói dizer-se, de horizonte paroquial. O caso de Portugal é politicamente
mais aberrante, já que o Presidente “é eleito por sufrágio universal, direto e secreto
dos cidadãos portugueses eleitores
recenseados no território nacional, bem como dos
cidadãos portugueses residentes no estrangeiro”, tendo “em conta a existência
de laços de efetiva ligação à comunidade nacional” (vd CRP,
art.º 121.º), o que
lhe confere uma legitimidade igual ou mesmo superior à do Primeiro-Ministro e
demais governantes, cuja legitimidade é a que deriva da nomeação presidencial,
ouvidos os partidos com assento parlamentar e tendo em conta os resultados eleitorais
(cf CRP, art.º 187.º).
Mas, voltando à visita
presidencial alemã, é de salientar que mesmo o facto que lhe poderia emprestar
relevo circunstancial e económico – o da apresentação do novo modelo de veículo
a fabricar em Palmela – ficou desligado factualmente da visita do estadista (ou
seja o seu anúncio e apresentação sofreram considerável protelamento), que se
limitou a reconhecer o funcionamento exemplar daquela unidade de produção e a considerá-lo
um caso da boa relação laboral.
Por outro lado e acima de tudo,
merecem referência as declarações dos dois chefes de Estado pelo conteúdo, que,
em circunstâncias normais, seria considerado anódino, mas nas atuais ultrapassa
as marcas do indecoro.
O Presidente alemão acha que
Portugal é um exemplo de recuperação económica e de estabilidade. Perguntamos à
custa de quê ou de quem. E a Alemanha tem muito para oferecer ao mundo e a
Portugal. E o exemplo concreto é o do investimento e o da formação dual. É de
nos interrogarmos se efetivamente o investimento alemão em Portugal é tão determinante
e tão sustentável que possa ser considerado exemplar ou se a Alemanha não é
detentora de um património cultural, sobretudo imaterial, que tem sido pasto
alimentar de cérebros e sensibilidades em todo o mundo. A formação profissional
dual não nos vem da Alemanha, muito menos do consulado da chancelerina Merkel e
da presidência de Joachim Gauck. Não temos culpa de só muito recentemente
alguns empresários e políticos se terem dado conta do sistema da formação profissional
dual, com o silêncio do IEFP, entidade tutelar de inúmeros centros de formação
profissional e apoiante de outros.
A deputada Gabriela Canavilhas reagiu
afirmando que, mesmo na Alemanha, o sistema tem sido objeto de críticas
sustentadas, o que não deixa de ser verdade. No entanto, o que me parece ser
relevante é que, pelo menos desde 1989, vigoram em Portugal (mercê em muito grande
parte da visão e do trabalho do professor Joaquim Azevedo e seus colaboradores)
vários sistemas de ensino e formação profissional, salientando-se o regime de aprendizagem,
formação em alternância, em escola profissional, em empresa, etc. – habitualmente
estribado no sistema da organização modular e consequente modalidade de
avaliação (avaliação modular), com dupla certificação, a escolar e a
profissional. Este tipo de ensino teve a preocupação de responder às necessidades
do mercado de trabalho e da qualificação dos trabalhadores. Em qualquer dos casos,
este tipo de ensino, além da formação teórica (que é necessária), exige a ministração
de módulos de formação prática, constante de tempos de prática simulada e de
prática em contexto de trabalho, ou seja, esta ligada ao mundo empresarial ou
dos serviços. Seria pertinente questionar por que motivo nem sempre o empresário
acolhe esta modalidade de formação. Será a quebra de produção não compensada? A
desconfiança em relação às entidades formadoras e/ou gestoras, nomeadamente
escolas? O despique entre os departamentos da tutela estatal? Os comportamentos
desviantes? Quer parecer-me que as principais razões passam pela desatenção e
pela superficialidade com que se encaram as coisas ou pela generalização dos eventuais
erros, confundindo-se a árvore com a floresta e não penalizando os infratores.
Por seu turno, Cavaco Silva
produziu declarações não menos miserabilistas. Então dizer que, nestes anos, Portugal
aprendeu a lição não constitui um ultraje ao sacrifício a que os portugueses
foram obrigados por quem não topou alternativa à instalação e engorda da
austeridade? Se ao menos tal asserção fosse produzida numa celebração interna,
seria grave por implicar um juízo do Chefe de Estado, mas não tinha a conotação
de um juízo enunciado Urbi et Orbi. E
referir que, nestes anos, a Alemanha ajudou Portugal sempre que estiveram em
causa questões essenciais, além de deselegante, é uma afirmação que contraria a
verdade e sanciona a incapacidade negocial do Governo; e é mais um exemplo da
subserviência acrítica do Estado soberano aos interesses e exigências de
Estados alheios e mais poderosos, alegadamente em nome de erros cometidos pelos
desmiolados dos países periféricos, que se limitaram a seguir as diretrizes daqueles
em quem acreditaram e que a classe política e os “generosos” poderes financeiros
propalaram como boas e necessárias.
Já basta de sermos os bons alunos
ou os frequentadores da europeia sopa dos pobres.
Com reis destes, como não
poderemos ser fraca gente? Só resta a mudança de políticas, de perspetivas e de
representantes do povo… Para quando?
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