No ano de 1989, pela manhã de
16 de maio, o secretário-geral do Partido Comunista Chinês, Deng Xiaoping,
recebeu o seu homólogo soviético, Mikhail Gorbachev, em Pequim, no âmbito da
primeira cimeira entre os dirigentes de topo dos dois grandes partidos
comunistas (da China e da União Soviética) em trinta anos. O secretário-geral chinês
queria marcar as diferenças entre as políticas de reforma soviética e chinesa,
mas arredando o espectro de divisões entre os dois partidos. Verificando que as
vias reformistas destes dois grandes países eram diversas – os soviéticos
enveredaram pela via das reformas políticas, ao passo que os chineses tinham
avançado com reformas económicas – Gorbachev antecipava que, no fim, chegariam
aos mesmos resultados. Deng terá assentido silenciosamente, deixando a ideia de
que estava a consentir. O tempo, entretanto, encarregou-se de demonstrar a
diferença de resultados.
Ora, as posições eram mesmo diferentes, não só na
forma, mas na substância e obviamente nos efeitos. Enquanto o líder soviético
estava a preparar uma reforma política global, a “Perestroika” (reforma do
sistema político e económico), num contexto de transparência e abertura, a
“Glasnost”, o dirigente chinês tinha decidido vincar as diferenças, desde logo
com a repressão das manifestações, apenas esperando, para promulgar a lei
marcial, que o seu homólogo regressasse a Moscovo. E, no âmbito da lei marcial,
a primeira intervenção das forças armadas foi parada pelos civis, que desceram
à rua para cercar as unidades militares, que se sentiram obrigadas a recuar. Deng,
ultrapassando as divisões internas na direção comunista, decidiu neutralizar as
manifestações de massa, ameaça existencial ao regime, e mandou, nessa ordem de
ideias, que as tropas regressassem e usassem da violência necessária.
Assim, na noite de 3 para 4 de junho do mesmo ano de
1989, soldados e tanques do exército chinês carregaram sobre a praça Tiananmen,
em Pequim, para jugular a gigantesca manifestação de estudantes e de muitos outros
civis, organizada pelo movimento estudantil nascido dois meses antes na
Universidade da capital chinesa. Tal movimento estudantil e civil, que se
transformou num protesto nacional, com manifestações pró-democracia em pelo
menos 160 grandes cidades, pedia liberdades e mudanças políticas.
A principal praça da capital cheia de manifestantes
que teimavam em não arredar pé, resistindo à invasão militar ordenada pelo
líder político Deng Xiaoping foi palco de um dos maiores massacres cometidos
contra civis que a História registará. A ação militar decorreu em dois momentos:
um dissuasor, em que civis, descendo à rua, cercaram as unidades militares e as
levaram ao recuo; e um outro, com a reiterada ordem da direção política aos
militares (agora com ordem de fogo) que, num inusitado recurso à violência
sobre civis, a 4 de junho, neutralizou a manifestação, alegadamente considerada
contrarrevolucionária.
O protesto foi esmagado pela força dos tanques e
pelas balas que deixaram centenas ou milhares de mortos, nunca tendo sido
revelado o seu número oficial. Por seu turno, o general Xu Qinxian, comandante
do poderoso 38.º batalhão do Exército desobedeceu à ordem de disparar sobre
civis, clamando: “Prefiro ser decapitado a ser um criminoso aos olhos da
História”. Em resultado da sua declaração, foi preso.
O massacre, ou a força manifestatória que esteve
por trás de tudo e que foi jugulada, arquitetou a sobrevivência do regime, que
passou a jogar à defesa. E, nesse sentido, o regime como que se entrincheirou
contra qualquer esquisso de reforma política global. A economia vai crescendo,
vai-se diversificando, negoceia-se com o exterior a ponto de o país aparecer
aos olhos do mundo como uma das maiores economias emergentes; e alteraram-se,
em certa medida, as relações sociais e de trabalho, bem como as condições do
ordenamento do território e da construção de equipamentos de utilização
coletiva.
Porém, Xi Jinping, o atual Presidente, o político
que se perfila como o segundo grande reformador da China depois de Deng, está a
fechar cada vez mais o sistema político de partido único e centralizado. Para
tanto, vem afastando líderes que revelem linhas de pensamento alternativas,
tornando mais severo o controlo sobre os meios de comunicação social e mandando
prender dissidentes (académicos, intelectuais, artistas), como sucedeu nas
vésperas do 25.º aniversário do massacre. E tudo se encapota na denominação eufemística
de infração: “Na China só há infratores da lei, não há cá isso de dissidentes”
– como explicava o porta-voz Hong.
Durante 25 anos, o regime político controlou a
informação sobre o sucedido em Tiananmen, silenciando as opiniões e levando as
pessoas a esquecer os factos – tudo alegadamente no interesse do povo, em que
uma parte já é rica e outra sonha sê-lo. Virão a sê-lo todos os chineses? No entanto, ao longo destes mesmos vinte
e cinco anos, a memória do massacre instalou-se na memória coletiva e continua bem viva.
A crise política criada pelo incidente levou o Partido Comunista da China, após
a repressão, a repensar a relação com a sociedade civil e sobretudo com os
intelectuais. Às universidades e academias foi concedida maior autonomia,
condicionada ao não questionamento da autoridade e papel timoneiro do Partido e
do seu monopólio político. Trata-se de um compromisso explícito acatado servilmente
pela maioria dos interessados, concomitante com o compromisso tacitamente estabelecido
com a sociedade civil em geral. Entretanto, nestes cinco lustros, a China tem
conseguido ser uma ditadura altamente sofisticada e eficaz, gastando mais
recursos do erário público com a segurança interna do que com a defesa e
segurança externa – e com a qual os diversos países ditos livres se querem
relacionar política e economicamente.
Paralelamente,
o massacre de Tiananmen comporta uma memória diferente e constrastiva. O
contexto de luta pelos direitos humanos, designadamente pelos direitos civis e
políticos (entre os quais, os atinentes às liberdades de pensamento, de expressão,
de reunião e de manifestação), levou a que o mundo passasse a olhar atentamente
para a República Popular da China. E assim, pela sua visibilidade internacional,
jamais se esquecerão, pleno seu volume e significado, as manifestações e as
ações repressivas de Tiananmen. Esta visibilidade face à questão dos direitos humanos
ficou sublinhada pela atribuição do Prémio Sakharov a Wei Jingsheng, em 1996, e
a Hu Jia, em 2008 e, em especial, a atribuição do Prémio Nobel da Paz a Liu
Xiaobo, em 2010. A
atribuição destes três prémios, secundada pela divulgação da “Carta
08” (um notável documento com que se furou surpreendentemente a censura e o
controlo da Internet na China e que reivindica claramente um regime de direito democrático,
assumindo a herança da China republicana dos anos vinte), conduz à ideia da
existência de alternativas “chinesas” ao domínio do Partido.
Ademais, também se encontram movimentos cívicos,
sem uma afiliação política específica, que reivindicam a implementação de um
verdadeiro Estado de direito. Entre estes, destaca-se, a título de exemplo, o
“Movimento dos Novos Cidadãos”, liderado pelos advogados Xu Zhiyong e Teng
Biao, que assume a preocupação com questões altamente pertinentes, tais como: o
uso de terras aráveis, os problemas ambientais, as questões laborais, o acesso dos
cidadãos à justiça e o combate à corrupção.
Na ótica do partido timoneiro, o 4 de junho é data
de grande preocupação política, que induz habitualmente numerosas detenções e segurança
interna reforçada. Porém, para muitos, Tiananmen é o marco da irreversível viragem
histórica que há de produzir, em tempo oportuno, os seus frutos.
***
A repressão militar de Tiananmen, consumada em 4 de
junho, confirmou a via chinesa, a da garantia da sobrevivência do regime, com a
continuidade, sem falhas, da liberalização económica e do programa das “Quatro
Modernizações”, sem a democratização política, ou seja, a por muitos almejada
“Quinta Modernização”. E, no âmbito da abertura relacional com outros países, a
República Popular da China conseguiu negociar pacificamente com o Reino Unido e
com a República Portuguesa a transição da soberania e da administração de Hong
kong e de Macau, respetivamente, para o domínio chinês, segundo o sistema de um
País, dois regimes (partido único na China e democracia representativa nas duas
regiões administrativas especiais).
Naquele mesmo dia, a Polónia realizou as primeiras
eleições parcialmente livres na Europa de Leste desde 1947, na via das reformas
de Gorbachev e na sequência das ações reivindicativas do sindicato “Solidariedade”,
em especial nos estaleiros de Gdanski. Os resultados eleitorais constituíram um
duro revés político para o PC polaco, que não conseguiu eleger um único dirigente.
O partido bem apelou a Gorbachev, que não se mostrou preparado nem disponível para
mandar o Exército soviético em socorro do “partido-irmão”. E verificou-se, a seguir,
o efeito de dominó: sem a proteção soviética, os regimes comunistas da Europa
de Leste foram ruindo uns atrás dos outros nos meses subsequentes. A queda do
muro de Berlim significou o fim do regime na RDA, o que levou ao processo de
reunificação da Alemanha. Sem o emblemático Muro de Berlim para a defender dos
ventos da liberdade, entendida no sentido dos ocidentais, a URSS pulverizou-se,
entre o golpe comunista falhado de agosto de 1991 e a “parada das soberanias” de
que resultou emergência dos velhos nacionalismos. Por consequência, a 25 de dezembro,
Gorbachev renunciou, o que levou à dissolução da URSS, que gerou o termo da
Guerra Fria e o do Pacto de Varsóvia.
A 4 de junho de 1989, as duas vias tinham-se
separado em definitivo e, no fim, chegaram a resultados radicalmente diferentes.
A política chinesa enveredou deliberadamente pela via da violência, com a recusa
da democratização e com a consolidação da autocracia comunista para garantir a
continuidade das reformas da economia e da sociedade que tornaram possível a afirmação
da China como potência emergente perante o mundo inteiro. Por seu turno, a política
soviética optou pela via da democratização (com as consequências que dela
resultassem), minimizou o recurso à violência e, embora tenha falhado o
desígnio de transformação do regime comunista russo num “socialismo de rosto
humano”, assegurou o fim pacífico da Guerra Fria e a ressurreição de novos
Estados, que não sem sobressaltos nem sem custos.
Até quando esperaremos pela observância dos
direitos humanos na China e por que a Europa ganhe juízo económico e financeiro
– tudo a bem das pessoas, dos cidadãos?
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