quarta-feira, 4 de junho de 2014

Tiananmen. Foi há 25 anos!...

No ano de 1989, pela manhã de 16 de maio, o secretário-geral do Partido Comunista Chinês, Deng Xiaoping, recebeu o seu homólogo soviético, Mikhail Gorbachev, em Pequim, no âmbito da primeira cimeira entre os dirigentes de topo dos dois grandes partidos comunistas (da China e da União Soviética) em trinta anos. O secretário-geral chinês queria marcar as diferenças entre as políticas de reforma soviética e chinesa, mas arredando o espectro de divisões entre os dois partidos. Verificando que as vias reformistas destes dois grandes países eram diversas – os soviéticos enveredaram pela via das reformas políticas, ao passo que os chineses tinham avançado com reformas económicas – Gorbachev antecipava que, no fim, chegariam aos mesmos resultados. Deng terá assentido silenciosamente, deixando a ideia de que estava a consentir. O tempo, entretanto, encarregou-se de demonstrar a diferença de resultados.
Ora, as posições eram mesmo diferentes, não só na forma, mas na substância e obviamente nos efeitos. Enquanto o líder soviético estava a preparar uma reforma política global, a “Perestroika” (reforma do sistema político e económico), num contexto de transparência e abertura, a “Glasnost”, o dirigente chinês tinha decidido vincar as diferenças, desde logo com a repressão das manifestações, apenas esperando, para promulgar a lei marcial, que o seu homólogo regressasse a Moscovo. E, no âmbito da lei marcial, a primeira intervenção das forças armadas foi parada pelos civis, que desceram à rua para cercar as unidades militares, que se sentiram obrigadas a recuar. Deng, ultrapassando as divisões internas na direção comunista, decidiu neutralizar as manifestações de massa, ameaça existencial ao regime, e mandou, nessa ordem de ideias, que as tropas regressassem e usassem da violência necessária.
Assim, na noite de 3 para 4 de junho do mesmo ano de 1989, soldados e tanques do exército chinês carregaram sobre a praça Tiananmen, em Pequim, para jugular a gigantesca manifestação de estudantes e de muitos outros civis, organizada pelo movimento estudantil nascido dois meses antes na Universidade da capital chinesa. Tal movimento estudantil e civil, que se transformou num protesto nacional, com manifestações pró-democracia em pelo menos 160 grandes cidades, pedia liberdades e mudanças políticas.
A principal praça da capital cheia de manifestantes que teimavam em não arredar pé, resistindo à invasão militar ordenada pelo líder político Deng Xiaoping foi palco de um dos maiores massacres cometidos contra civis que a História registará. A ação militar decorreu em dois momentos: um dissuasor, em que civis, descendo à rua, cercaram as unidades militares e as levaram ao recuo; e um outro, com a reiterada ordem da direção política aos militares (agora com ordem de fogo) que, num inusitado recurso à violência sobre civis, a 4 de junho, neutralizou a manifestação, alegadamente considerada contrarrevolucionária.
O protesto foi esmagado pela força dos tanques e pelas balas que deixaram centenas ou milhares de mortos, nunca tendo sido revelado o seu número oficial. Por seu turno, o general Xu Qinxian, comandante do poderoso 38.º batalhão do Exército desobedeceu à ordem de disparar sobre civis, clamando: “Prefiro ser decapitado a ser um criminoso aos olhos da História”. Em resultado da sua declaração, foi preso.
O massacre, ou a força manifestatória que esteve por trás de tudo e que foi jugulada, arquitetou a sobrevivência do regime, que passou a jogar à defesa. E, nesse sentido, o regime como que se entrincheirou contra qualquer esquisso de reforma política global. A economia vai crescendo, vai-se diversificando, negoceia-se com o exterior a ponto de o país aparecer aos olhos do mundo como uma das maiores economias emergentes; e alteraram-se, em certa medida, as relações sociais e de trabalho, bem como as condições do ordenamento do território e da construção de equipamentos de utilização coletiva.
Porém, Xi Jinping, o atual Presidente, o político que se perfila como o segundo grande reformador da China depois de Deng, está a fechar cada vez mais o sistema político de partido único e centralizado. Para tanto, vem afastando líderes que revelem linhas de pensamento alternativas, tornando mais severo o controlo sobre os meios de comunicação social e mandando prender dissidentes (académicos, intelectuais, artistas), como sucedeu nas vésperas do 25.º aniversário do massacre. E tudo se encapota na denominação eufemística de infração: “Na China só há infratores da lei, não há cá isso de dissidentes” – como explicava o porta-voz Hong.
Durante 25 anos, o regime político controlou a informação sobre o sucedido em Tiananmen, silenciando as opiniões e levando as pessoas a esquecer os factos – tudo alegadamente no interesse do povo, em que uma parte já é rica e outra sonha sê-lo. Virão a sê-lo todos os chineses? No entanto, ao longo destes mesmos vinte e cinco anos, a memória do massacre instalou-se na memória coletiva e continua bem viva. A crise política criada pelo incidente levou o Partido Comunista da China, após a repressão, a repensar a relação com a sociedade civil e sobretudo com os intelectuais. Às universidades e academias foi concedida maior autonomia, condicionada ao não questionamento da autoridade e papel timoneiro do Partido e do seu monopólio político. Trata-se de um compromisso explícito acatado servilmente pela maioria dos interessados, concomitante com o compromisso tacitamente estabelecido com a sociedade civil em geral. Entretanto, nestes cinco lustros, a China tem conseguido ser uma ditadura altamente sofisticada e eficaz, gastando mais recursos do erário público com a segurança interna do que com a defesa e segurança externa – e com a qual os diversos países ditos livres se querem relacionar política e economicamente.
Paralelamente, o massacre de Tiananmen comporta uma memória diferente e constrastiva. O contexto de luta pelos direitos humanos, designadamente pelos direitos civis e políticos (entre os quais, os atinentes às liberdades de pensamento, de expressão, de reunião e de manifestação), levou a que o mundo passasse a olhar atentamente para a República Popular da China. E assim, pela sua visibilidade internacional, jamais se esquecerão, pleno seu volume e significado, as manifestações e as ações repressivas de Tiananmen. Esta visibilidade face à questão dos direitos humanos ficou sublinhada pela atribuição do Prémio Sakharov a Wei Jingsheng, em 1996, e a Hu Jia, em 2008 e, em especial, a atribuição do Prémio Nobel da Paz a Liu Xiaobo, em 2010. A atribuição destes três prémios, secundada pela divulgação da “Carta 08” (um notável documento com que se furou surpreendentemente a censura e o controlo da Internet na China e que reivindica claramente um regime de direito democrático, assumindo a herança da China republicana dos anos vinte), conduz à ideia da existência de alternativas “chinesas” ao domínio do Partido.
Ademais, também se encontram movimentos cívicos, sem uma afiliação política específica, que reivindicam a implementação de um verdadeiro Estado de direito. Entre estes, destaca-se, a título de exemplo, o “Movimento dos Novos Cidadãos”, liderado pelos advogados Xu Zhiyong e Teng Biao, que assume a preocupação com questões altamente pertinentes, tais como: o uso de terras aráveis, os problemas ambientais, as questões laborais, o acesso dos cidadãos à justiça e o combate à corrupção.
Na ótica do partido timoneiro, o 4 de junho é data de grande preocupação política, que induz habitualmente numerosas detenções e segurança interna reforçada. Porém, para muitos, Tiananmen é o marco da irreversível viragem histórica que há de produzir, em tempo oportuno, os seus frutos.
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A repressão militar de Tiananmen, consumada em 4 de junho, confirmou a via chinesa, a da garantia da sobrevivência do regime, com a continuidade, sem falhas, da liberalização económica e do programa das “Quatro Modernizações”, sem a democratização política, ou seja, a por muitos almejada “Quinta Modernização”. E, no âmbito da abertura relacional com outros países, a República Popular da China conseguiu negociar pacificamente com o Reino Unido e com a República Portuguesa a transição da soberania e da administração de Hong kong e de Macau, respetivamente, para o domínio chinês, segundo o sistema de um País, dois regimes (partido único na China e democracia representativa nas duas regiões administrativas especiais).
Naquele mesmo dia, a Polónia realizou as primeiras eleições parcialmente livres na Europa de Leste desde 1947, na via das reformas de Gorbachev e na sequência das ações reivindicativas do sindicato “Solidariedade”, em especial nos estaleiros de Gdanski. Os resultados eleitorais constituíram um duro revés político para o PC polaco, que não conseguiu eleger um único dirigente. O partido bem apelou a Gorbachev, que não se mostrou preparado nem disponível para mandar o Exército soviético em socorro do “partido-irmão”. E verificou-se, a seguir, o efeito de dominó: sem a proteção soviética, os regimes comunistas da Europa de Leste foram ruindo uns atrás dos outros nos meses subsequentes. A queda do muro de Berlim significou o fim do regime na RDA, o que levou ao processo de reunificação da Alemanha. Sem o emblemático Muro de Berlim para a defender dos ventos da liberdade, entendida no sentido dos ocidentais, a URSS pulverizou-se, entre o golpe comunista falhado de agosto de 1991 e a “parada das soberanias” de que resultou emergência dos velhos nacionalismos. Por consequência, a 25 de dezembro, Gorbachev renunciou, o que levou à dissolução da URSS, que gerou o termo da Guerra Fria e o do Pacto de Varsóvia.
A 4 de junho de 1989, as duas vias tinham-se separado em definitivo e, no fim, chegaram a resultados radicalmente diferentes. A política chinesa enveredou deliberadamente pela via da violência, com a recusa da democratização e com a consolidação da autocracia comunista para garantir a continuidade das reformas da economia e da sociedade que tornaram possível a afirmação da China como potência emergente perante o mundo inteiro. Por seu turno, a política soviética optou pela via da democratização (com as consequências que dela resultassem), minimizou o recurso à violência e, embora tenha falhado o desígnio de transformação do regime comunista russo num “socialismo de rosto humano”, assegurou o fim pacífico da Guerra Fria e a ressurreição de novos Estados, que não sem sobressaltos nem sem custos.

Até quando esperaremos pela observância dos direitos humanos na China e por que a Europa ganhe juízo económico e financeiro – tudo a bem das pessoas, dos cidadãos?

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