terça-feira, 10 de junho de 2014

De omni re scibili et inscibili et quibusdam aliis

De omni re scibili (de tudo o que se pode saber) é uma expressão atribuída a Pico della Mirandola, que tinha a veleidade (talvez com razão) de poder discutir qualquer assunto com qualquer pessoa. Enquadra-se no perfil do homem do Renascimento com um saber eclético, que hoje diríamos enciclopédico. Olhe-se, em Portugal, para o caso de Camões cuja produção literária revela uma cultura incontestavelmente invulgar, apesar de ser difícil encontrar-lhe o rasto de estudos.
A restante parte do enunciado epigráfico, et inscibili et quibusdam aliis (e do que não se pode saber e de mais algumas coisas), terá sido sarcasticamente adicionada por Voltaire para verberar aqueles que se jactam de sábios, quando na realidade nada sabem ou possuem um saber balofo.
***
O enunciado colocado em epígrafe vem a propósito de uma sessão do concurso “Quem quer ser milionário?” de há uns dias. O concorrente, a pergunta de Manuela Moura Guedes sobre a ocupação atual do candidato ao prémio dos 100 mil euros, respondeu que estava a preparar o doutoramento em Filosofia. A curiosidade da apresentadora levou-a a questionar como se decidiu pela Filosofia, que alegadamente “já quase ninguém estuda”, ao que o doutorando respondeu com a dedicação anterior à Física. Aí, a senhora, que, à semelhança de outras ocasiões televisivas, parece especializada no de omni re scibili et inscibili et quibusdam aliis, estranhou, num primeiro momento, “o que é que uma coisa tem a ver com outra”, mas, num segundo momento, lá aceitou a explicação induzida de modo demasiadamente humilde pelo interlocutor através das zonas de contacto entre as diversas ciências com a Filosofia, a ciência das causas últimas.
Ora, quem estudou História da Filosofia sabe que durante muito tempo os filósofos, considerados “amigos da sabedoria” (grego: philós, amigo + sophía, sabedoria), começaram a estudar o mundo físico, na procura do elemento primordial do mundo, da matéria. Questionaram-se sobre o mundo físico, visível. Eram os fisiologistas: e uns adotaram o ar, outros a terra, outros a água e outros o fogo. E vieram os atomistas, que achavam que o elemento primordial era o átomo. Mesmo Pitágoras, Sócrates e Platão, que se desprenderam mais do mundo físico (pelo número, pelo conceito e pelas ideias, respetivamente) não deixaram outras áreas do conhecimento como a fisiologia, a astronomia, a matemática, a política, a poesia, a ética, as artes… E Aristóteles, o sábio universal trata um pouco de tudo, mas faz a sistematização de todas as ciências, as conhecidas de então. E essa diversidade de conhecimento assumida pelos filósofos persistiu ao longo do tempo. Basta, a título de exemplo, olhar para Tomás de Aquino, Alberto Magno ou para os homens do Renascimento e para Descartes e Lavoisier.
Por outro lado, tal como a Matemática, que se iniciou com as coisas e foi atingindo alto grau de abstração e de especulação simbólica, também a Filosofia começou a olhar para o mundo e para o homem, passou a fazer metafísica, no sentido de reflexão sobre o que se vê e ouve (o homem e os seres que o rodeiam), galgou para o conhecimento da metafísica, no sentido de atingir o mundo suprassensível, valendo-se da capacidade de abstração que o homem tem, auxiliada pela lógica e pela teoria do conhecimento. E, no quadro da metodologia, embora o saber especulativo se funde principalmente no método dedutivo, já a filosofia escolástica aceitava como método válido o indutivo. Também se deve dizer que ainda hoje a Filosofia estuda a cosmologia e, a par da Psicologia científica stricto sensu, temos a Psicologia Racional.
Mal vai ao filósofo, querendo voar mais alto e mais além, se se perde demasiado na abstração, abandonando por tempo indeterminado o mundo terráqueo. E mal vai ao cientista, mesmo que abjure, por desinteressante ou inútil, o saber filosófico, se renuncia de vez à argumentação baseada na lógica do silogismo simples, truncado ou composto, mesmo com o risco de cair em eventuais falácias. O homem das alturas tem, de vez em quando, que olhar para a Terra, para o chão; e o homem da Terra, (como o homem da mina tem necessidade de vir à tona), deve, de vez em quando, fitar o firmamento, almejar as alturas.
Tão perigoso se tornará hoje o saber enciclopédico (dispersante, não aprofundado em quase nada) como o saber demasiado especializado (perigo que nos espreita atualmente, com pertinência, pelo estreitamento do campo de conhecimento). Desejável seria o saber enciclopedêutico, ou seja, o saber do especialista ou do generalista que seja perito onde, a par da especialização ou do saber generalizante, tenha a capacidade, mobilizável a todo o tempo, de saber onde, como, quando e junto de quem encontrar o conhecimento de que necessite, assumir criticamente a informação prestada, a reter de forma organizada e saber definir prioridades de aprofundamento, ampliação e ação.
***
A talho de foice e em articulação com o facto televisivo a que aludi, ora ilustrado com o enunciado epigráfico já glosado, deixo uma informação sobre o titular histórico do de omni re scibili, que ilustra como, em pouco tempo de vida, um homem aplicado ao mundo do conhecimento – dos livros, do raciocínio e das viagens – é capaz de produzir, desafiar, retratar-se, lutar, reconciliar-se, persistir.
Quem era Pico della Mirandola? De seu nome Giovanni, foi um erudito, filósofo neoplatónico e humanista do Renascimento italiano, nascido em Mirandola, a 24 de fevereiro de 1463, e falecido em Florença, a 17 de novembro de 1494. É considerado o primeiro erudito cristão a mesclar elementos da doutrina cabalística com a Teologia cristã.
O filho mais jovem de Gian Francesco I e de Giulia Boiardo, condes de Concordia e de Mirandola, no Ducado de Modena, impunha-se desde a infância por seus dotes intelectuais a que se aliava uma extraordinária memória e uns dons artísticos extremamente desenvolvidos. Decidindo dedicar-se inteiramente aos estudos, com apenas 14 anos de idade, passou a cursar Direito Canónico na Universidade de Bolonha, com vista à carreira eclesiástica. Porém, insatisfeito com os estudos demasiado juridicistas, quis aplicar-se à Filosofia e à Teologia, que lhe despertaram indizível predileção. Seguidamente, passou 7 anos em viagem por Itália e França, estudando nas suas principais Universidades – Ferrara, Pádua e Paris – enquanto se dedicava à aprendizagem das línguas latina, grega, hebraica, árabe e síria.
Com a aquisição, em suas viagens pela Europa, de cerca de 60 manuscritos alegadamente da autoria de Esdras (o autor do bíblico Livro de Esdras, com 10 capítulos), sacerdote e escriba judeu, filho do Sumo-Sacerdote Seraias (2Rs,25,18), Giovanni interessou-se pelo estudo da Cabala e do Talmud, com o fito de aliar tal conhecimento místico-religioso à Filosofia.
No objetivo de conciliar Religião e Filosofia, Giovanni baseava as suas conceções ideológicas principalmente em Platão, em oposição a Aristóteles, tal como o seu mestre Marcílio Ficino. No seu entender, deveriam estudar-se a fundo as fontes hebraicas e talmúdicas da Sagrada Escritura, preservando-se, no entanto, as melhores conquistas da Filosofia Escolástica  – no que se desviava de algumas normas do humanismo, que pretendia o abandono da Filosofia Medieva. Tais ideias vêm explanadas no Heptaplus, exposição místico-alegórica da criação do mundo, no seguimento dos sete sentidos bíblicos, e no De ente et uno, com paráfrases de várias passagens dos livros atribuídos a Moisés e dos escritos platónicos e aristotélicos.
Com apenas 23 anos de idade, publica em Roma as controversas 900 teses sob o título de Conclusiones philosophicae, cabalisticae et theologicae, onde cria ter desvelado as bases de todo o conhecimento da humanidade (de omni re scibili), combinando harmoniosamente elementos do neoplatonismo, hermetismo e cabalismo, a par da lógica, matemática e física. Mais: desafia quem quer que o queira enfrentar numa discussão pública em Roma sobre as suas polémicas teses, oferecendo o pagamento das despesas de deslocação donde quer que o disputante viesse; e publica, nesse mesmo ano o seu estudo De hominis dignitate oratio  (discurso sobre a Dignidade do Homem), que fica a servir de introdução às Conclusiones, cujo tema é hoje assaz versado.
Ao ver 13 das suas 900 teses consideradas heréticas pela Igreja Católica, pelo que ficava proibido de prosseguir com as discussões públicas, aceita retratar-se ante uma comissão de inquérito eclesiástica. Intenta posteriormente uma defesa das 13 teses com o opúsculo Apologia Ioannis Pici Mirandolani, concordiae comitis, mas sem sucesso. Descontente, viaja novamente pela França, retornando a Florença, em seguida.
No termo de sua vida, destrói os trabalhos poéticos e torna-se acérrimo defensor do Cristianismo contra judeus, muçulmanos e astrólogos, acabando por sofrer morte precoce, aos 31 anos, sucumbindo a uma febre, no dia em que Carlos VIII da França entrou em Florença, após expulsar Piero de Médici.
Na De hominis dignitate oratio, Giovanni aborda a importância da busca humana pelo conhecimento numa perspetiva neoplatónica. Afirma que Deus, depois de criar as diversas criaturas, se deixou possuir do desejo de gerar uma nova criatura, um ser consciente que pudesse apreciar a criação e dela fruir, mas não havia nenhum lugar vago na cadeia dos seres criados, desde o verme ao anjo. Então, Deus resolveu criar o homem, à sua imagem e semelhança (cf Gn 1,26), que, ao contrário dos outros seres, não tinha um lugar específico nessa cadeia das criaturas (cf Salmo 8). Mas, em vez disso, o homem era capaz de refletir e aprender sobre si mesmo e sobre a natureza, além de poder competir com qualquer outra criatura já existente. Destarte, quando o homem filosofa e utiliza eticamente a vontade, ascende à condição angélica e compartilha com a Divindade; ao invés, quando falha na utilização do intelecto e no exercício da vontade, pode degradar-se e descer à categoria do vegetal mais primitivo. Sendo assim, os filósofos estão entre as criaturas mais dignificadas da criação, lugar de que ninguém os arredará.
A ideia de que o ser humano, enquanto criatura de Deus, pode ascender na cadeia dos seres pelo exercício das suas capacidades intelectuais e volitivas foi uma profunda garantia de dignidade da vida humana sobre a Terra. A raiz da dignidade, para Pico della Mirandola, reside na sua asserção de que somente os seres humanos se podem mudar a si mesmos pelo seu livre arbítrio. Ele verificou, pela análise da história humana, que as filosofias e as instituições estão em perpétua evolução, demonstrando que a única constante histórica é a capacidade de autotransformação do homem.
Em sintonia com a crença lúcida e firme de que toda a criação constitui reflexo especular da Divindade e o homem pode ser catapultado, pelos seus próprios meios – intecto, vontade e trabalho – para a proximidade do Deus invisível, a filosofia de Pico della Mirandola teve uma enorme e peculiar influência nas artes, induzindo a elevação do status de escritores, poetas, arquitetos, escultores e pintores, como Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo, da situação de meros artesãos medievais ao ideal renascentista de artistas universalmente considerados génios, que persiste até aos nossos dias.

– Vd: Amerio, F. (1968). História da Filosofia. 2 vol. Coimbra: Casa do Castelo; Calcagno, F. (1963/1965). Philosophia Scholastica. 3 vol. Neapoli: M. D’Auria; Gambra, R. (1973). Noções de Filosofia. Porto: Tavares Martins.

1 comentário: