domingo, 22 de junho de 2014

Mendicantes ou mendigos da dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana é um dado axiológico, ou seja, toda a ideia, todo o sentimento, toda a atividade deve tê-la em conta e para ela sem orientar. O mesmo se diga da organização social, da perspetivação política e da mobilização dos recursos, cujo escopo é a pessoa.
Intimamente conexos com o sentido da dignidade estão os diversos exercícios da liberdade, o dever da procura e construção da paz e a valorização da marcha do progresso.
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“A paz na terra” – refere João XXIII na Pacem in Terris – “anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus”. Essa ordem, inscrita maravilhosamente nos seres vivos e nas forças da natureza, é testemunhada pelo progresso da ciência e pelas invenções técnicas, que também evidenciam a capacidade do homem em desvendar esse ordenamento e de produzir os meios adequados para o domínio das forças da natureza e canalização ao serviço do próprio homem – o que releva de outro modo a dignidade da pessoa humana. Esta fica desconstruída e esmilhada quando o desenvolvimento tecnológico se volta contra o homem, coarctando as liberdades e potenciando a guerra.
Por seu turno, o concílio Vaticano II reconhece que os homens estão progressivamente mais conscientes da dignidade da pessoa humana e, cada vez em maior número, reivindicam a capacidade de agir segundo a própria convicção e com liberdade responsável, avessos a qualquer tipo de coação, mas levados pela consciência do dever. Requerem também a delimitação jurídica do poder público, a fim de que a honesta liberdade das pessoas e das associações não seja restringida mais do que o exigido pelas reais necessidades da equânime organização social (cf Declaração Dignitatis Humanae, n.º 1), sobretudo no atinente às questões de defesa e segurança, sobretudo contra os terrorismos, mormente do Estado ou dos grupos económicos e financeiros.
Por outro lado, entre os pressupostos da dignidade da pessoa humana, figura o da liberdade de pensamento e de expressão, incluindo o da liberdade religiosa (ao nível da consciência e da expressão pública, quer em termos pessoais quer em termos comunitários). A esse respeito, o Vaticano II produziu a já referida declaração Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa, e a declaração Nostra Aetate, sobre as religiões não cristãs. Neste segundo documento, os padres conciliares declaram: “Hoje, que o género humano se torna cada vez mais unido e aumentam as relações entre os vários povos, a Igreja considera mais atentamente qual a sua relação com as religiões não-cristãs. E, na sua função de fomentar a união e a caridade entre os homens e até entre os povos, considera primeiro o que têm de comum os homens e os leva à convivência”. E justificam assim o diálogo inter-religioso: “Com efeito, os homens constituem todos uma só comunidade; todos têm a mesma origem, pois foi Deus quem fez habitar em toda a terra o inteiro género humano; têm também todos um só fim último, Deus, que a todos estende a sua providência, seus testemunhos de bondade e seus desígnios de salvação (…). Os homens esperam das diversas religiões resposta para os enigmas da condição humana, os quais, hoje como ontem, profundamente preocupam os seus corações: Que é o homem? Qual o sentido e a finalidade da vida? Que é o pecado? Donde provém o sofrimento e para que serve? Qual o caminho para alcançar a felicidade verdadeira? Que é a morte, o juízo e a retribuição depois da morte? Finalmente, que mistério último e inefável envolve a nossa existência, do qual vimos e para onde vamos? (cf Declaração Nostra Aetate, n.º 1).
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A encíclica Pacem in Terris, já citada, denuncia a clamorosa desordem reinante entre indivíduos e povos, a contrastar com aquela perfeita ordem universal, acima referenciada, “como se as mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força”. Tal desordem manifesta-se nas múltiplas formas de conflito bélico, cuja extensão tem assumido formas variáveis, bem como nas diversas modalidades de exploração política, financeira, económica e social, com destaque para a sujeição laboral e sexual. Isto é contrário à paz e ao dever que impende sobre os filhos de Deus (cf Mt 5,9). No entanto, como ensina a encíclica, o Criador do universo gravou no íntimo do ser humano uma ordem, que sua consciência manifesta e a cuja observância o vincula peremptoriamente: “mostram a obra da lei inscrita em seus corações, dando disto testemunho a sua consciência e seus pensamentos” (Rm 2,15). E ensina o Papa que não poderia ser de outro modo, já que toda a obra de Deus é reflexo de sua infinita sabedoria, reflexo tanto mais luminoso, quanto mais essa obra participa da perfeição do ser (cf. Sl 18,8-11).
Também frequente e erroneamente muitos julgam que as relações de convivência entre os indivíduos e respetiva comunidade política podem reger-se pelas leis das forças e dos elementos irracionais do universo. Ora as leis da convivência, sendo leis de género diferente, devem-se buscar onde as inscreveu o Criador de todas as coisas, a saber, a natureza humana. Essas são leis que indicam claramente como regular, na convivência humana, as relações das pessoas entre si, as dos cidadãos com as respetivas autoridades públicas, as relações entre os diversos Estados, bem como as dos indivíduos e comunidades políticas com a comunidade mundial, cuja otimização é hoje urgentemente postulada pelo bem comum universal. Apesar de inscritas na consciência dos homens, cuja voz nem sempre eles ouvem, elas constam dos livros sagrados e são frequentemente transcritas, no todo ou em parte, para os principais instrumentos de regulação jurídica das relações humanas.
A renomada encíclica, ao “tratar da ordem que deve vigorar entre os homens”, enuncia o princípio axiomático: todo o ser humano é pessoa, sujeito de direitos e deveres. Por consequência, numa convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por isso, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente da sua própria natureza. Logo, trata-se de direitos e deveres universais, invioláveis, e inalienáveis, que garantem o exercício da liberdade e garantem a defesa e segurança de pessoas e bens essenciais. E João XXIII enuncia um conjunto de direitos fundamentais, que recordamos, cabendo a cada um o dever de os reivindicar e exercer, e a outrem, nomeadamente aos poderes, o dever de os respeitar e de facilitar o seu exercício: 
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Direito à existência e a um digno padrão de vida  – que implica o direito à vida, à integridade física, aos recursos correspondentes a um padrão de vida digno: tais como o alimento, o vestuário, a moradia, o repouso, a assistência sanitária, os serviços sociais indispensáveis. Nestes últimos, inclui-se o amparo na doença, invalidez, viuvez, velhice, desemprego forçado e, em qualquer caso, a proibição de privação dos meios de sustento por circunstâncias independentes de sua vontade.
Direitos referentes aos valores morais e culturais  – que implicam o respeito da dignidade e boa fama pessoais; da liberdade na pesquisa da verdade e, dentro dos limites da ordem moral e do bem comum, da liberdade de manifestação e difusão do pensamento, bem como do cultivo da arte; e do acesso à informação verídica sobre os acontecimentos públicos. Deriva também da essência da natureza humana o direito de participar dos bens da cultura e, portanto, o direito à instrução de base e à formação científica técnica e profissional, conforme o grau de desenvolvimento cultural da respectiva coletividade. É preciso garantir àqueles cuja capacidade o permita, o acesso aos estudos superiores, de sorte que possam ascender na vida social a cargos e responsabilidades adequados ao próprio talento e à perícia adquirida.
Direito de honrar a Deus segundo os ditames da reta consciência  – que postula a liberdade de prestar culto a Deus, conforme os retos ditames da própria consciência, e de professar a religião, privada e publicamente.
Direito à liberdade na escolha do próprio estado de vida  – que postula o direito da pessoa de escolher o estado de vida, de acordo com as suas preferências, e, portanto, de constituir família, na base da paridade de direitos e deveres entre homem e mulher, ou então, de seguir a vocação ao sacerdócio ou à vida religiosa. Trata-se de uma prerrogativa não reconhecida aos escravos, o que representava uma significativa recusa do avanço civilizacional. Por outro lado, o pontífice amado pelo mundo inteiro assegura que “a família, baseada no matrimónio livremente contraído, unitário e indissolúvel, há de ser considerada como o núcleo fundamental e natural da sociedade humana”, merecendo, assim, especiais medidas, quer de natureza socioeconómica, quer moral e cultural, que induzam a sua consolidação e amparo no desempenho de sua função. E compete aos pais a prioridade de direito no sustento e educação dos próprios filhos.
Direitos inerentes ao campo económico – cabendo naturalmente à pessoa não só a liberdade de iniciativa, como o direito ao trabalho. Semelhantes direitos comportam a exigência de a pessoa poder trabalhar em condições tais que não se lhe minem as forças físicas nem se lese a integridade moral, como tampouco se comprometa o são desenvolvimento do ser humano ainda em formação, devendo ainda ser facultado às mulheres o trabalho em condições adequadas às suas necessidades e deveres de esposas e mães. Cabe neste âmbito a educação de base para a tolerância e para a paz, mobilizando para o efeito pessoas e estruturas socioeconómicas.
A dignidade da pessoa humana exige o direito ao exercício da atividade económica com sentido de responsabilidade, incluindo o direito à remuneração do trabalho conforme os preceitos da justiça, de que os cristãos devem ser os principais arautos – remuneração que, em proporção dos recursos disponíveis, permita ao trabalhador e à sua família um teor de vida condicente com a mesma dignidade humana. Cita-se, a este respeito, Pio XII, que afirma: “ao dever pessoal de trabalhar, inerente à natureza, corresponde um direito igualmente natural, o de poder o homem exigir que das tarefas realizadas lhe provenham, para si e seus filhos, os bens indispensáveis à vida: tão categoricamente impõe a natureza a conservação do homem”. (Cf Pio XII, Mensagem radiofónica, de 01-06-1941).
Embora da natureza humana se origine o direito à propriedade privada, mesmo sobre bens de produção, como “um meio apropriado para a afirmação da dignidade da pessoa humana e para o exercício da responsabilidade em todos os campos” e igualmente “fator de serena estabilidade para a família, como de paz e prosperidade social”, cumpre “recordar que ao direito de propriedade privada é inerente uma função social”, dado o inquestionável destino universal dos bens da parte do Criador. (Cf Pio XII, id et ib).
Direito de reunião e associação  – decorrente da sociabilidade natural da pessoa humana. A este direito vem associado o de conferir às associações a forma que aos respetivos membros parecer mais idónea à finalidade em vista e de agir dentro delas por própria conta e risco, conduzindo-as aos almejados fins. Na sequência da encíclica Mater et Magistra, afirma-se a indispensabilidade de se constituir uma vasta rede de agremiações ou organismos intermediários entre indivíduos/famílias e Estado, adequados a fins que os indivíduos ou as famílias por si só não possam conseguir eficazmente, que constituam a garantia da salvaguarda da dignidade e a liberdade da pessoa humana, sem lhe comprometer o sentido de responsabilidade.
Direito de emigração e de imigração  ou mobilidade – que implica o pleno direito de cada um estabelecer ou mudar domicílio dentro da comunidade política de que é cidadão e, mesmo quando legítimos interesses o aconselhem, de se transferir para outras comunidades políticas e nelas se domiciliar. Por alguém ser cidadão de um país, não se lhe pode tolher o direito de membro da família humana ou de cidadão da comunidade mundial, no quadro da união dos seres humanos entre si.
Direitos de caráter político  – que decorrem também da dignidade da pessoa e que lhe conferem o direito de participar ativamente da vida pública e de trazer assim a sua contribuição pessoal ao bem comum dos concidadãos, dado que, segundo Pio XII, “a pessoa humana como tal não só não pode ser considerada como mero objeto” da vida social, mas deve ser tida como “o sujeito, o fundamento, e o fim da mesma”, competindo-lhe a legítima tutela dos seus direitos: tutela eficaz, imparcial, dentro das normas objetivas da justiça (Cf Pio XII, Mensagem radiofónica, de 24-12-1944). Segundo o mesmo pontífice, “da ordem jurídica intencionada por Deus emana o direito inalienável do homem à segurança jurídica e a uma esfera jurisdicional bem determinada, ao abrigo de toda e qualquer impugnação arbitrária” (Cf Pio XII, Mensagem radiofónica, de 24-12-1942).
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Apesar de tudo, os Pontífices – Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e Francisco – na esteira de Leão XIII, Pio XI e Pio XII, parecem tentar fazer que lhes doa a voz num clamor constante pela paz, pelos direitos humanos, pela melhoria das condições de vida dos pobres. A estes cada vez mais se junta a enorme plêiade de bispos, sacerdotes e leigos comprometidos a denunciar a dureza de ouvidos ou o empedernimento de corações – tão grande é o poder apelativo do perfume do dinheiro, da soberba da vida, da concupiscência dos olhos e da concupiscência da carne!
Ultimamente, o Papa Francisco condenou o crime organizado, afirmando que o mal “tem de ser combatido e removido”, sendo dever da Igreja fazer com que “o bem prevaleça”; e uniu-se à jornada da ONU pelas vítimas da tortura, que se assinala anualmente no dia 26 de junho, apelando ao compromisso dos cristãos na luta contra um pecado “muito grave”. E D. Manuel Linda, a partir de Fátima, pediu ao Estado que assegure “a dignidade espectável e desejável” que as forças armadas e de segurança necessitam para realizar a “paz e a liberdade”. Tudo gritos de paz, de solidariedade, de liberdade – pro dignitate!

Porque não ouvem os homens, no país e no mundo inteiro, este grito dos mendigos de Deus em prol do homem? Até quando terá de continuar esta cruzada de mendicidade pelas liberdades, direitos e garantias constitucionais inscritas nos documentos regulares da ordem jurídica e política? Será que a economia e a finança querem ficar de fora da ordem humana ou querem mandar nela, determinando-a? Não pode ser, não pode ser! Os direitos e as liberdades não se mendigam; reivindicam-se, conquistam-se, não se alienam.

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