domingo, 1 de junho de 2014

Um histórico gesto de solidariedade

Termina em beleza o mês de maio, mês de Maria e do coração. Efetivamente, a festa litúrgica da Visitação de Nossa Senhora constitui o termo do mês que pode muito bem servir de pretexto para uma reflexão com alguma pertinência.
Instituída por Urbano VI em 1389, a festa situa-se entre a da Anunciação do Senhor e a do Nascimento de João Batista, na observância do tempo do relato bíblico. Evoca a visita de Nossa Senhora à sua prima Santa Isabel, grávida já de idade avançada, para a ajudar na esperança da sua maternidade e, ao mesmo tempo, para partilhar com ela o júbilo das maravilhas realizadas por Deus em ambas. Esta festa da Virgem, a encerrar as celebrações de um mês tradicionalmente dedicado a Maria, manifesta-nos o seu espírito de serviço, a sua profunda humildade e a sua ação medianeira. É Ela, a que deu à luz o Autor da Vida, que nos mostra Jesus, de quem se fez simultaneamente educadora e discípula; e é Ela quem nos encaminha para Jesus como atesta a tradição: Per Mariam ad Iesum.  
Por outro lado, o evocado episódio ensina que a alegria cristã tem de ser levada a todos os lugares em que vivem as pessoas, nomeadamente aquelas que mais precisam da solidariedade ou porque se encontram mergulhadas no isolamento e na solidão ou porque a sociedade as votou à miséria, à pobreza e, tantas vezes, à insignificância dos sem vez e sem voz. À semelhança de Maria, que a ladainha de Loreto chama “causa da nossa alegria”, também o cristão tem o encargo de ser causa de alegria para os outros e de mostrar Jesus e de encaminhar para Jesus, pela palavra e pela vida.
Após a Anunciação do anjo, Maria partiu em visita, não só de cortesia, mas sobretudo de serviço, à prima Isabel, que vivia na região montanhosa da Judeia, mais propriamente em Ain-Karim, a quatro ou cinco dias de caminho. Naqueles diasMaria levantou-se e foi com presteza à montanha, a uma cidade de Judá (Lc 1,39). Não é obrigada: o anjo nada lhe exigira da parte de Deus, nesse sentido. No entanto, ao conhecer por meio do Anjo o estado de Isabel, a jovem Maria apressa-se a ir em seu auxílio nos momentos difíceis por que ela estava a passar, nomeadamente no atinente ao serviço de proximidade e das lides domésticas. Humanamente, qualquer conselheiro hodierno lhe teria sugerido que permanecesse em sua casa para a preparar em clima de absoluta tranquilidade a chegada do seu Filho, até por se tratar do Messias. Não obstante, a contrario e ao invés da ótica confortável e egoísta, a jovem, também grávida e humanamente sob suspeita (concebera sem concurso de varão, facto considerado impossível a todos menos a Deus), põe-se pressurosamente (cum festinatione) a caminho e com alegre prontidão, a fim de prestar os seus serviços humildes à parenta em apuros, sua prima.
Pode dizer-se sem perigo de exagero que este é o primeiro momento da sólida solidariedade neotestamentária. Mas a este momento de solidariedade fraterna, no sentido da mais ampla profundeza (porque movido pela Palavra de Deus, que torna o crente mãe, irmão e irmã de Cristo – cf Mt 12,46-50; Mc 3-31-35), alia-se necessariamente o profético e cristianíssimo desejo de comunicação da alegria e do júbilo que inundam as almas de Deus: laetare! laetamini! – alegra-te, alegrai-vos:
Entoa cânticos de louvor, filha de Sião, alegra-te e exulta de todo o coração, filha de Jerusalém [...]. O Senhor, que é o rei de Israel, está no meio de ti [...]. Ele se regozijará em ti com júbilo eterno (Sf 3, 14.17-18).
Não será difícil colocar em nossa ideia e imaginação a imensa alegria que transbordava do coração de Maria desde o dia da Anunciação e o grande desejo que teria em a comunicar. Por outro lado, se o anjo lhe disse que Isabel, sua prima, a considerada estéril, também concebera um filho na sua velhice (cf Lc 1,36), era normal que essa expressão de testemunho devesse remeter para uma conceção prodigiosa articulada com a iminente vinda do Messias. E essa alegria, não somente humana, mas radicada na força luminosa e esfuziante do Espírito, torna-se difusiva e contagiante, como se pode aferir factualmente. Quando chegou, Maria entrou em casa de Zacarias e saudou a prima. E aconteceu que, quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança saltou no seu seio, e Isabel ficou repleta do Espírito Santo (Lc 1,40). Toda a parentela se transformou pela presença de Jesus e de Maria. A saudação da Virgem induziu, com toda a poderosa eficácia, a que Isabel ficasse cumulada do Espírito Santo, que dela fez botar palavras de fé proféticas e inspiradoras de oração impregnada de alegria feliz:
Bendita és tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre. E donde me é dado que venha visitar-me a mãe do meu Senhor? Pois, ao chegar aos meus ouvidos a voz da tua saudação, a criancinha saltou de alegria no meu seio. Bem-aventurada Aquela que acreditou, pois hão de cumprir-se as coisas que da parte do Senhor lhe foram ditas. (Lc 1, 42-45).
Temos nesta passagem bíblica o elogio da fé (bem-aventurada Aquela que acreditou), o elogio da fidelidade divina (hão de cumprir-se as coisas que da parte do Senhor lhe foram ditas), a perceção humilde do mistério (donde me é dado que venha visitar-me a mãe do meu Senhor) e um momento de oração de jubiloso louvor (Bendita és tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre) assumido pela tradição da Igreja orante, o povo de filhos piedoso (proles pia). É assim o fruto da solidariedade praticada de olhos postos em Deus e no seu mistério e, ao mesmo tempo, orientada pelo afazer do próximo.
Para lá da tarefa que o cristão tem de assumir de ser causa de alegria para os outros, é necessário que, a exemplo de Maria, saiba ser portador de Cristo ao pé de quem mais precisa. O cristão tem de ser cristóforo ou Cristóvão, não um simples porta-bandeira, mas um porta-Cristo. E neste transporte cristónomo, que não pode ser encarado como um frete servil ou mercantil, tem de haver a indução a cada vez mais e melhor fé, intrépida profecia (falar por Deus) e ardente oração (o boca a boca com Deus) e o firme compromisso de solidez solidária com todos, mas privilegiando os que mais sofrem.
E o rasgo orante de Isabel mostra a união de vida entre Cristo e Maria (bendita és Tu e bendito é o fruto do teu ventre) e, por conseguinte, de objeto da atenção orante dos crentes. Isabel, repleta do Espírito de Sabedoria e Ciência, da Piedade e Conselho, do Entendimento e Fortaleza e do Temor de Deus (Sacrum Septenarium) não se limita a chamar bendita a Maria, mas relaciona o seu louvor com o fruto do ventre de Maria, que é bendito pelos séculos dos séculos. Maria e Jesus estarão sempre intimamente unidos. Os momentos mais prodigiosos da vida de Jesus transcorrerão – como neste caso – em total união com sua Mãe, a medianeira de todas as graças: “Esta união entre Mãe e Filho na obra da Salvação – diz o Concílio Vaticano II – manifesta-se desde o tempo da conceição virginal de Cristo até a sua morte” (LG 57-58).
Outra lição da visita de Maria parece ser a do estilo habitual da ação divina junto das criaturas humanas: regra geral, Deus não intervém diretamente, mas mediante os seus agentes, suas outras criaturas. É através do anjo ou através de Maria e de Isabel que Deus oferece a instrução da profecia e da fé, da oração no Espírito e da leda solidariedade para com o próximo. O nosso Deus é um Deus escondido ou misterioso (Is 45,15), que prefere agir mediante as causas segundas.
Manter a fé como dom de Deus – por que o homem anseia, que o homem assume e a que o homem adere – e robustecê-la no quotidiano não é tarefa isenta de risco. Tudo parece tão trivial ou tão necessário, tão dependente do nosso esforço ou de lei meramente natural, que somos tentados a esquecer que é Deus quem inculca em nós toda bem-querença e boa ação (cf Fl 2,13): Sem mim, nada podeis fazer (Jo 15,5) – diz taxativamente o Mestre. Seríamos desatentos e mesmo insensatos – quiçá infelizes – se não descobrirmos a mão amorosa de Deus, o seu desígnio insondável tanto nos eventos extraordinários como no devir sereno das horas de trabalho ou de lazer, da vida familiar ou da vida social. Para o crente, tudo é obra da Providência em articulação com o necessário esforço humano.
Profecia e fé, oração e proximidade de Deus, solidariedade e serviço ao próximo são elementos fundamentais do episódio da Visitação. No entanto, o pano de fundo é o da alegria messiânica que se exprime em ato de ação de graças e bênção, em cântico da misericórdia divina: o evento da Visitação de Maria é um mistério de jubiloso e paradigmático encontro. João Batista exulta de alegria no seio de Isabel; Isabel, cheia de alegria pelo inesperado dom da maternidade, irrompe em aclamação ao Senhor; e, enfim, Maria eleva aos céus o Magnificat, “o cântico dos tempos messiânicos, onde confluem a alegria do antigo e do novo Israel” (Paulo VI, Ex. Ap. Marialis Cultus). O Magnificat é a epifania do segredo íntimo da Virgem que lhe fora confiado pelo anjo; é o espelho da alma de Maria, uma alma cheia de magnanimidade, a visibilidade do olhar materno de Deus, a concretização da paternidade divina no tempo, na era da nova criação que se avizinha. “A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador” (Lc 1,46-47). Com este excelso hino de alegria humilde, a Virgem deixou-nos uma previsão de futuro atinente a si própria, que nós vemos realizada ao longo do tempo do Messias: “Eis que doravante me proclamarão ditosa todas as gerações, porque fez em mim grandes coisas aquele que é Todo-Poderoso” (Lc 1,48). “Desde remotíssimos tempos – recorda o Vaticano II – a Bem-aventurada Virgem é venerada sob o título de Mãe de Deus, sob cuja proteção os fiéis se refugiam súplices em todos os seus perigos e necessidades. Por isso, sobretudo a partir do Concílio de Éfeso, o culto do povo de Deus a Maria cresceu maravilhosamente em veneração e amor, em invocações e desejos de imitação, de acordo com as suas próprias palavras proféticas. Eis que me chamarão bem-aventurada…” (LG, 66).
Santa Maria, mãe de Deus, não se distinguiu por nenhum feito espetacular; o Evangelho não dá a conhecer nenhum feito miraculoso que Ela tenha realizado durante a sua estada palestiniana na terra; são pouquíssimas as palavras que d’Ela nos conservou o texto inspirado. A sua vida aos olhos dos familiares e circunstantes foi a da mulher normal, Maria de Nazaré, que devia levar por diante os normais encargos familiares. Não obstante, a profecia cumpriu-se fielmente. E todos a proclamam ditosa, porque Ela foi, é e será sempre a santa e pressurosa visitadora, como o explanou D. Fouad Twal, Patriarca Latino de Jerusalém, em Fátima a 12 e 13 de maio de 2014.
Em ambiente de vigília noturna, ensinou sobre o perfil missionário da Virgem e Senhora da Mensagem, que transcrevo, com alterações acomodatícias:
Ela nasceu na Palestina – em certo sentido é também nossa paroquiana ­– e, desde ali, começou a sua missão ao longo do tempo e do espaço, bendizendo a história humana com a sua presença benéfica. Todos os santuários marianos do mundo possuem algo desta presença de Maria, e entre eles se complementam e se “reclamam mutuamente”: Nazaré recorda-nos o “sim” de Maria: “sim” puríssimo, incondicional e fecundo; Belém recorda-nos a sua Maternidade divina e virginal; Jerusalém – santuário do Gólgota e do Sepulcro Vazio – recorda-nos a Virgem das Dores, mas também a Virgem da Esperança e, finalmente, a Virgem Gozosa da Ressurreição.
E assim no mundo inteiro: a Virgem, em La Salette, recorda-nos as lágrimas de Nossa Senhora e a sua esperança no meio do sofrimento; em Lourdes, a sua Imaculada Conceição como fonte de graças celestiais; em Guadalupe, a sua providência amorosa e maternidade universal; em El Pilar, a sua solidez de rainha e mãe…; e em Fátima, a força do Seu Imaculado Coração, como fonte de salvação para a Humanidade. […] Desde Nazaré, começou a sua ação evangelizadora, ação que nunca cessou, ação que continua no tempo e no espaço. Ela vai por todos os caminhos do mundo, tentando guiar os seus filhos, para que voltem a Deus Pai, e tentando que aqueles que ainda não conhecem a Deus O conheçam, O amem e O sigam. (homilia, 12-05).
Mas, ante a multidão de peregrinos, na solene concelebração de encerramento da peregrinação aniversária o mesmo Patriarca Latino de Jerusalém pronunciou-se no seguintes termos sobre o multissecular itinerário pressuroso, solícito e solidário de Maria, aquela que percorre sem preconceitos os diversos caminhos dos homens:
A Virgem de Fátima nasceu na Palestina e desde ali iniciou a sua vida itinerante… A partir de Nazaré – onde começará a ser a Mãe do Verbo Encarnado – “A cheia de Deus”, a cheia de graça, vai pressurosa a Ain Karim para compartilhar essa graça no seu serviço de piedade e caridade; encontramo-la logo em Belém – onde o mundo fiel (os pastores) e o pagão (os reis magos) contemplarão o fruto do seu ventre virginal; dali, como os milhões de refugiados no Médio Oriente e em África, se refugiará no Egito, protegendo o Filho das suas entranhas e crescendo no amor virginal com São José.
Logo, regressa a Nazaré… acompanha o seu filho a Caná – onde antecipa a Hora do Senhor, pedindo-Lhe um milagre (a medianeira das graças, a desatadora de todos os nós). Vai com o Seu Filho a Cafarnaum… E acompanhá-Lo-á na sua Via-Sacra… e na sua Sepultura.
E assim fará com o Corpo Místico de seu Filho que é a Igreja… Ela esteve presente no Cenáculo até à vinda do Pentecostes… bastava a sua presença para tranquilizar os discípulos… Ela nunca esteve parada! Sempre acompanhou e acompanha a vida de seus filhos. Assim, ao longo da história, apareceu no Pilar e em Guadalupe… assim quis Ela chegar em pessoa aqui, para santificar este lugar com a sua presença e aparição.
[…] É Maria Santíssima quem nos une em Cristo. Ela fortalece o forte laço que existe entre Fátima em Portugal e Jerusalém na Terra Santa. Vós não podeis deixar de pensar nos lugares onde Maria Santíssima nasceu, viveu, sofreu e foi elevada ao Céu. […] Muitos são os santuários marianos no mundo, mas Ela é uma só, e Ela nos ensina a procurar a verdadeira unidade na Fé em seu Filho e na verdadeira Caridade.
Maria não tem problema em apresentar-se com vestes diversas e com cores de pele diversas. Ela não tem medo de nos falar em diferentes idiomas. (homilia, 13-05).

Quem pode, então, enumerar detalhadamente os louvores, invocações, preces, oferendas, títulos e santuários em sua honra, as devoções marianas, as suas graças, o seu testemunho da misericórdia divina? Ao longo dos séculos, proclamam-na bem-aventurada pessoas de todo o género e condição: intelectuais e gente considerada menos culta; chefes de estado e de governo, guerreiros e pacifistas, artesãos e técnicos superiores, cientistas e artistas, religiosos e seculares, sacerdotes e leigos, jovens e donzelas, pessoas idosas e crianças que começavam a balbuciar... E todos a sabem saudar particular ou publicamente, singela ou solenemente, individual ou comunitariamente: Ave, Maria, cheia de graça [...], bendita és Tu entre as mulheres... Ou: Salve, Rainha, Mãe de Misericórdia. Todos sabem pedir: Santa Maria, Mãe de Deus, roga por nós, pecadores!… Ou: Livra-nos de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita!

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