De omni re scibili (de tudo o que se pode saber) é uma expressão atribuída a Pico della
Mirandola, que tinha a veleidade (talvez com razão) de poder discutir qualquer assunto
com qualquer pessoa. Enquadra-se no perfil do homem do Renascimento com um
saber eclético, que hoje diríamos enciclopédico. Olhe-se, em Portugal, para o
caso de Camões cuja produção literária revela uma cultura incontestavelmente
invulgar, apesar de ser difícil encontrar-lhe o rasto de estudos.
A restante parte do enunciado
epigráfico, et inscibili et quibusdam
aliis (e do que não se pode saber e de mais algumas coisas), terá sido sarcasticamente
adicionada por Voltaire para verberar aqueles que se jactam de sábios, quando
na realidade nada sabem ou possuem um saber balofo.
***
O enunciado colocado em epígrafe vem
a propósito de uma sessão do concurso “Quem quer ser milionário?” de há uns
dias. O concorrente, a pergunta de Manuela Moura Guedes sobre a ocupação atual
do candidato ao prémio dos 100 mil euros, respondeu que estava a preparar o
doutoramento em Filosofia. A curiosidade da apresentadora levou-a a questionar
como se decidiu pela Filosofia, que alegadamente “já quase ninguém estuda”, ao
que o doutorando respondeu com a dedicação anterior à Física. Aí, a senhora,
que, à semelhança de outras ocasiões televisivas, parece especializada no de
omni re scibili et inscibili et quibusdam aliis, estranhou, num primeiro
momento, “o que é que uma coisa tem a ver com outra”, mas, num segundo momento,
lá aceitou a explicação induzida de modo demasiadamente humilde pelo
interlocutor através das zonas de contacto entre as diversas ciências com a
Filosofia, a ciência das causas últimas.
Ora, quem estudou História da
Filosofia sabe que durante muito tempo os filósofos, considerados “amigos da
sabedoria” (grego: philós, amigo + sophía, sabedoria), começaram a estudar
o mundo físico, na procura do elemento primordial do mundo, da matéria.
Questionaram-se sobre o mundo físico, visível. Eram os fisiologistas: e uns
adotaram o ar, outros a terra, outros a água e outros o fogo. E vieram os
atomistas, que achavam que o elemento primordial era o átomo. Mesmo Pitágoras,
Sócrates e Platão, que se desprenderam mais do mundo físico (pelo número, pelo
conceito e pelas ideias, respetivamente) não deixaram outras áreas do
conhecimento como a fisiologia, a astronomia, a matemática, a política, a
poesia, a ética, as artes… E Aristóteles, o sábio universal trata um pouco de
tudo, mas faz a sistematização de todas as ciências, as conhecidas de então. E
essa diversidade de conhecimento assumida pelos filósofos persistiu ao longo do
tempo. Basta, a título de exemplo, olhar para Tomás de Aquino, Alberto Magno ou
para os homens do Renascimento e para Descartes e Lavoisier.
Por outro lado, tal como a
Matemática, que se iniciou com as coisas e foi atingindo alto grau de abstração
e de especulação simbólica, também a Filosofia começou a olhar para o mundo e
para o homem, passou a fazer metafísica, no sentido de reflexão sobre o que se
vê e ouve (o homem e os seres que o rodeiam), galgou para o conhecimento da
metafísica, no sentido de atingir o mundo suprassensível, valendo-se da
capacidade de abstração que o homem tem, auxiliada pela lógica e pela teoria do
conhecimento. E, no quadro da metodologia, embora o saber especulativo se funde
principalmente no método dedutivo, já a filosofia escolástica aceitava como
método válido o indutivo. Também se deve dizer que ainda hoje a Filosofia
estuda a cosmologia e, a par da Psicologia científica stricto sensu, temos a Psicologia Racional.
Mal vai ao filósofo, querendo voar
mais alto e mais além, se se perde demasiado na abstração, abandonando por
tempo indeterminado o mundo terráqueo. E mal vai ao cientista, mesmo que
abjure, por desinteressante ou inútil, o saber filosófico, se renuncia de vez à
argumentação baseada na lógica do silogismo simples, truncado ou composto,
mesmo com o risco de cair em eventuais falácias. O homem das alturas tem, de
vez em quando, que olhar para a Terra, para o chão; e o homem da Terra, (como o
homem da mina tem necessidade de vir à tona), deve, de vez em quando, fitar o
firmamento, almejar as alturas.
Tão perigoso se tornará hoje o saber
enciclopédico (dispersante, não aprofundado em quase nada) como o saber
demasiado especializado (perigo que nos espreita atualmente, com pertinência,
pelo estreitamento do campo de conhecimento). Desejável seria o saber
enciclopedêutico, ou seja, o saber do especialista ou do generalista que seja
perito onde, a par da especialização ou do saber generalizante, tenha a
capacidade, mobilizável a todo o tempo, de saber onde, como, quando e junto de
quem encontrar o conhecimento de que necessite, assumir criticamente a
informação prestada, a reter de forma organizada e saber definir prioridades de
aprofundamento, ampliação e ação.
***
A talho de foice e em articulação com
o facto televisivo a que aludi, ora ilustrado com o enunciado epigráfico já
glosado, deixo uma informação sobre o titular histórico do de omni re scibili, que ilustra como, em pouco tempo de vida, um
homem aplicado ao mundo do conhecimento – dos livros, do raciocínio e das
viagens – é capaz de produzir, desafiar, retratar-se, lutar, reconciliar-se,
persistir.
Quem era Pico della Mirandola? De seu nome Giovanni, foi um erudito,
filósofo neoplatónico e humanista do Renascimento italiano, nascido em
Mirandola, a 24 de fevereiro de 1463, e falecido em Florença, a 17 de novembro
de 1494. É considerado o primeiro erudito cristão a mesclar elementos da
doutrina cabalística com a Teologia cristã.
O filho mais jovem de Gian Francesco
I e de Giulia Boiardo, condes de Concordia e de Mirandola, no Ducado de Modena, impunha-se desde
a infância por seus dotes intelectuais a que se aliava uma extraordinária
memória e uns dons artísticos extremamente desenvolvidos. Decidindo dedicar-se
inteiramente aos estudos, com apenas 14 anos de idade, passou a cursar Direito
Canónico na Universidade de Bolonha, com vista à carreira eclesiástica. Porém,
insatisfeito com os estudos demasiado juridicistas, quis aplicar-se à Filosofia
e à Teologia, que lhe despertaram
indizível predileção. Seguidamente, passou 7 anos em viagem por Itália e França,
estudando nas suas principais Universidades – Ferrara, Pádua e Paris – enquanto
se dedicava à aprendizagem das línguas latina, grega, hebraica, árabe e síria.
Com a aquisição, em suas viagens pela
Europa, de cerca de 60 manuscritos alegadamente da autoria de Esdras (o autor
do bíblico Livro de Esdras, com 10 capítulos), sacerdote e escriba judeu, filho
do Sumo-Sacerdote Seraias (2Rs,25,18), Giovanni interessou-se pelo estudo da
Cabala e do Talmud, com o fito de
aliar tal conhecimento místico-religioso à Filosofia.
No objetivo de conciliar Religião e
Filosofia, Giovanni baseava as suas conceções ideológicas principalmente em
Platão, em oposição a Aristóteles, tal como o seu mestre Marcílio Ficino. No
seu entender, deveriam estudar-se a fundo as fontes hebraicas e talmúdicas da
Sagrada Escritura, preservando-se, no entanto, as melhores conquistas da Filosofia
Escolástica – no que se desviava
de algumas normas do humanismo, que pretendia o abandono da Filosofia Medieva.
Tais ideias vêm explanadas no Heptaplus, exposição místico-alegórica da
criação do mundo, no seguimento dos sete sentidos bíblicos, e no De ente et uno, com paráfrases
de várias passagens dos livros atribuídos a Moisés e dos escritos platónicos e aristotélicos.
Com apenas 23 anos de idade, publica
em Roma as controversas 900 teses sob o título de Conclusiones
philosophicae, cabalisticae et theologicae, onde cria ter desvelado as
bases de todo o conhecimento da humanidade (de
omni re scibili), combinando harmoniosamente elementos do neoplatonismo,
hermetismo e cabalismo, a par da lógica, matemática e física. Mais: desafia
quem quer que o queira enfrentar numa discussão pública em Roma sobre as suas polémicas
teses, oferecendo o pagamento das despesas de deslocação donde quer que o
disputante viesse; e publica, nesse mesmo ano o seu estudo De hominis dignitate oratio (discurso sobre a Dignidade do
Homem), que fica a servir de introdução às Conclusiones, cujo tema é hoje assaz versado.
Ao ver 13 das suas 900 teses
consideradas heréticas pela Igreja Católica, pelo que ficava proibido de
prosseguir com as discussões públicas, aceita retratar-se ante uma comissão de
inquérito eclesiástica. Intenta posteriormente uma defesa das 13 teses com o
opúsculo Apologia Ioannis Pici
Mirandolani, concordiae comitis, mas sem sucesso. Descontente, viaja
novamente pela França, retornando a Florença, em seguida.
No termo de sua vida, destrói os trabalhos
poéticos e torna-se acérrimo defensor do Cristianismo contra judeus, muçulmanos
e astrólogos, acabando por sofrer morte precoce, aos 31 anos, sucumbindo a uma
febre, no dia em que Carlos VIII da França entrou em Florença, após expulsar
Piero de Médici.
Na De hominis dignitate oratio,
Giovanni aborda a importância da busca humana pelo conhecimento numa perspetiva
neoplatónica. Afirma que Deus, depois de criar as diversas criaturas, se deixou
possuir do desejo de gerar uma nova criatura, um ser consciente que pudesse
apreciar a criação e dela fruir, mas não havia nenhum lugar vago na cadeia dos
seres criados, desde o verme ao anjo. Então, Deus resolveu criar o homem, à sua
imagem e semelhança (cf Gn 1,26), que, ao contrário dos outros seres, não tinha
um lugar específico nessa cadeia das criaturas (cf Salmo 8). Mas, em vez disso,
o homem era capaz de refletir e aprender sobre si mesmo e sobre a natureza,
além de poder competir com qualquer outra criatura já existente. Destarte,
quando o homem filosofa e utiliza eticamente a vontade, ascende à condição angélica
e compartilha com a Divindade; ao invés, quando falha na utilização do intelecto
e no exercício da vontade, pode degradar-se e descer à categoria do vegetal
mais primitivo. Sendo assim, os filósofos estão entre as criaturas mais
dignificadas da criação, lugar de que ninguém os arredará.
A ideia de que o ser humano, enquanto
criatura de Deus, pode ascender na cadeia dos seres pelo exercício das suas
capacidades intelectuais e volitivas foi uma profunda garantia de dignidade da vida
humana sobre a Terra. A raiz da dignidade, para Pico della Mirandola, reside na
sua asserção de que somente os seres humanos se podem mudar a si mesmos pelo
seu livre arbítrio. Ele verificou, pela análise da história humana, que as filosofias e as instituições
estão em perpétua evolução, demonstrando que a única constante histórica é a
capacidade de autotransformação do homem.
Em sintonia com a crença lúcida e
firme de que toda a criação constitui reflexo especular da Divindade e o homem
pode ser catapultado, pelos seus próprios meios – intecto, vontade e trabalho –
para a proximidade do Deus invisível, a filosofia de Pico della Mirandola teve
uma enorme e peculiar influência nas artes, induzindo a elevação do status de escritores, poetas, arquitetos,
escultores e pintores, como Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo, da situação de
meros artesãos medievais ao ideal renascentista de artistas universalmente considerados
génios, que persiste até aos nossos dias.
– Vd: Amerio, F. (1968). História da Filosofia. 2 vol. Coimbra:
Casa do Castelo; Calcagno, F. (1963/1965). Philosophia
Scholastica. 3 vol. Neapoli: M. D’Auria; Gambra, R. (1973). Noções de Filosofia. Porto: Tavares
Martins.
Parabéns gostei muito do texto e da explicação.
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