O programa “Prós e
Contras”, de 2 de junho de 2014, moderado pela Jornalista Fátima
Campos Ferreira, abordou o tema referenciado em epígrafe. O pretexto para a sua
organização foi a enunciação de Francisco produzida ante os jornalistas a bordo
do avião aquando do seu regresso da Terra Santa, sobre o celibato eclesial. Em
resposta à pergunta sobre o tema, o Papa pronunciou-se: “O celibato não é um
dogma de fé, é uma regra de vida, que aprecio muito e creio que é uma oferta à
Igreja”. Mas acrescentou: “Não sendo um dogma de fé, sempre temos a porta aberta: neste momento, não temos em programa
falar disso, pelo menos para já. Temos coisas mais importantes a abordar.”
Conquanto o programa tenha sido muito interessante,
como veremos adiante, fez o que muitos e em muitos lugares fazem a propósito do
celibato eclesial (alguns dizem eclesiástico, pois o encaram na perspetiva
excessivamente jurídica, o que não é de todo exato): a mistura de muitos temas
candentes, sim, mas em torno ou a propósito de uma temática singularmente
específica. E, para lá do celibato, muitas ideias vieram à tona: a
reversibilidade ou não do estado sacerdotal, a teologia do corpo, a regulação
da natalidade, a homossexualidade, a posição genérica da Igreja perante a
sexualidade, incluindo o uso do preservativo no contexto de alastramento da
SIDA, a pedofilia e o abuso sexual de menores. São efetivamente subtemas do
título epigráfico, mas não necessariamente atinentes à problemática “celibato”.
***
Ora, o problema do celibato coloca-se em diversos
patamares: o celibato no quadro da radicalidade da vida consagrada (em
instituto religioso ou em instituto secular) e da observância dos valores
evangélicos (pobreza voluntária, obediência inteira e castidade perpétua); o
celibato eclesial obrigatório, ou seja, como condição sine qua non para a receção do sacramento da Ordem ao nível
presbiteral, na Igreja Católica de rito latino, e ao nível episcopal na Igreja
Católica (Latina e Oriental) e na Igreja Ortodoxa; a solução dos padres que
deixaram o exercício das ordens e contraíram matrimónio; e, eventualmente, o
casamento de sacerdotes celebrado posteriormente à ordenação sacerdotal.
Porém, afirmar com o Papa Francisco que o celibato “não
é um dogma” não comporta novidade. Nunca encontrei alguém que tenha afirmado o
contrário. Tanto assim é que se reconhece a validade da ordenação e consequente
exercício sacerdotal da parte de homens casados na Igreja Ortodoxa e na Igreja
Católica do Oriente. Todavia, a ordenação é posterior ao casamento e os casados
padres não ascendem ao episcopado. E convivem os casados padres e os célibes
padres. Por outro lado, a Igreja Católica aceita o sacerdócio de homens casados
provenientes de outras religiões em que já exerciam funções de liderança de algum
modo equiparáveis às do sacerdócio católico.
Mantém-se, no entanto, a questão: se o casamento não é
do ponto de vista teológico obstáculo ao sacerdócio ministerial (mesmo alguns
dos apóstolos eram casados), porque não se permite o casamento de padres ou o
acesso dos casados padres ao episcopado? Até porque se mantém a doutrina teológica de que o
sacerdócio não se lhes retira, cabendo-lhes eventualmente mesmo a obrigação dos
atos in extremis. Resta saber se
sociologicamente devem continuar a ser tratados por padres – o que pode provir
da convicção doutrinal, do hábito ou da ironia!
Dizer que o celibato “é uma regra de vida”, que se
aprecia muito e que é uma oferta à Igreja, um dom à pessoa que pode colocar-se
ao serviço da comunidade é defensável por qualquer pessoa, mas não vai, apesar
disso, impor-se a todos os cristãos. Efetivamente, a teologia bíblica ou a
teologia sistemática permitem garantir que o celibato confere uma maior
similitude com Cristo e testemunha uma identificação da vivência escatológica
em que são ultrapassadas as vicissitudes do século – homens e mulheres não se
entregam em casamento, viverão como anjos (cf Mt 22,30). Do lado da
espiritualidade, compreende-se que o celibato postule uma ascese específica e
uma entrega sem reservas a Cristo e à sua obra, em regime de exclusividade com
um coração não dividido, o que pressupõe uma acurada formação espiritual e psicológica.
E, ao nível da práxis pastoral, o sacerdócio célibe trará uma outra
disponibilidade em prol da comunidade, uma liberdade maior de movimentos, uma
libertação de encargos familiares.
No entanto, a excelência do dom ou a recomendação do
seguimento mais próximo de Cristo, a especificidade da espiritualidade célibe
ou a sua peculiar disponibilidade pastoral não significarão obrigatoriedade de
junção do celibato com sacerdócio ministerial. Aí temos os religiosos (padres
ou irmãos leigos) e as religiosas, bem como os membros dos Institutos Seculares
(masculinos e femininos), cujo número, espiritualidade e ação devem ser
respeitados, fomentados e potenciados. No entanto, não se lhes deve reservar o
serviço de profecia, de santificação no âmbito da Ordem ou as lideranças. Os
jesuítas não acrescentam aos três valores evangélicos mencionados o voto
explícito de obediência ao Papa? Ninguém entendeu dever estendê-lo aos
restantes institutos religiosos e/ou seculares! E os institutos religiosos e seculares
não têm aqueles que, não sendo membros de pleno direito, se fazem simpatizantes
e recebem formação da espiritualidade dos institutos com que têm relação? O
dinamismo da Igreja não beneficia da espiritualidade e ação das ditas ordens
terceiras? A Igreja Católica, sobretudo nos últimos tempos, tem contado com o
contributo temporário de jovens e casais em ação missionária, sobretudo no
atinente a atividades de assistência, alfabetização, saúde e catequeses. Deverá
exigir-se-lhes, só por isso, uma vida célibe? E não vem contando com positiva
disponibilidade de tantos leigos para o serviço do reino de Deus no quadro das
suas profissões, nas catequeses, nas atividades de gestão e justiça e nalgumas
atividades parassacerdotais? Deverá exigir-lhes vida célibe? Não será possível a
chamada ao sacerdócio a quem se sinta vocacionado e disponível?
Não deveria tornar-se mais célere um processo de
dispensa de obrigação do cumprimento dos votos em contexto de instituto
religioso e/ou secular e fomentar mais situações de profissões religiosas temporárias?
Depois, há uma coisa que me parece esquisita: quando
concílios ou papas reformadores pensam em apertar a disciplina eclesiástica
celibatária, lá vem quase sempre a situação do relaxamento de costumes,
concretizado na atitude comportamental dos clérigos que viviam casados ou em
regime de concubinato, com um rebanho de filhos. Ora, confundir casamento e
concubinato não presta bom serviço ao estudo da temática, mesmo porque até ao motu proprio “Ministeria Quaedam”, de
Paulo VI, eram muitos os clérigos que não eram obrigados ao celibato (a clerezia
começava com a prima tonsura e o
celibato era aplicável a partir do subdiaconado).
Por outro lado, parece-me que a liderança eclesiástica
na Europa recebeu forte influência dos mosteiros: embora se fizesse, a meu ver
mal, a diferença entre clero regular (incluindo frades e freiras, que
teologicamente são leigos/as) e clero secular (como se este não obedecesse a
uma regra, a da diocese). Não se percebe, por outro lado, como é que o padre
secular é obrigado ao celibato, supostamente casto, à obediência ao respetivo
bispo e sucessores e se deixa de fora o valor da pobreza voluntária. Se não
fora a obrigatoriedade do celibato artificiosamente transformada em atitude
livre através da promessa formal, que se instituiu nos últimos tempos, e a
promessa de obediência ao bispo – as promessas distinguiam-se dos votos, por
estes obrigarem pela virtude da religião e aquela obrigar “só” (?) pela virtude
da fidelidade – o padre secular seria um frade manco. Daqui a existência de
sacerdotes seculares com manifestações de ganância e de prepotência, talvez
como dizem alguns, em compensação de uma componente célibe mal resolvida,
recalcada em vez de sublimada.
Atentando na segunda parte do enunciado papal – “neste momento,
não temos em programa falar disso, pelo menos para já. Temos coisas mais
importantes a abordar” – não me parece poder augurar para breve o debate sereno,
mas intempestivo, da matéria, muito menos no atinente à situação dos padres
casados que pretendem legitimamente um lugar de significativa cooperação na
Igreja, scilicet, exercício do
múnus sacerdotal por padres casados, que deixaram o exercício por dispensa
devidamente tramitada ou que se autodispensaram sem esperar pelo processo dito
pastoral – saíram porque o quiseram fazer, como entraram no sacerdócio sua sponte. Nem penso que haja abertura
para facultar o casamento de homens já ordenados ou o acesso de casados padres
ao episcopado. Se a primeira parte do enunciado pontifical revela abertura, a
segunda aponta para a prudência. Não podemos esquecer que Paulo VI propôs ao
sínodo dos bispos, de 1971, a discussão franca do celibato eclesial, como foi
revelado, e bem, no programa “Prós e Contras”, com o compromisso de seguir o
veredicto sinodal, tendo optado os padres sinodais maioritariamente pela
manutenção deste ponto da disciplina eclesiástica. É certo que hoje os bispos
estão mais preocupados e solícitos, devido à escassez de vocações sacerdotais e
à existência de muitas comunidades sem a celebração da Eucaristia. Não sei,
porém, se tal solicitude será suficiente para alterar significativamente a
situação. Continuará a prevalecer o pendor eclesiástico sobre o pendor
eclesial?
Todavia, é preciso
desfazer a popular confusão do casamento dos padres como equivalente ao das
freiras ou enveredar pela ideia de casar padres com freiras, bem como a de
obrigar os padres ao casamento.
***
Quanto ao programa, que exibiu um painel de excelência
– padres Anselmo Borges e Feytor Pinto, professor doutor Daniel Serrão e Maria
José Vilaça (Presidente da Associação de Psicólogos Católicos) – convém referir
o facto de ter decorrido com uma liberdade e elevação não usuais. Todos os intervenientes
opinaram desinibidamente e com o cuidado de uma exposição clara e simples, de
modo que a mensagem fosse universalmente entendível. Explicitaram que a Igreja
Católica tem uma doutrina magnífica sobre a sexualidade, sobre o corpo (só o
Papa polaco proferiu 183 discursos sobre esta matéria) e sobre o necessário e
bom prazer sexual. Todavia, tudo se esfarela na barreira da lista infindável de
normas e ditames morais sobre sexo. E a doutrina não passa para o povo, quiçá
por inépcia ou incúria dos comunicadores.
Ficou também claro que os problemas começaram quando a
Igreja se intrometeu excessivamente nestes aspetos da sexualidade, numa lógica
de afirmação de poder e juridicismo, em vez da oferta de contributo humilde
para a sua dignificação, o que só lhe
trouxe sarilhos. O moralismo norteado pela obsessão do pecado, por que se vem
pautando a prática pastoral, tem contribuído para o enorme divórcio entre a
Igreja hierárquica e fiéis, entre Igreja e não crentes (sobretudo os que se
afastaram da Igreja e prática religiosa). Daí que o Doutor Daniel Serrão
tenha pronunciado a frase mais sentenciosa do debate: “Se a Igreja se mantivesse afastada das questões de alcova evitaria
muitos problemas”.
Tudo seria mais simples, mais humano, quiçá mais de
acordo com o Evangelho do Cristo, que faz questão de perdoar sempre, se a
Igreja Católica se centrasse na proclamação da sua belíssima doutrina, incluindo
a que apresenta sobre a sexualidade, se purificasse a linguagem e libertasse as
pessoas da carga de pecados que a sexualidade vem implicando e acolhesse cada
pessoa como ela é e se apresenta, sem ter de enfrentar um índex de regras proibitivas que a rebaixam ou a marginalizam.
Ora, está aberto o debate franco sobre a sexualidade
na Igreja Católica, o que possibilita a necessária mudança de linguagens e de
práticas, bem como a perda da obsessão do pecado e do moralismo obsoleto.
Quanto ao celibato, importa
acentuar que a penúria de vocações e a falta de celebração eucarística em muitas
comunidades, a par das exceções ao celibato eclesial (atente-se nas
provenientes de outras religiões cristãs), embora não sejam determinantes,
impõem a reflexão séria e intempestiva com vista à alteração e regulação da
disciplina eclesiástica. Já no concílio de Trento o arcebispo de Braga, Dom
Frei Bartolomeu dos Mártires, perante a decisão de obrigatoriedade do celibato
dos padres, clamava lancinantemente: “Parcite
saltem barrosanis meis!” – poupai ao menos os meus padres da região de
Barroso! Não terá sido por isso que a sua beatificação se atrasou séculos e séculos.
O celibato continuará a ser um valor extraordinário
para Igreja Católica, mas ter-se-á de assumir sem medo a ideia da coexistência
necessária e da convivência saudável com padres casados, sem que estes sejam de
segunda e os outros de primeira.
A Igreja reencontrará, a seu
tempo, o “sensus ecclesiae”, como o fez no passado em tantas questões. Mas, até
que estes problemas sejam resolvidos, não se podem demitir das suas
responsabilidades os católicos conscientes e responsáveis, sobretudo os líderes
de opinião. Têm de manifestar seus pontos de vista até que a largueza da autêntica
e diversificada vontade de Cristo se realize no exercício do múnus do
sacerdócio ministerial, no quadro do serviço da Igreja católica a Cristo e ao
mundo.
***
Que ninguém por nada tente condicionar a lúcida ação
do Espírito Santo, que sábia e serenamente conduz a Igreja na rota da salvação
sem aceção de pessoas.
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