terça-feira, 3 de junho de 2014

A Igreja e a sexualidade (celibato incluído)

O programa “Prós e Contras”, de 2 de junho de 2014, moderado pela Jornalista Fátima Campos Ferreira, abordou o tema referenciado em epígrafe. O pretexto para a sua organização foi a enunciação de Francisco produzida ante os jornalistas a bordo do avião aquando do seu regresso da Terra Santa, sobre o celibato eclesial. Em resposta à pergunta sobre o tema, o Papa pronunciou-se: “O celibato não é um dogma de fé, é uma regra de vida, que aprecio muito e creio que é uma oferta à Igreja”. Mas acrescentou: “Não sendo um dogma de fé, sempre temos a porta aberta: neste momento, não temos em programa falar disso, pelo menos para já. Temos coisas mais importantes a abordar.” 
Conquanto o programa tenha sido muito interessante, como veremos adiante, fez o que muitos e em muitos lugares fazem a propósito do celibato eclesial (alguns dizem eclesiástico, pois o encaram na perspetiva excessivamente jurídica, o que não é de todo exato): a mistura de muitos temas candentes, sim, mas em torno ou a propósito de uma temática singularmente específica. E, para lá do celibato, muitas ideias vieram à tona: a reversibilidade ou não do estado sacerdotal, a teologia do corpo, a regulação da natalidade, a homossexualidade, a posição genérica da Igreja perante a sexualidade, incluindo o uso do preservativo no contexto de alastramento da SIDA, a pedofilia e o abuso sexual de menores. São efetivamente subtemas do título epigráfico, mas não necessariamente atinentes à problemática “celibato”.
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Ora, o problema do celibato coloca-se em diversos patamares: o celibato no quadro da radicalidade da vida consagrada (em instituto religioso ou em instituto secular) e da observância dos valores evangélicos (pobreza voluntária, obediência inteira e castidade perpétua); o celibato eclesial obrigatório, ou seja, como condição sine qua non para a receção do sacramento da Ordem ao nível presbiteral, na Igreja Católica de rito latino, e ao nível episcopal na Igreja Católica (Latina e Oriental) e na Igreja Ortodoxa; a solução dos padres que deixaram o exercício das ordens e contraíram matrimónio; e, eventualmente, o casamento de sacerdotes celebrado posteriormente à ordenação sacerdotal.
Porém, afirmar com o Papa Francisco que o celibato “não é um dogma” não comporta novidade. Nunca encontrei alguém que tenha afirmado o contrário. Tanto assim é que se reconhece a validade da ordenação e consequente exercício sacerdotal da parte de homens casados na Igreja Ortodoxa e na Igreja Católica do Oriente. Todavia, a ordenação é posterior ao casamento e os casados padres não ascendem ao episcopado. E convivem os casados padres e os célibes padres. Por outro lado, a Igreja Católica aceita o sacerdócio de homens casados provenientes de outras religiões em que já exerciam funções de liderança de algum modo equiparáveis às do sacerdócio católico.
Mantém-se, no entanto, a questão: se o casamento não é do ponto de vista teológico obstáculo ao sacerdócio ministerial (mesmo alguns dos apóstolos eram casados), porque não se permite o casamento de padres ou o acesso dos casados padres ao episcopado? Até porque se mantém a doutrina teológica de que o sacerdócio não se lhes retira, cabendo-lhes eventualmente mesmo a obrigação dos atos in extremis. Resta saber se sociologicamente devem continuar a ser tratados por padres – o que pode provir da convicção doutrinal, do hábito ou da ironia!
Dizer que o celibato “é uma regra de vida”, que se aprecia muito e que é uma oferta à Igreja, um dom à pessoa que pode colocar-se ao serviço da comunidade é defensável por qualquer pessoa, mas não vai, apesar disso, impor-se a todos os cristãos. Efetivamente, a teologia bíblica ou a teologia sistemática permitem garantir que o celibato confere uma maior similitude com Cristo e testemunha uma identificação da vivência escatológica em que são ultrapassadas as vicissitudes do século – homens e mulheres não se entregam em casamento, viverão como anjos (cf Mt 22,30). Do lado da espiritualidade, compreende-se que o celibato postule uma ascese específica e uma entrega sem reservas a Cristo e à sua obra, em regime de exclusividade com um coração não dividido, o que pressupõe uma acurada formação espiritual e psicológica. E, ao nível da práxis pastoral, o sacerdócio célibe trará uma outra disponibilidade em prol da comunidade, uma liberdade maior de movimentos, uma libertação de encargos familiares.
No entanto, a excelência do dom ou a recomendação do seguimento mais próximo de Cristo, a especificidade da espiritualidade célibe ou a sua peculiar disponibilidade pastoral não significarão obrigatoriedade de junção do celibato com sacerdócio ministerial. Aí temos os religiosos (padres ou irmãos leigos) e as religiosas, bem como os membros dos Institutos Seculares (masculinos e femininos), cujo número, espiritualidade e ação devem ser respeitados, fomentados e potenciados. No entanto, não se lhes deve reservar o serviço de profecia, de santificação no âmbito da Ordem ou as lideranças. Os jesuítas não acrescentam aos três valores evangélicos mencionados o voto explícito de obediência ao Papa? Ninguém entendeu dever estendê-lo aos restantes institutos religiosos e/ou seculares! E os institutos religiosos e seculares não têm aqueles que, não sendo membros de pleno direito, se fazem simpatizantes e recebem formação da espiritualidade dos institutos com que têm relação? O dinamismo da Igreja não beneficia da espiritualidade e ação das ditas ordens terceiras? A Igreja Católica, sobretudo nos últimos tempos, tem contado com o contributo temporário de jovens e casais em ação missionária, sobretudo no atinente a atividades de assistência, alfabetização, saúde e catequeses. Deverá exigir-se-lhes, só por isso, uma vida célibe? E não vem contando com positiva disponibilidade de tantos leigos para o serviço do reino de Deus no quadro das suas profissões, nas catequeses, nas atividades de gestão e justiça e nalgumas atividades parassacerdotais? Deverá exigir-lhes vida célibe? Não será possível a chamada ao sacerdócio a quem se sinta vocacionado e disponível?
Não deveria tornar-se mais célere um processo de dispensa de obrigação do cumprimento dos votos em contexto de instituto religioso e/ou secular e fomentar mais situações de profissões religiosas temporárias?
Depois, há uma coisa que me parece esquisita: quando concílios ou papas reformadores pensam em apertar a disciplina eclesiástica celibatária, lá vem quase sempre a situação do relaxamento de costumes, concretizado na atitude comportamental dos clérigos que viviam casados ou em regime de concubinato, com um rebanho de filhos. Ora, confundir casamento e concubinato não presta bom serviço ao estudo da temática, mesmo porque até ao motu proprio “Ministeria Quaedam”, de Paulo VI, eram muitos os clérigos que não eram obrigados ao celibato (a clerezia começava com a prima tonsura e o celibato era aplicável a partir do subdiaconado).
Por outro lado, parece-me que a liderança eclesiástica na Europa recebeu forte influência dos mosteiros: embora se fizesse, a meu ver mal, a diferença entre clero regular (incluindo frades e freiras, que teologicamente são leigos/as) e clero secular (como se este não obedecesse a uma regra, a da diocese). Não se percebe, por outro lado, como é que o padre secular é obrigado ao celibato, supostamente casto, à obediência ao respetivo bispo e sucessores e se deixa de fora o valor da pobreza voluntária. Se não fora a obrigatoriedade do celibato artificiosamente transformada em atitude livre através da promessa formal, que se instituiu nos últimos tempos, e a promessa de obediência ao bispo – as promessas distinguiam-se dos votos, por estes obrigarem pela virtude da religião e aquela obrigar “só” (?) pela virtude da fidelidade – o padre secular seria um frade manco. Daqui a existência de sacerdotes seculares com manifestações de ganância e de prepotência, talvez como dizem alguns, em compensação de uma componente célibe mal resolvida, recalcada em vez de sublimada.
Atentando na segunda parte do enunciado papal – “neste momento, não temos em programa falar disso, pelo menos para já. Temos coisas mais importantes a abordar” – não me parece poder augurar para breve o debate sereno, mas intempestivo, da matéria, muito menos no atinente à situação dos padres casados que pretendem legitimamente um lugar de significativa cooperação na Igreja, scilicet, exercício do múnus sacerdotal por padres casados, que deixaram o exercício por dispensa devidamente tramitada ou que se autodispensaram sem esperar pelo processo dito pastoral – saíram porque o quiseram fazer, como entraram no sacerdócio sua sponte. Nem penso que haja abertura para facultar o casamento de homens já ordenados ou o acesso de casados padres ao episcopado. Se a primeira parte do enunciado pontifical revela abertura, a segunda aponta para a prudência. Não podemos esquecer que Paulo VI propôs ao sínodo dos bispos, de 1971, a discussão franca do celibato eclesial, como foi revelado, e bem, no programa “Prós e Contras”, com o compromisso de seguir o veredicto sinodal, tendo optado os padres sinodais maioritariamente pela manutenção deste ponto da disciplina eclesiástica. É certo que hoje os bispos estão mais preocupados e solícitos, devido à escassez de vocações sacerdotais e à existência de muitas comunidades sem a celebração da Eucaristia. Não sei, porém, se tal solicitude será suficiente para alterar significativamente a situação. Continuará a prevalecer o pendor eclesiástico sobre o pendor eclesial?
Todavia, é preciso desfazer a popular confusão do casamento dos padres como equivalente ao das freiras ou enveredar pela ideia de casar padres com freiras, bem como a de obrigar os padres ao casamento.
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Quanto ao programa, que exibiu um painel de excelência – padres Anselmo Borges e Feytor Pinto, professor doutor Daniel Serrão e Maria José Vilaça (Presidente da Associação de Psicólogos Católicos) – convém referir o facto de ter decorrido com uma liberdade e elevação não usuais. Todos os intervenientes opinaram desinibidamente e com o cuidado de uma exposição clara e simples, de modo que a mensagem fosse universalmente entendível. Explicitaram que a Igreja Católica tem uma doutrina magnífica sobre a sexualidade, sobre o corpo (só o Papa polaco proferiu 183 discursos sobre esta matéria) e sobre o necessário e bom prazer sexual. Todavia, tudo se esfarela na barreira da lista infindável de normas e ditames morais sobre sexo. E a doutrina não passa para o povo, quiçá por inépcia ou incúria dos comunicadores.
Ficou também claro que os problemas começaram quando a Igreja se intrometeu excessivamente nestes aspetos da sexualidade, numa lógica de afirmação de poder e juridicismo, em vez da oferta de contributo humilde para a sua dignificação, o que só lhe trouxe sarilhos. O moralismo norteado pela obsessão do pecado, por que se vem pautando a prática pastoral, tem contribuído para o enorme divórcio entre a Igreja hierárquica e fiéis, entre Igreja e não crentes (sobretudo os que se afastaram da Igreja e prática religiosa). Daí que o Doutor Daniel Serrão tenha pronunciado a frase mais sentenciosa do debate: “Se a Igreja se mantivesse afastada das questões de alcova evitaria muitos problemas”.
Tudo seria mais simples, mais humano, quiçá mais de acordo com o Evangelho do Cristo, que faz questão de perdoar sempre, se a Igreja Católica se centrasse na proclamação da sua belíssima doutrina, incluindo a que apresenta sobre a sexualidade, se purificasse a linguagem e libertasse as pessoas da carga de pecados que a sexualidade vem implicando e acolhesse cada pessoa como ela é e se apresenta, sem ter de enfrentar um índex de regras proibitivas que a rebaixam ou a marginalizam.
Ora, está aberto o debate franco sobre a sexualidade na Igreja Católica, o que possibilita a necessária mudança de linguagens e de práticas, bem como a perda da obsessão do pecado e do moralismo obsoleto.
Quanto ao celibato, importa acentuar que a penúria de vocações e a falta de celebração eucarística em muitas comunidades, a par das exceções ao celibato eclesial (atente-se nas provenientes de outras religiões cristãs), embora não sejam determinantes, impõem a reflexão séria e intempestiva com vista à alteração e regulação da disciplina eclesiástica. Já no concílio de Trento o arcebispo de Braga, Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, perante a decisão de obrigatoriedade do celibato dos padres, clamava lancinantemente: “Parcite saltem barrosanis meis!” – poupai ao menos os meus padres da região de Barroso! Não terá sido por isso que a sua beatificação se atrasou séculos e séculos.
O celibato continuará a ser um valor extraordinário para Igreja Católica, mas ter-se-á de assumir sem medo a ideia da coexistência necessária e da convivência saudável com padres casados, sem que estes sejam de segunda e os outros de primeira.
A Igreja reencontrará, a seu tempo, o “sensus ecclesiae”, como o fez no passado em tantas questões. Mas, até que estes problemas sejam resolvidos, não se podem demitir das suas responsabilidades os católicos conscientes e responsáveis, sobretudo os líderes de opinião. Têm de manifestar seus pontos de vista até que a largueza da autêntica e diversificada vontade de Cristo se realize no exercício do múnus do sacerdócio ministerial, no quadro do serviço da Igreja católica a Cristo e ao mundo.
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Que ninguém por nada tente condicionar a lúcida ação do Espírito Santo, que sábia e serenamente conduz a Igreja na rota da salvação sem aceção de pessoas.

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