O Estado dispõe de um conjunto de
normas que regulam as cerimónias inerentes a atos dos órgãos de soberania ou as
ações respeitantes à organização de eventos em que os órgãos do Estado são
protagonistas ou em que a sua presença é considerada relevante. O mesmo se diga
dos atos de representação do Estado na relação com outros Estados. Tal panóplia
de normas dá pela designação de protocolo do Estado.
E o protocolo, cujo chefe máximo é o
Chefe de Estado, dispõe de organizador ou supervisor a quem habitualmente nos
referimos como chefe de protocolo. Por outro lado, há que ter em conta que o
protocolo abrange áreas diversas, como, entre outras: a colocação de bandeiras,
de acordo com a sua precedência em termos da relevância absoluta ou relativa no
âmbito do Estado e dos Estados (Quem não se recorda do veto presidencial de
Mário Soares a um estatuto autonómico por causa da questão das bandeiras?); a
precedência dos diversos detentores de cargos públicos no Estado; as formas de
tratamento; a organização da(s) mesa(s) em banquetes ou em sessões solenes; a
sequência de cerimónias oficiais e a forma de as conduzir; o dever e direito de
presidência; a regulação do uso da palavra; a própria postura das
personalidades do Estado; e a maneira de receber e acomodar os convidados.
Todos recordam o caso de um Secretário de Estado, da área da educação, que não
sabia dirigir-se ao Parlamento e teve de ser ensinado pelo Presidente de então,
Dr. Jaime Gama.
Sói dizer-se – e bem – que o
protocolo visa dois objetivos: evitar situações conflituosas entre órgãos do
Estado e/ou seus titulares; conferir dignidade aos atos de Estado e fazer
passar para a opinião pública a imagem dessa dignidade; e, em alguns casos
facilitar a prestação de segurança às entidades.
Tendo em conta as suas finalidades e
a plurimidade de regras que enformam o protocolo, é fácil de compreender que só
um detentor de cargo público carismático, a quem se reconheça essa autoridade,
é que tem a capacidade de eventualmente quebrar o protocolo. Recordo, a título
de exemplo, João Paulo II e Mário Soares. Dá-me a impressão de que Jorge
Sampaio o quebrou algumas vezes, mas com sucesso discutível; e João XXIII, com
as suas quebras de regras, deixava a segurança vaticana em transe.
Em Portugal, normalmente o protocolo
é observado com suficiência. No entanto, surgem casos excecionais bem
esquisitos. Lembro-me de assistir a uma sessão em que o Presidente da
celebração do evento leu, por si próprio, a lista dos premiados num determinado
concurso de tipo comercial. Tive ocasião de lançar um olhar crítico à forma
como decorreu o ato da condecoração de Cristiano Ronaldo pelo Presidente Cavaco
Silva. E não gosto das sessões de audiência em tribunal em que o juiz se senta
e, só depois, autoriza que os outros se sentem, como não gosto dos raspanetes
que o juiz dá a advogados, testemunhas e público; como não gosto de dístico que
em estabelecimento público e/ou comercial apele diretamente à “boa educação”
dos clientes. Aí, o Estado (e os tribunais são órgãos de soberania, portanto,
órgãos do Estado, ao passo que as autarquias têm órgãos de Estado, que não de
soberania), poderia aprender com a Liturgia da Igreja Católica, que em
celebrações solenes, reserva o papel do Presidente da assembleia para as
funções estritamente presidenciais e confia as outras ao diácono, ao
mestre-de-cerimónias ou ao condutor da assembleia, conforme os casos.
***
É à luz da filosofia que enforma o
protocolo do Estado que me permito opinar sobre o que se passou na cerimónia
militar no âmbito das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das
Comunidades portuguesas, no passado 10 de junho, na cidade da Guarda.
O Presidente da República estava a
discursar perante os militares formados em parada e perante os circunstantes
civis, na qualidade de comandante supremo das forças armadas, com a tribuna de
honra como pano fundo. E, num dado momento da sua alocução apresentou sinais de
desmaio, no que foi prontamente auxiliado. Passados uns vinte e cinco minutos,
regressou ao sítio do discurso (um ambão móvel, a que alguns chamam púlpito) e
retomou o discurso, pelos vistos, no sítio onde o mesmo ficara interrompido.
Sobre o que foi bem, já o referi,
faltando sublinhar a natural aflição da consorte e a rapidez e eficácia do
socorro.
Porém, há aspetos protocolares que
não correram bem – e os operadores do Estado têm a obrigação de não entrarem em
pânico em circunstâncias públicas adversas e de prestarem a informação
possível, de imediato e a cada passo de evolução da situação.
Do meu ponto de vista, uma figura
pública, não de topo, mas da organização deveria aos microfones dar pública
informação da ocorrência, apelando à serenidade de todos os circunstantes (da
parada, da assistência e da tribuna), induzindo a deslocação até junto do
sinistrado somente dos elementos necessários. Não havia necessidade de
intimidar os repórteres, embora devesse ser-lhes solicitada a desocupação do
espaço que lhes estava reservado, se tal fosse mesmo indispensável (Entendo que
tal não fosse discernível no momento, mas qualquer descortesia deveria ser
pretexto para ulterior pedido de desculpas).
Pareceu-me deselegante, tarde e
desabridamente, uma alta patente militar aproximar-se do microfone, invocar a
sua qualidade de CEMGFA (Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas) para
informar que o Presidente sofrera uma ligeira indisposição, mas iria regressar
dentro de pouco tempo. Apesar de se tratar de uma cerimónia militar, convém
referir que as comemorações têm um responsável nomeado por quem de direito e o
evento tem um anfitrião. E o Presidente dispõe de um chefe da Casa Civil, de um
chefe da Casa Militar, de um ajudante de campo e de um oficial às ordens. Nada
justificava, pois, que fosse o CEMGFA a dirigir a palavra aos circunstantes, o
qual somente emite ordens para o interior das forças armadas, a menos que
tivesse sido decretado o estado de emergência ou o estado de sítio, tivesse
sido feita pelo Conselho de Ministros requisição militar de algum setor da
população ativa ou tivesse sido proclamada a lei marcial. Ora, nada disto se
passou nem havia motivo para isso.
Por outro lado, se uma informação
útil e possível fosse sendo gerida e prestada aos microfones, por respeito
àquela massa de povo fardada ou à paisana e ao próprio Presidente, talvez não
tivesse sido necessária aquela intempestiva solicitação de respeito por
Portugal e pelas forças armadas. Provavelmente, os manifestantes (de
manifestação cuja legitimidade não discuto, mas entendo ser impertinente e
ineficaz em momentos solenes com este) ter-se-iam atempadamente apercebido da
situação e, como não são malfeitores nem sádicos, saberiam progressivamente
ganhar a compostura adequada. É óbvio que, ante um remoque conotado com
acusação de perturbação e falta de respeito, que os manifestantes tenham
alegando a sobreposição do direito de manifestação a outras circunstâncias,
sobretudo quando os manifestantes emergem de grupos profissionais a quem tudo
se tem tirado, sem o mínimo de respeito por sua dignidade e seus direitos
adquiridos.
A respeito do respeito, quero
declarar que o respeito não se decreta; ele impõe-se por si mesmo. O bom
demagogo (ou seja o bom líder – guia, condutor, chefe – de massas, de povo /
grego: demos, povo + ago, conduzo) não pede respeito, sabe
suscitá-lo; não se deixa levar por impulso de momento, conhece a psicologia dos
interlocutores, dos grupos e das multidões. Nem as altas patentes militares
hoje têm autoridade para dar lições de respeito a outrem, quando não têm força
para exigir que o Estado (governo e parlamento) respeite os cidadãos em geral e
os militares, em particular.
Por contrate com o que pude observar
a 10 de junho, não resisto a mencionar casos de boa condução de massas e de
razoável gestão do momento:
Dias antes da peregrinação
aniversária internacional do 13 de outubro de 1974 a Fátima, em resposta a
rumores, o primeiro-ministro Vasco Gonçalves declarou que a religião e a
política são duas realidades sociais diferentes, pelo que os crentes podiam ir
a Fátima com todo o à vontade, que as forças armadas garantiriam a segurança de
todos os peregrinos. E efetivamente a 12 e 13 havia muita gente no recinto e
imediações e muitos militares por ali dispersos, aparentemente sem qualquer
enquadramento formal. No entanto, no momento da comunhão da celebração
eucarística e respetiva pausa de silêncio, que precede a bênção dos doentes e a
procissão do “adeus”, uns helicópteros e aviões sobrevoaram a multidão e
adejavam por sobre o recinto, notando-se aqui e ali algum esgar de espanto. O
sacerdote encarregado da locução dirigiu-se suavemente aos peregrinos a
instigá-los à calma porque a segurança de todos estava assegurada e aquela
movimentação aérea tinha a função de verificar a segurança global e constituía
uma forma de homenagem aos peregrinos, que são povo e povo de Deus.
Também, aquando da primeira visita de
João Paulo II a Portugal e ao Santuário de Fátima, em 1982, na vigília do dia
12, o Papa aproximava-se da escadaria que dá para o altar exterior em frente da
Basílica de Nossa Senhora do Rosário, no quadro da procissão de velas; e um
padre (John Krohn, integrista) aproximou-se e tentou desferir um golpe de sabre
baioneta, que ainda terá atingido a figura papal. É claro que a maior parte dos
peregrinos não se apercebeu do facto. No entanto, o sacerdote locutor de serviço,
sabendo que os telespectadores estavam na posse das imagens e que uma boa parte
da multidão notou movimentação estranha numa zona do recinto, foi informando
que parecia ter surgido um sacerdote que pretendia falar ao Santo Padre, a quem
este lançou um gesto de bênção.
Pelos exemplos, sou dado a concluir
que em circunstâncias excecionais que envolvem multidões, alguém com capacidade
de condução de massas (não do topo da estrutura que pontifique no evento) deve dirigir
a palavra à multidão, dizendo o que pode ser dito, sem faltar à verdade, mesmo
que não a saiba na totalidade ou não a possa revelar como tal.
Nestas circunstâncias é urgente
evitar qualquer situação de pânico ou mesmo de insegurança coletiva. Mas falta
tantas vezes aquele senso que não se aprende (porque não se quer) na academia,
na universidade ou no instituto politécnico. Ademais, não basta a eleição ou a
nomeação para um cargo; é necessário saber ocupá-lo. E isso aprende-se com o
estudo e com a vida. E não podemos ter medo das palavras: é preciso cultivar a
liderança de grupos e de massas; é preciso cuidar da sã demagogia (no seu
sentido originário); é preciso articular liberdade e segurança, respeito e empatia,
firmeza e cortesia rumo à plenitude democrática.
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