Termina em beleza o mês de maio, mês
de Maria e do coração. Efetivamente, a festa litúrgica da Visitação de Nossa
Senhora constitui o termo do mês que pode muito bem servir de pretexto para uma
reflexão com alguma pertinência.
Instituída por Urbano VI em 1389, a
festa situa-se entre a da Anunciação do Senhor e a do Nascimento de João
Batista, na observância do tempo do relato bíblico. Evoca a visita de
Nossa Senhora à sua prima Santa Isabel, grávida já de idade avançada, para a ajudar
na esperança da sua maternidade e, ao mesmo tempo, para partilhar com ela o
júbilo das maravilhas realizadas por Deus em ambas. Esta festa da Virgem, a
encerrar as celebrações de um mês tradicionalmente dedicado a Maria, manifesta-nos
o seu espírito de serviço, a sua profunda humildade e a sua ação medianeira. É
Ela, a que deu à luz o Autor da Vida, que nos mostra Jesus, de quem se fez simultaneamente
educadora e discípula; e é Ela quem nos encaminha para Jesus como atesta a
tradição: Per Mariam ad Iesum.
Por outro lado, o evocado episódio ensina que a
alegria cristã tem de ser levada a todos os lugares em que vivem as pessoas,
nomeadamente aquelas que mais precisam da solidariedade ou porque se encontram
mergulhadas no isolamento e na solidão ou porque a sociedade as votou à
miséria, à pobreza e, tantas vezes, à insignificância dos sem vez e sem voz. À
semelhança de Maria, que a ladainha de Loreto chama “causa da nossa alegria”,
também o cristão tem o encargo de ser causa de alegria para os outros e de
mostrar Jesus e de encaminhar para Jesus, pela palavra e pela vida.
Após a Anunciação do anjo, Maria partiu em visita, não
só de cortesia, mas sobretudo de serviço, à prima Isabel, que vivia na região
montanhosa da Judeia, mais propriamente em Ain-Karim, a quatro ou cinco dias de
caminho. Naqueles dias, Maria levantou-se e foi com
presteza à montanha, a uma cidade de Judá (Lc 1,39). Não é obrigada: o anjo nada lhe exigira da parte de Deus, nesse sentido.
No entanto, ao conhecer por meio do Anjo o estado de Isabel, a jovem Maria apressa-se
a ir em seu auxílio nos momentos difíceis por que ela estava a passar,
nomeadamente no atinente ao serviço de proximidade e das lides domésticas.
Humanamente, qualquer conselheiro hodierno lhe teria sugerido que permanecesse
em sua casa para a preparar em clima de absoluta tranquilidade a chegada do seu
Filho, até por se tratar do Messias. Não obstante, a contrario e ao invés da ótica confortável e egoísta, a jovem,
também grávida e humanamente sob suspeita (concebera
sem concurso de varão, facto considerado impossível a todos menos a Deus), põe-se
pressurosamente (cum festinatione) a caminho e com alegre
prontidão, a fim de prestar os seus serviços humildes à parenta em apuros, sua
prima.
Pode dizer-se sem perigo de exagero que este é o
primeiro momento da sólida solidariedade neotestamentária. Mas a este momento
de solidariedade fraterna, no sentido da mais ampla profundeza (porque movido pela Palavra de Deus, que
torna o crente mãe, irmão e irmã de Cristo – cf Mt 12,46-50; Mc 3-31-35),
alia-se necessariamente o profético e cristianíssimo desejo de comunicação da
alegria e do júbilo que inundam as almas de Deus: laetare! laetamini! – alegra-te, alegrai-vos:
Entoa cânticos de louvor, filha de Sião, alegra-te
e exulta de todo o coração, filha de Jerusalém [...]. O Senhor, que é o rei de
Israel, está no meio de ti [...]. Ele se regozijará em ti com júbilo eterno (Sf 3,
14.17-18).
Não será
difícil colocar em nossa ideia e imaginação a imensa alegria que transbordava
do coração de Maria desde o dia da Anunciação e o grande desejo que teria em a
comunicar. Por outro lado, se o anjo lhe disse que Isabel, sua prima, a considerada estéril, também concebera um filho na
sua velhice (cf Lc 1,36), era normal que essa expressão de testemunho
devesse remeter para uma conceção prodigiosa articulada com a iminente vinda do
Messias. E essa alegria, não somente humana, mas radicada na força luminosa e esfuziante do Espírito, torna-se difusiva e contagiante, como se pode aferir
factualmente. Quando chegou, Maria entrou em casa de Zacarias e saudou a
prima. E aconteceu que, quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a
criança saltou no seu seio, e Isabel ficou repleta do Espírito Santo (Lc 1,40). Toda a parentela se
transformou pela presença de Jesus e de Maria. A saudação da Virgem induziu, com
toda a poderosa eficácia, a que Isabel ficasse cumulada do Espírito Santo, que
dela fez botar palavras de fé proféticas e inspiradoras de oração impregnada de
alegria feliz:
Bendita
és tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre. E donde me é dado que
venha visitar-me a mãe do meu Senhor? Pois, ao chegar aos meus ouvidos a voz da
tua saudação, a criancinha saltou de alegria no meu seio. Bem-aventurada Aquela
que acreditou, pois hão de cumprir-se as coisas que da parte do Senhor lhe
foram ditas. (Lc 1, 42-45).
Temos nesta passagem
bíblica o elogio da fé (bem-aventurada Aquela
que acreditou), o elogio da fidelidade divina (hão de cumprir-se as coisas que da parte do Senhor lhe foram ditas),
a perceção humilde do mistério (donde me
é dado que venha visitar-me a mãe do meu Senhor) e um momento de oração de jubiloso
louvor (Bendita és tu entre as mulheres e
bendito o fruto do teu ventre) assumido pela tradição da Igreja orante, o povo
de filhos piedoso (proles pia). É
assim o fruto da solidariedade praticada de olhos postos em Deus e no seu
mistério e, ao mesmo tempo, orientada pelo afazer do próximo.
Para lá da tarefa
que o cristão tem de assumir de ser causa de alegria para os outros, é
necessário que, a exemplo de Maria, saiba ser portador de Cristo ao pé de quem
mais precisa. O cristão tem de ser cristóforo
ou Cristóvão, não um simples porta-bandeira,
mas um porta-Cristo. E neste transporte cristónomo, que não pode ser encarado
como um frete servil ou mercantil, tem de haver a indução a cada vez mais e
melhor fé, intrépida profecia (falar por
Deus) e ardente oração (o boca a boca
com Deus) e o firme compromisso de solidez solidária com todos, mas
privilegiando os que mais sofrem.
E o rasgo orante de
Isabel mostra a união de vida entre Cristo e Maria (bendita és Tu e bendito é o fruto do teu ventre) e, por
conseguinte, de objeto da atenção orante dos crentes. Isabel,
repleta do Espírito de Sabedoria e Ciência, da Piedade e Conselho, do
Entendimento e Fortaleza e do Temor de Deus (Sacrum Septenarium) não se limita a chamar bendita a
Maria, mas relaciona o seu louvor com o fruto do ventre de Maria, que é bendito pelos
séculos dos séculos. Maria e Jesus estarão sempre intimamente unidos. Os
momentos mais prodigiosos da vida de Jesus transcorrerão – como neste caso – em
total união com sua Mãe, a medianeira de todas as graças: “Esta união entre Mãe
e Filho na obra da Salvação – diz o Concílio Vaticano II – manifesta-se desde o
tempo da conceição virginal de Cristo até a sua morte” (LG 57-58).
Outra lição
da visita de Maria parece ser a do estilo habitual da ação divina junto das
criaturas humanas: regra geral, Deus não intervém diretamente, mas mediante os
seus agentes, suas outras criaturas. É através do anjo ou através de Maria e de
Isabel que Deus oferece a instrução da profecia e da fé, da oração no Espírito
e da leda solidariedade para com o próximo. O nosso Deus é um Deus escondido
ou misterioso (Is 45,15), que prefere agir mediante as causas segundas.
Manter a fé
como dom de Deus – por que o homem anseia, que o homem assume e a que o homem
adere – e robustecê-la no quotidiano não é tarefa isenta de risco. Tudo parece
tão trivial ou tão necessário, tão dependente do nosso esforço ou de lei
meramente natural, que somos tentados a esquecer que é Deus quem inculca em nós
toda bem-querença e boa ação (cf Fl 2,13): Sem mim, nada podeis fazer (Jo
15,5) – diz taxativamente o Mestre. Seríamos desatentos e mesmo insensatos –
quiçá infelizes – se não descobrirmos a mão amorosa de Deus, o seu desígnio
insondável tanto nos eventos extraordinários como no devir sereno das horas de
trabalho ou de lazer, da vida familiar ou da vida social. Para o crente, tudo é obra da Providência em articulação
com o necessário esforço humano.
Profecia e
fé, oração e proximidade de Deus, solidariedade e serviço ao próximo são elementos
fundamentais do episódio da Visitação. No entanto, o pano de fundo é o da
alegria messiânica que se exprime em ato de ação de graças e bênção, em cântico
da misericórdia divina: o evento da Visitação de Maria é um mistério de jubiloso
e paradigmático encontro. João Batista exulta de alegria no seio de Isabel;
Isabel, cheia de alegria pelo inesperado dom da maternidade, irrompe em
aclamação ao Senhor; e, enfim, Maria eleva aos céus o Magnificat, “o
cântico dos tempos messiânicos, onde confluem a alegria do antigo e do novo
Israel” (Paulo VI, Ex. Ap. Marialis Cultus). O Magnificat
é a epifania do segredo íntimo da Virgem que lhe fora confiado pelo anjo; é o
espelho da alma de Maria, uma alma cheia de magnanimidade, a visibilidade do
olhar materno de Deus, a concretização da paternidade divina no tempo, na era
da nova criação que se avizinha. “A minha alma glorifica o Senhor e o meu
espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador” (Lc 1,46-47). Com este excelso hino de alegria humilde, a
Virgem deixou-nos uma previsão de futuro atinente a si própria, que nós vemos
realizada ao longo do tempo do Messias: “Eis que doravante me proclamarão
ditosa todas as gerações, porque fez em mim grandes coisas aquele que é
Todo-Poderoso” (Lc 1,48).
“Desde remotíssimos tempos – recorda o Vaticano II – a Bem-aventurada Virgem é
venerada sob o título de Mãe de Deus, sob cuja proteção os fiéis se refugiam
súplices em todos os seus perigos e necessidades. Por isso, sobretudo a partir
do Concílio de Éfeso, o culto do povo de Deus a Maria cresceu maravilhosamente
em veneração e amor, em invocações e desejos de imitação, de acordo com as suas
próprias palavras proféticas. Eis que me chamarão bem-aventurada…”
(LG, 66).
Santa Maria,
mãe de Deus, não se distinguiu por nenhum feito espetacular; o Evangelho não dá
a conhecer nenhum feito miraculoso que Ela tenha realizado durante a sua estada
palestiniana na terra; são pouquíssimas as palavras que d’Ela nos conservou o
texto inspirado. A sua vida aos olhos dos familiares e circunstantes foi a da
mulher normal, Maria de Nazaré, que devia levar por diante os normais encargos familiares.
Não obstante, a profecia cumpriu-se fielmente. E todos a proclamam ditosa,
porque Ela foi, é e será sempre a santa e pressurosa visitadora, como o
explanou D. Fouad Twal, Patriarca Latino de
Jerusalém, em Fátima a 12 e 13 de maio de 2014.
Em ambiente de
vigília noturna, ensinou sobre o perfil missionário da Virgem e Senhora da
Mensagem, que transcrevo, com alterações acomodatícias:
Ela
nasceu na Palestina – em certo sentido é também nossa paroquiana – e, desde
ali, começou a sua missão ao longo do tempo e do espaço, bendizendo a história
humana com a sua presença benéfica. Todos os santuários marianos do mundo
possuem algo desta presença de Maria, e entre eles se complementam e se
“reclamam mutuamente”: Nazaré recorda-nos o “sim” de Maria: “sim” puríssimo,
incondicional e fecundo; Belém recorda-nos a sua Maternidade divina e virginal;
Jerusalém – santuário do Gólgota e do Sepulcro Vazio – recorda-nos a Virgem das
Dores, mas também a Virgem da Esperança e, finalmente, a Virgem Gozosa da
Ressurreição.
E
assim no mundo inteiro: a Virgem, em La Salette, recorda-nos as lágrimas de
Nossa Senhora e a sua esperança no meio do sofrimento; em Lourdes, a sua
Imaculada Conceição como fonte de graças celestiais; em Guadalupe, a sua
providência amorosa e maternidade universal; em El Pilar, a sua solidez de
rainha e mãe…; e em Fátima, a força do Seu Imaculado Coração, como fonte de
salvação para a Humanidade. […] Desde Nazaré, começou a sua ação evangelizadora,
ação que nunca cessou, ação que continua no tempo e no espaço. Ela vai por todos
os caminhos do mundo, tentando guiar os seus filhos, para que voltem a Deus
Pai, e tentando que aqueles que ainda não conhecem a Deus O conheçam, O amem e
O sigam. (homilia, 12-05).
Mas, ante a multidão de peregrinos,
na solene concelebração de encerramento da peregrinação aniversária o mesmo Patriarca
Latino de Jerusalém pronunciou-se no seguintes termos sobre o multissecular itinerário
pressuroso, solícito e solidário de Maria, aquela que percorre sem preconceitos
os diversos caminhos dos homens:
A Virgem de Fátima nasceu
na Palestina e desde ali iniciou a sua vida itinerante… A partir de Nazaré –
onde começará a ser a Mãe do Verbo Encarnado – “A cheia de Deus”, a cheia de graça,
vai pressurosa a Ain Karim para compartilhar essa graça no seu serviço de
piedade e caridade; encontramo-la logo em Belém – onde o mundo fiel (os
pastores) e o pagão (os reis magos) contemplarão o fruto do seu ventre
virginal; dali, como os milhões de refugiados no Médio Oriente e em África, se
refugiará no Egito, protegendo o Filho das suas entranhas e crescendo no amor
virginal com São José.
Logo, regressa a Nazaré…
acompanha o seu filho a Caná – onde antecipa a Hora do Senhor, pedindo-Lhe um
milagre (a medianeira das graças, a desatadora de todos os nós). Vai com
o Seu Filho a Cafarnaum… E acompanhá-Lo-á na sua Via-Sacra… e na sua Sepultura.
E assim fará com o Corpo
Místico de seu Filho que é a Igreja… Ela esteve presente no Cenáculo até à
vinda do Pentecostes… bastava a sua presença para tranquilizar os discípulos… Ela
nunca esteve parada! Sempre acompanhou e acompanha a vida de seus filhos. Assim,
ao longo da história, apareceu no Pilar e em Guadalupe… assim quis Ela chegar
em pessoa aqui, para santificar este lugar com a sua presença e aparição.
[…]
É Maria Santíssima quem
nos une em Cristo. Ela fortalece o forte laço que existe entre Fátima em Portugal
e Jerusalém na Terra Santa. Vós não podeis deixar de pensar nos lugares
onde Maria Santíssima nasceu, viveu, sofreu e foi elevada ao Céu. […] Muitos são os santuários marianos no
mundo, mas Ela é uma só, e Ela nos ensina a procurar a verdadeira unidade na Fé
em seu Filho e na verdadeira Caridade.
Maria não tem problema
em apresentar-se com vestes diversas e com cores de pele diversas. Ela não tem
medo de nos falar em diferentes idiomas. (homilia, 13-05).
Quem pode,
então, enumerar detalhadamente os louvores, invocações, preces, oferendas,
títulos e santuários em sua honra, as devoções marianas, as suas graças, o seu
testemunho da misericórdia divina? Ao longo dos séculos, proclamam-na bem-aventurada
pessoas de todo o género e condição: intelectuais e gente considerada menos
culta; chefes de estado e de governo, guerreiros e pacifistas, artesãos e técnicos
superiores, cientistas e artistas, religiosos e seculares, sacerdotes e leigos,
jovens e donzelas, pessoas idosas e crianças que começavam a balbuciar... E
todos a sabem saudar particular ou publicamente, singela ou solenemente, individual
ou comunitariamente: Ave, Maria, cheia de graça [...], bendita és Tu entre
as mulheres... Ou: Salve, Rainha, Mãe
de Misericórdia. Todos sabem pedir: Santa
Maria, Mãe de Deus, roga por nós, pecadores!… Ou: Livra-nos de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita!
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