Um poeta lisboeta de
nome ao mesmo tempo Fernando e António, que nasceu no dia de um santo também
lisboeta que, primeiro, se chamou Fernando e, depois, António: o poeta da palavra
feita poesia na senda do santo que fez da palavra doutrina, vida e santidade –
ambas as palavras vertentes conexas da mesma veia divinamente incutida nas
almas superiores…
Pobre Velha Música!
Pobre velha
música!
Não sei por que agrado, Enche-se de lágrimas Meu olhar parado. Recordo outro ouvir-te, Não sei se te ouvi Nessa minha infância Que me lembra em ti. |
Com que ânsia tão
raiva
Quero aquele outrora! E eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora.
Fernando Pessoa, in “Cancioneiro”
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“Pobre velha
música” é poema ortónimo de Fernando Pessoa, sem data, mas publicado na Revista
Athena em dezembro de 1924.
Como em
muitos outros poemas ortónimos (escritos em seu próprio nome), Pessoa usa a
temática da sua própria infância, em contraposição com o presente, considerando
sempre a infância como um “período dourado” da sua vida, que já não vai
regressar mais. Neste caso, o poeta recorda a infância através da música; é a
“pobre velha música” que simboliza esse período. Sabemos, aliás, que a mãe de
Pessoa tocava piano, e há mesmo um poema extremamente tocante que fala
explicitamente da sua mãe a tocar.
Inicialmente,
Pessoa introduz-nos no tema do poema, lembrando a “velha música”, provavelmente
executada pela terna mãe na sua infância, talvez ainda antes de sair de Lisboa
para Durban. A música que ele ouve e escuta no presente é a mesma que ouvia em
criança. A lembrança, embora seja talvez de um período feliz, traz-lhe uma
grande tristeza e uma saudade nostálgica, porque está associada a uma idade
perdida, que nunca mais regressará. A este sentimento de saudade nostálgica e
de tamanha tristeza associa-se a consciência de que nesse seu passado é que ele
era feliz, ao contrário do que hoje lhe acontece.
O início do
poema, partindo duma exclamação em apóstrofe, traduz também a utilização de
duas figuras de estilo, personificação e hipérbole (a “pobre e velha música”).
Esta invocação da música personalizada parece que a aproxima mais dele próprio.
Por outro lado, a hipálage desloca o sentido da pobreza do poeta para o objeto
da recordação: o que é pobre não é a velha música, mas o próprio poeta. A parte
final da primeira quadra parece conter uma anástrofe: troca da ordem das
palavras, quando normalmente se diria “o meu olhar parado enche-se de
lágrimas”.
Pessoa, no
entanto, ao recordar, sente uma estranheza incomum. O facto é que é ele que
sente, mas quem na realidade sentiu verdadeiramente o sentido da música foi
ele, mas numa outra idade. A lembrança é como se fosse uma experiência em segunda
mão, que só pode ser estranha à verdade do que se sente. Aquele “outro” era ele
enquanto criança, e ele recorda-se de si próprio enquanto criança a escutar a
música. Há aqui, mesmo que de maneira menos óbvia, uma antítese entre passado e
presente, que como se encontram. Quando o poeta afirma “Recordo outro
ouvir-te” (isto é, enquanto era criança), está a dar o passo para a exclamação
da última quadra “Com que ânsia tão
raiva / Quero aquele outrora!” – o que revela como ele bem deseja voltar a ser
criança ou regressar ao passado.
Pessoa
deseja, como se viu, o regresso ao passado, mas sabe que esse regresso é
impossível. E simultaneamente tem consciência de que, mesmo que conseguisse
regressar, não conseguiria ser feliz agora, pelo menos tão feliz como dantes. O
seu desejo projeta-se num plano temporal impossível de realizar: ele ser
criança então, mas adulto agora, ao mesmo tempo. O paradoxo é explícito quando
ele diz: “fui-o outrora agora” – associa oximoricamente o passado (atente-se no
pretérito perfeito da forma verbal “fui” e no advérbio conotativo de pretérito
“outrora”!) ao presente (note-se a posição do advérbio “agora”, conotativo de
presente, colocado no fim da quadra e do poema!).
***
Quem nos dera
aquela pobre e velha música poética de Fernando António Nogueira Pessoa! Só nos
dão esta pobre e velha música prosaica da austeridade empobrecedora de Aníbal
Passos Portas Seguro de Sousa Semedo Pinto… Quousque
tandem abutemini patientia populi? (Até quando abusareis da paciência do
povo?).
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