quinta-feira, 12 de junho de 2014

Por ocasião do seu 126.º aniversário, a Palavra a Fernando Pessoa


Um poeta lisboeta de nome ao mesmo tempo Fernando e António, que nasceu no dia de um santo também lisboeta que, primeiro, se chamou Fernando e, depois, António: o poeta da palavra feita poesia na senda do santo que fez da palavra doutrina, vida e santidade – ambas as palavras vertentes conexas da mesma veia divinamente incutida nas almas superiores…

(N: 13.06.1888) 
Pobre Velha Música!

Pobre velha música!  
Não sei por que agrado,  
Enche-se de lágrimas 
Meu olhar parado.  

Recordo outro ouvir-te,  
Não sei se te ouvi 
Nessa minha infância 
Que me lembra em ti.  
Com que ânsia tão raiva 
Quero aquele outrora!  
E eu era feliz? Não sei:  
Fui-o outrora agora.  



Fernando Pessoa, in “Cancioneiro”

“Pobre velha música” é poema ortónimo de Fernando Pessoa, sem data, mas publicado na Revista Athena em dezembro de 1924.  
Como em muitos outros poemas ortónimos (escritos em seu próprio nome), Pessoa usa a temática da sua própria infância, em contraposição com o presente, considerando sempre a infância como um “período dourado” da sua vida, que já não vai regressar mais. Neste caso, o poeta recorda a infância através da música; é a “pobre velha música” que simboliza esse período. Sabemos, aliás, que a mãe de Pessoa tocava piano, e há mesmo um poema extremamente tocante que fala explicitamente da sua mãe a tocar.
Inicialmente, Pessoa introduz-nos no tema do poema, lembrando a “velha música”, provavelmente executada pela terna mãe na sua infância, talvez ainda antes de sair de Lisboa para Durban. A música que ele ouve e escuta no presente é a mesma que ouvia em criança. A lembrança, embora seja talvez de um período feliz, traz-lhe uma grande tristeza e uma saudade nostálgica, porque está associada a uma idade perdida, que nunca mais regressará. A este sentimento de saudade nostálgica e de tamanha tristeza associa-se a consciência de que nesse seu passado é que ele era feliz, ao contrário do que hoje lhe acontece.
O início do poema, partindo duma exclamação em apóstrofe, traduz também a utilização de duas figuras de estilo, personificação e hipérbole (a “pobre e velha música”). Esta invocação da música personalizada parece que a aproxima mais dele próprio. Por outro lado, a hipálage desloca o sentido da pobreza do poeta para o objeto da recordação: o que é pobre não é a velha música, mas o próprio poeta. A parte final da primeira quadra parece conter uma anástrofe: troca da ordem das palavras, quando normalmente se diria “o meu olhar parado enche-se de lágrimas”.
Pessoa, no entanto, ao recordar, sente uma estranheza incomum. O facto é que é ele que sente, mas quem na realidade sentiu verdadeiramente o sentido da música foi ele, mas numa outra idade. A lembrança é como se fosse uma experiência em segunda mão, que só pode ser estranha à verdade do que se sente. Aquele “outro” era ele enquanto criança, e ele recorda-se de si próprio enquanto criança a escutar a música. Há aqui, mesmo que de maneira menos óbvia, uma antítese entre passado e presente, que como se encontram.  Quando o poeta afirma “Recordo outro ouvir-te” (isto é, enquanto era criança), está a dar o passo para a exclamação da última quadra “Com que ânsia tão raiva / Quero aquele outrora!” – o que revela como ele bem deseja voltar a ser criança ou regressar ao passado.  
Pessoa deseja, como se viu, o regresso ao passado, mas sabe que esse regresso é impossível. E simultaneamente tem consciência de que, mesmo que conseguisse regressar, não conseguiria ser feliz agora, pelo menos tão feliz como dantes. O seu desejo projeta-se num plano temporal impossível de realizar: ele ser criança então, mas adulto agora, ao mesmo tempo. O paradoxo é explícito quando ele diz: “fui-o outrora agora” – associa oximoricamente o passado (atente-se no pretérito perfeito da forma verbal “fui” e no advérbio conotativo de pretérito “outrora”!) ao presente (note-se a posição do advérbio “agora”, conotativo de presente, colocado no fim da quadra e do poema!).
***

Quem nos dera aquela pobre e velha música poética de Fernando António Nogueira Pessoa! Só nos dão esta pobre e velha música prosaica da austeridade empobrecedora de Aníbal Passos Portas Seguro de Sousa Semedo Pinto… Quousque tandem abutemini patientia populi? (Até quando abusareis da paciência do povo?).

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