domingo, 8 de junho de 2014

O Pentecostes ou o atestado de robustez da Igreja nascente?

O “Pentecostes”, uma das festas móveis (liturgicamente, uma solenidade) do Cristianismo Católico, ocorre no quinquagésimo dia da Páscoa (Pentecostes, em grego: πεντηκοστή [ἡμέρα], pentekostē [hēmera], “o quinquagésimo dia”), dez dias depois da Ascensão do Senhor. A celebração pentecostal, uma das mais importantes do calendário, comemora a descida do único Espírito Santo, sob a forma de diversas línguas de fogo,  sobre os apóstolos, que se encontravam reunidos em oração no Cenáculo com Maria, a mãe de Jesus (cf At 1,12-14).
O Cenáculo, que era considerado um importante lugar de reunião judaica, a partir deste momento passa a ser considerado um símbolo singular de sacralidade na ótica cristã. O cenário do novo testamento da entrega de Cristo na Ceia por nós homens e por nossa salvação, para memória imorredoura a celebrar no futuro, a que fica intimamente associado o mandamento novo do amor e o dom do sacerdócio ministerial, fica doravante possuído pelo Espírito. Os apóstolos, que lá permaneciam em novena de oração, mas com medo, passaram, com a espetacular descida do Espírito Santo a falar desassombradamente e cada um os ouve na sua própria língua. É o seu momento do batismo no Espírito querido e prometido por Jesus (At 1,5).
Entretanto, este data pentecostal, que celebra a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos através do dom das línguas, fica histórica e simbolicamente ligada ao festival judaico da colheita (doravante a colheita ou a pesca de homens), que comemora a entrega do Decálogo por Deus a Moisés no Monte Sinai cinquenta dias depois do Êxodo. Constituindo a Páscoa de Cristo, coroada com o Pentecostes do Espírito, a réplica neotestamentária do Êxodo, com a entrega do Decálogo, ela é, em Cristo e no Espírito, a inauguração de uma nova era – a da Igreja, novo Israel – caraterizada pela ação libertadora definitiva, assente no sangue de Cristo, que tira o pecado do mundo (não já no sangue das vítimas animais), de dimensão universal (e não só do povo judeu), e cujo livro não é já o da lei escrita em tábuas de pedra, mas o livro das bem-aventuranças escritas pelo Espírito e gravadas nos corações. É por isso que, segundo o pensamento de muitos teólogos, o dia de Pentecostes marca o nascimento da Igreja.
No entanto, os Padres da Igreja radicam o nascimento da Igreja do lado de Cristo adormecido na cruz no Calvário e veem naquele brotar de sangue e água (cf Jo 19,34), a quando da perfuração do lado pela lança do soldado Longino, o símbolo da Eucaristia, sacramento da unidade na diversidade de membros, elementos e culturas. E é com o corpo de Cristo entregue transitoriamente à tumba, como o grão de trigo à terra, que germina a semente da Igreja, a nascer da Páscoa do Ressuscitado. É no quadragésimo dia da Páscoa – a Ascensão – que a Igreja apostólica é enviada e assumida como em missão (Ide e ensinai); e, no quinquagésimo, os apóstolos, cheios do Espírito Santo, inauguram o seu ministério querigmático (do anúncio do mistério de Cristo), santificador (pelo batismo e fração do pão) e pastoral (pela coleta e administração distributiva dos bens, para que ninguém passe necessidades), movidos pela poderosa injeção da catolicidade.
Não esquecendo que o mistério pascal de Cristo é e funciona como um todo (entrega, paixão, morte, sepultura, descida à mansão dos mortos, ressurreição, ascensão e envio do Espírito), é verdade que o Pentecostes nos faz recordar o mistério da fundação da Igreja por Jesus, emergente da Cruz exalçada no Gólgota e do túmulo vazio. Encontrava-se ela no Cenáculo como que em estado quase embrionário – metaforicamente, a menina de tenra idade ainda infante – reunida em torno da solícita Mãe de Cristo e sua mãe também – Mater Christi, Mater Ecclesiae (vd Jo 19,27). E de súbito, ocorreram epifenómenos de indizível magnitude e de alto significado, a que se associaram manifestações sensíveis de ordem natural: ruído como que de vento impetuoso, línguas de fogo, locução dos discípulos em diversas línguas, que não tinham antes aprendido (cf At 2,1-6). O conjunto desses diversos acontecimentos e cada um deles em particular revestem-se de uma capa simbólica (a remeter para o Espírito de unidade) tão interessante que tem constituído tema de aprofundados comentários exegéticos e teológicos.
Porém, há que destacar algumas figuras marcantes do cenáculo, a saber: Maria, os apóstolos, algumas mulheres e, em particular, o apóstolo Pedro.
Como elemento discreto, mas determinante, sobressai a pessoa de Maria, eleita desde a eternidade para Mãe do Deus feito Homem, a quem agora cabe, enquanto cheia de graça, o encargo de Mãe do Corpo Místico, a Igreja. E, tal como no momento da Incarnação do Verbo, o Espírito Santo a rodeou de sua sombra, também agora, na apresentação da Igreja ao mundo, a mãe recebe em parceria com os apóstolos o dom do Espírito em forma de fogo e línguas: novo momento da afirmação da plenitude da graça, da presença invisível de Cristo e da robustez do Espírito. Logo a seguir, vêm os Apóstolos, que formam a primeira escola de pregoeiros do Evangelho. Assumem a condição essencial para estarem aptos à missão que lhes destinara o Mestre: “Todos perseveraram unanimemente em oração, com algumas mulheres e com Maria, Mãe de Jesus, e com os seus irmãos” (At 1,14). Esta oração perseverante realizou-se na forma continuada, na solidão da clausura, em atmosfera de fraterna concórdia, em torno da mãe, presente na casa dos apóstolos (cf Jo 19,27). Nesta escola apostólica, estão algumas mulheres, tal como no tempo da visibilidade de Jesus. E não consta que as tivessem remetido às estritas atividades domésticas ou que desempenhassem o papel de figuras de adorno à maneira de vasos de flores, bibelôs ou figurantes como em qualquer narrativa. Têm, antes, de ser assumidas como personagens da narrativa, verdadeiras discípulas e, por consequência, verdadeiras apóstolas. Não era Tertuliano que afirmava que o cristão que não fosse apóstolo era apóstata? Por outro lado, algumas tradições dão conta do papel ativo das mulheres e até de discussões com Pedro, nomeadamente da parte de Maria Madalena. E, neste grupo de apóstolos, destaca-se a figura de Pedro, a quem pertence a tomada da palavra perante a multidão e orientação desta (cf At 1,15-22, na sequência da obrigação de conformar os irmãos na fé (cf Lc 22,32) e de assumir o encargo especial de apascentar os cordeiros, de apascentar as ovelhas (Jo 21,15-19).
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O evento e o cenário do Pentecostes comportam algumas lições de vida cristã, sobretudo na componente de labor apostólico.
A primeira é que não é pensável obter eficácia na ação apostólica sem o lastro da contemplação.
O grande acontecimento pentecostal foi precedido não só dos dez dias de oração na forma continuada, mas também de outros momentos de recolhimento. A lembrança traumatizante do abandono cobarde a que votaram o Mestre, aquando da sua dramática Paixão, exigia horas de isolamento e reflexão, atos de confissão de fé e de amor. Também o temor de perseguições, deserções e traições impunha a prudência e a mudança de estilo das atividades comuns do apostolado anterior, até porque não tinham a avaliação imediata e corretiva da parte do Mestre.
E, tal como o Ressuscitado aproveitou momentos destes de reunião dos apóstolos em oração para lhes aparecer, também o Espírito Santo escolhe um longo momento de reunião para lhes infundir a abundância dos seus dons. A prova por que passaram os Apóstolos excedia as forças da natureza humana e, apesar do testemunho entusiasmante de Maria Madalena, não lhes era fácil crer na Ressurreição, talvez por não se julgarem dignos de receber a aparição do Senhor, mercê do abandono a que O votaram. Porém, na sua bondade de que nunca teve medo, Jesus não deixou transcorrer muito tempo para lhes aparecer, escolhendo a melhor oportunidade para se tornar mais patente o milagre da Ressurreição: de repente, no fim da tarde e estando as portas fechadas. Também agora o Espírito irrompe estando eles reunidos em casa em oração, com medo. Só que desta vez é de manhã, têm todo o dia (e terão os dias todos) para falar e para agir.
A segunda lição é que a condução de toda a Igreja, incluindo necessariamente a ação apostólica, é obra do Espírito, a que os apóstolos devem prestar colaboração (cf At 10,44-48; 11,15-16;13,2; 15,28). Sem Este, o grupo continuava no medo e na inibição, paralisado na dúvida e na pusilanimidade (Mt 28,17).
Uma outra lição do Pentecostes é centralidade da pessoa de Cristo na ação evangelizadora. Pedro, no discurso inaugural do apostolado pentecostal, põe o acento em Jesus de Nazaré, o Crucificado, que Deus fez Senhor e Messias (At 2,36). É de anotar um detalhe interessante e a ter em conta nas aparições do Ressuscitado: a posição de Cristo para se dirigir aos apóstolos. Poderia ter optado por os saudar à entrada; porém, caminhou e foi colocar-Se no meio deles (cf Jo 20,19.26). O centro é o seu lugar; e deve sê-lo sempre em todas as atividades, preocupações e necessidades. Por conseguinte, colocá-Lo de lado, além de falta de consideração, é votar ao fracasso qualquer iniciativa, por melhor que ela seja.
E, como é óbvio e esta é outra lição do Pentecostes, não basta a contemplação: é preciso partir para a ação evangelizadora e para a construção de comunidades. Ir por todo o mundo, fazer escola, batizar e conduzir à salvação (Mt 28,19-20) – constitui mandato indeclinável. O Apóstolo por antonomásia exclamava: “Ai de mim se eu não evangelizar!” (1Co 9,16).
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No entanto, há que assumir por inteiro aquelas lições pentecostais, sem prescindir de nenhuma delas. E, se a missão de um grupo de cristãos for predominantemente a da oração, que tenha então uma vertente intencional de apostolado missionário; ou se a vocação de uma agremiação for predominantemente de ação social, que se revista da missão paulina de tudo fazer para glória de Deus (1Co 10,31), mas não esquecendo os tempos forte de contemplação.
Quem analisar ao detalhe as atividades de um zeloso apóstolo, não pode julgar equivocamente serem elas fruto unilateral da sua capacidade empreendedora, do seu caráter dinâmico ou de sua constituição físico-psíquica, mas da cooperação do Espírito com toda a obra que n’ Ele comece e para Ele tenda. Como consegue o apóstolo, na avalanche de atividades e na incompreensão de tantos, conservar um coração magnânimo no trato com os outros, sem desfalecimentos? S. Bernardo de Claraval adverte o papa Eugénio III: Temo que em meio de tuas inumeráveis ocupações te desesperes de não poder levá-las a cabo e se endureça tua alma. Obrarias com cordura abandonando-as por algum tempo para que elas não te dominem nem te arrastem para onde não quiseras chegar.. E Santo Agostinho avisa: “Todo apóstolo, antes de soltar a língua, deve elevar a Deus com avidez sua alma, para exalar o que deva, e distribuir sua plenitude” (duas citações apud Mons. João Clá Dias, EP/2014).
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Que a evocação do Pentecostes da Igreja traga aos homens o dom da paz, o grande fruto do Espírito, o tema do canto angélico que festejou a entrada do Filho do Homem no mundo, “Paz na terra” (Lc 2,14), o legado de Cristo ao despedir-se: “Dou-vos a paz, deixo-vos minha paz (Jo 14,27).

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