quarta-feira, 11 de junho de 2014

Relevância do protocolo do Estado

O Estado dispõe de um conjunto de normas que regulam as cerimónias inerentes a atos dos órgãos de soberania ou as ações respeitantes à organização de eventos em que os órgãos do Estado são protagonistas ou em que a sua presença é considerada relevante. O mesmo se diga dos atos de representação do Estado na relação com outros Estados. Tal panóplia de normas dá pela designação de protocolo do Estado.
E o protocolo, cujo chefe máximo é o Chefe de Estado, dispõe de organizador ou supervisor a quem habitualmente nos referimos como chefe de protocolo. Por outro lado, há que ter em conta que o protocolo abrange áreas diversas, como, entre outras: a colocação de bandeiras, de acordo com a sua precedência em termos da relevância absoluta ou relativa no âmbito do Estado e dos Estados (Quem não se recorda do veto presidencial de Mário Soares a um estatuto autonómico por causa da questão das bandeiras?); a precedência dos diversos detentores de cargos públicos no Estado; as formas de tratamento; a organização da(s) mesa(s) em banquetes ou em sessões solenes; a sequência de cerimónias oficiais e a forma de as conduzir; o dever e direito de presidência; a regulação do uso da palavra; a própria postura das personalidades do Estado; e a maneira de receber e acomodar os convidados. Todos recordam o caso de um Secretário de Estado, da área da educação, que não sabia dirigir-se ao Parlamento e teve de ser ensinado pelo Presidente de então, Dr. Jaime Gama.
Sói dizer-se – e bem – que o protocolo visa dois objetivos: evitar situações conflituosas entre órgãos do Estado e/ou seus titulares; conferir dignidade aos atos de Estado e fazer passar para a opinião pública a imagem dessa dignidade; e, em alguns casos facilitar a prestação de segurança às entidades.
Tendo em conta as suas finalidades e a plurimidade de regras que enformam o protocolo, é fácil de compreender que só um detentor de cargo público carismático, a quem se reconheça essa autoridade, é que tem a capacidade de eventualmente quebrar o protocolo. Recordo, a título de exemplo, João Paulo II e Mário Soares. Dá-me a impressão de que Jorge Sampaio o quebrou algumas vezes, mas com sucesso discutível; e João XXIII, com as suas quebras de regras, deixava a segurança vaticana em transe.
Em Portugal, normalmente o protocolo é observado com suficiência. No entanto, surgem casos excecionais bem esquisitos. Lembro-me de assistir a uma sessão em que o Presidente da celebração do evento leu, por si próprio, a lista dos premiados num determinado concurso de tipo comercial. Tive ocasião de lançar um olhar crítico à forma como decorreu o ato da condecoração de Cristiano Ronaldo pelo Presidente Cavaco Silva. E não gosto das sessões de audiência em tribunal em que o juiz se senta e, só depois, autoriza que os outros se sentem, como não gosto dos raspanetes que o juiz dá a advogados, testemunhas e público; como não gosto de dístico que em estabelecimento público e/ou comercial apele diretamente à “boa educação” dos clientes. Aí, o Estado (e os tribunais são órgãos de soberania, portanto, órgãos do Estado, ao passo que as autarquias têm órgãos de Estado, que não de soberania), poderia aprender com a Liturgia da Igreja Católica, que em celebrações solenes, reserva o papel do Presidente da assembleia para as funções estritamente presidenciais e confia as outras ao diácono, ao mestre-de-cerimónias ou ao condutor da assembleia, conforme os casos.
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É à luz da filosofia que enforma o protocolo do Estado que me permito opinar sobre o que se passou na cerimónia militar no âmbito das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades portuguesas, no passado 10 de junho, na cidade da Guarda.
O Presidente da República estava a discursar perante os militares formados em parada e perante os circunstantes civis, na qualidade de comandante supremo das forças armadas, com a tribuna de honra como pano fundo. E, num dado momento da sua alocução apresentou sinais de desmaio, no que foi prontamente auxiliado. Passados uns vinte e cinco minutos, regressou ao sítio do discurso (um ambão móvel, a que alguns chamam púlpito) e retomou o discurso, pelos vistos, no sítio onde o mesmo ficara interrompido.
Sobre o que foi bem, já o referi, faltando sublinhar a natural aflição da consorte e a rapidez e eficácia do socorro.
Porém, há aspetos protocolares que não correram bem – e os operadores do Estado têm a obrigação de não entrarem em pânico em circunstâncias públicas adversas e de prestarem a informação possível, de imediato e a cada passo de evolução da situação.
Do meu ponto de vista, uma figura pública, não de topo, mas da organização deveria aos microfones dar pública informação da ocorrência, apelando à serenidade de todos os circunstantes (da parada, da assistência e da tribuna), induzindo a deslocação até junto do sinistrado somente dos elementos necessários. Não havia necessidade de intimidar os repórteres, embora devesse ser-lhes solicitada a desocupação do espaço que lhes estava reservado, se tal fosse mesmo indispensável (Entendo que tal não fosse discernível no momento, mas qualquer descortesia deveria ser pretexto para ulterior pedido de desculpas).
Pareceu-me deselegante, tarde e desabridamente, uma alta patente militar aproximar-se do microfone, invocar a sua qualidade de CEMGFA (Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas) para informar que o Presidente sofrera uma ligeira indisposição, mas iria regressar dentro de pouco tempo. Apesar de se tratar de uma cerimónia militar, convém referir que as comemorações têm um responsável nomeado por quem de direito e o evento tem um anfitrião. E o Presidente dispõe de um chefe da Casa Civil, de um chefe da Casa Militar, de um ajudante de campo e de um oficial às ordens. Nada justificava, pois, que fosse o CEMGFA a dirigir a palavra aos circunstantes, o qual somente emite ordens para o interior das forças armadas, a menos que tivesse sido decretado o estado de emergência ou o estado de sítio, tivesse sido feita pelo Conselho de Ministros requisição militar de algum setor da população ativa ou tivesse sido proclamada a lei marcial. Ora, nada disto se passou nem havia motivo para isso.
Por outro lado, se uma informação útil e possível fosse sendo gerida e prestada aos microfones, por respeito àquela massa de povo fardada ou à paisana e ao próprio Presidente, talvez não tivesse sido necessária aquela intempestiva solicitação de respeito por Portugal e pelas forças armadas. Provavelmente, os manifestantes (de manifestação cuja legitimidade não discuto, mas entendo ser impertinente e ineficaz em momentos solenes com este) ter-se-iam atempadamente apercebido da situação e, como não são malfeitores nem sádicos, saberiam progressivamente ganhar a compostura adequada. É óbvio que, ante um remoque conotado com acusação de perturbação e falta de respeito, que os manifestantes tenham alegando a sobreposição do direito de manifestação a outras circunstâncias, sobretudo quando os manifestantes emergem de grupos profissionais a quem tudo se tem tirado, sem o mínimo de respeito por sua dignidade e seus direitos adquiridos.
A respeito do respeito, quero declarar que o respeito não se decreta; ele impõe-se por si mesmo. O bom demagogo (ou seja o bom líder – guia, condutor, chefe – de massas, de povo / grego: demos, povo + ago, conduzo) não pede respeito, sabe suscitá-lo; não se deixa levar por impulso de momento, conhece a psicologia dos interlocutores, dos grupos e das multidões. Nem as altas patentes militares hoje têm autoridade para dar lições de respeito a outrem, quando não têm força para exigir que o Estado (governo e parlamento) respeite os cidadãos em geral e os militares, em particular.
Por contrate com o que pude observar a 10 de junho, não resisto a mencionar casos de boa condução de massas e de razoável gestão do momento:
Dias antes da peregrinação aniversária internacional do 13 de outubro de 1974 a Fátima, em resposta a rumores, o primeiro-ministro Vasco Gonçalves declarou que a religião e a política são duas realidades sociais diferentes, pelo que os crentes podiam ir a Fátima com todo o à vontade, que as forças armadas garantiriam a segurança de todos os peregrinos. E efetivamente a 12 e 13 havia muita gente no recinto e imediações e muitos militares por ali dispersos, aparentemente sem qualquer enquadramento formal. No entanto, no momento da comunhão da celebração eucarística e respetiva pausa de silêncio, que precede a bênção dos doentes e a procissão do “adeus”, uns helicópteros e aviões sobrevoaram a multidão e adejavam por sobre o recinto, notando-se aqui e ali algum esgar de espanto. O sacerdote encarregado da locução dirigiu-se suavemente aos peregrinos a instigá-los à calma porque a segurança de todos estava assegurada e aquela movimentação aérea tinha a função de verificar a segurança global e constituía uma forma de homenagem aos peregrinos, que são povo e povo de Deus.
Também, aquando da primeira visita de João Paulo II a Portugal e ao Santuário de Fátima, em 1982, na vigília do dia 12, o Papa aproximava-se da escadaria que dá para o altar exterior em frente da Basílica de Nossa Senhora do Rosário, no quadro da procissão de velas; e um padre (John Krohn, integrista) aproximou-se e tentou desferir um golpe de sabre baioneta, que ainda terá atingido a figura papal. É claro que a maior parte dos peregrinos não se apercebeu do facto. No entanto, o sacerdote locutor de serviço, sabendo que os telespectadores estavam na posse das imagens e que uma boa parte da multidão notou movimentação estranha numa zona do recinto, foi informando que parecia ter surgido um sacerdote que pretendia falar ao Santo Padre, a quem este lançou um gesto de bênção.
Pelos exemplos, sou dado a concluir que em circunstâncias excecionais que envolvem multidões, alguém com capacidade de condução de massas (não do topo da estrutura que pontifique no evento) deve dirigir a palavra à multidão, dizendo o que pode ser dito, sem faltar à verdade, mesmo que não a saiba na totalidade ou não a possa revelar como tal.

Nestas circunstâncias é urgente evitar qualquer situação de pânico ou mesmo de insegurança coletiva. Mas falta tantas vezes aquele senso que não se aprende (porque não se quer) na academia, na universidade ou no instituto politécnico. Ademais, não basta a eleição ou a nomeação para um cargo; é necessário saber ocupá-lo. E isso aprende-se com o estudo e com a vida. E não podemos ter medo das palavras: é preciso cultivar a liderança de grupos e de massas; é preciso cuidar da sã demagogia (no seu sentido originário); é preciso articular liberdade e segurança, respeito e empatia, firmeza e cortesia rumo à plenitude democrática.

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