domingo, 15 de junho de 2014

“A esperança, só a merecem os que caminham”

A asserção é atribuída ao filósofo norte-americano Herbert Marcuse. E o bispo do Porto citou-a como uma das pistas de reflexão no 13.º Dia Diocesano da Família celebrado a 15 deste mês de junho no Pavilhão das Travessas, na laboriosa cidade de São João da Madeira.
O povo, na sua sabedoria milenar, sabe dizer que “quem anda sempre alcança” e a parte literal do ex-libris do beirão escritor Aquilino Ribeiro escreve-se com o estribilho “alcança quem não cansa”.
Por seu lado, a literatura bíblica encara a vida do homem sobre a Terra, e consequentemente a do cristão, como a do caminhante ou peregrino, como se pode ver pelo seguinte excerto, transcrito meramente a título de exemplo:
“Caríssimos, exorto-vos como peregrinos e forasteiros que sois, a vos absterdes das paixões carnais, que lutam contra a alma, mantendo exemplar o vosso procedimento no meio dos gentios, para que, ainda naquilo em que eles vos caluniam agora como se fôreis malfeitores, observando melhor as vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da sua visitação.” (1Pe 2,11-12).
No entanto, muitas vezes, esquecendo que a nossa caminhada aqui é de 70 a 80 anos (cf Sl 90,10) e depois, retornaremos à nossa Pátria na eternidade (cf 1Ts 4.17), fazemos de conta que este é o território de nossa definitiva morada e entretemo-nos, esquecidos do futuro, na exploração do outro ou na supina sujeição ao espezinhamento e à escravidão da matéria, quiçá na ditadura do efémero.
Ora, apesar de muitas vezes o caminho ter mais pedras e lama que estrada, todavia, o caminho faz-se caminhando e caminha-se mais à vontade se a caminhada for coesa e solidária. E esta coesão e esta solidariedade de caminhada encontram-se na família, rampa de lançamento para o contrato social (a que a política assente nas economias centradas na idolatria do dinheiro inflige tantos rasgões) e na Igreja, perita em humanidade e companheira assídua dos homens e dos povos. Não é raro, por outro lado, o facto de as vicissitudes da vida levarem a família, ou um dos membros em sua representação, à peregrinação na rota migratória à procura de melhores dias. E a Senhora Peregrina – protótipo, membro e Mãe da Igreja desde os tempos da Palestina do Messias peregrino com os primeiros discípulos e discípulas – acompanha os dramas do homem peregrino nos diversos pontos do orbe em que ele sofra ou tenha a veleidade de cair em tentação.
Ora, Dom António Francisco dos Santos (o Chiquinho, como era tratado afetuosa e familiarmente pelos seus condiscípulos na diocese de origem), mencionando a asserção de Marcuse, referenciada em epígrafe “a esperança, só a merecem os que caminham”, assegurou:
“O ser humano e as famílias cristãs não podem viver sem esperança. Só quem conhece a meta caminha com firmeza, apesar dos obstáculos. Talvez seja essa a mensagem mais importante deste Dia Diocesano da Família.”.
O prelado diocesano alia a caminhada à virtude e à postura de esperança, caraterizadora da ação do homem e, em especial, do cristão, mormente se enquadrado pela família e pela Igreja. Mas a esperança não é cega, passiva ou ensimesmada. Ela implica o conhecimento da meta; e a meta é o céu de Deus, preparado para o homem, desde o princípio do mundo (cf Mt 26,34). Implica o conhecimento do caminho; e o caminho é Cristo (cf Jo 14,6). Implica o conhecimento dos apontadores do caminho. E nos apontadores do caminho contam-se: a grande Tradição, de que emergem as Sagradas Escrituras, que apresenta as Escrituras, as faz ler, proclamar e ouvir, as interpreta e completa “aqui e agora” (2Tm 3,10-16); a Virgem Maria, que mostra Jesus ao mundo (Salve-rainha: “depois deste desterro, nos mostrai Jesus”) e o encaminha para Ele (por Maria a Jesus); e a força anímica e operativa da Igreja, a cargo do Espírito Santo, que inspira, guia, impele (cf Jo 16,12-14; 1Co 12,1-13).
Porém, esperança implica atividade em que se articulam a oração e contemplação com a busca do futuro, a inspiração no centro de irradiação com a caminhada pelo mundo, mesmo que seja de “vale de lágrimas”. Rezar sem esperança será papaguear; esperar sem rezar será vacuidade. Caminhar sem esperança será andar ao sabor do vento; esperar sem caminhar ou sem trabalhar será tentar a Deus.
E a esperança estão serviço do outro: explicar aos outros as razões da nossa esperança (cf 1Pe 3,15); ir por todo o mundo e fazer discípulos (cf Mt 28,19-20; Mc 16,15); fazer com que ninguém sinta necessidade de nada (At 4,34).
Entretanto, não podemos esquecer que o bispo do Porto confia às famílias uma certeza:
Aqueles que acreditam no Evangelho vencem obstáculos e derrubam barreiras, porque falam a linguagem que todos os homens e mulheres compreendem, que é a linguagem do amor, da doação, da proximidade, do perdão, da misericórdia e das bem-aventuranças, ditas e vividas nos espaços e âmbitos das famílias do nosso tempo.
É a certeza de que o amor, gerado ao longo da vida, tudo vence e aproxima as pessoas numa linguagem que todos podem utilizar e entender. É linguagem-ação que tem a sua fonte em Deus Uno e Trino, na unidade de um só Deus e na comunidade das três pessoas e cujo espelho é o homem criado à Sua imagem e semelhança: lucidez de inteligência, firmeza de vontade, concriação do mundo e do ser humano, domínio sobre a terra, capacidade de construir comunidade e de lhe imprimir coesão e solidariedade.
“Tem todo o sentido – proclama o antístite da diocese portuense –, a partir do amor do Pai e do mandato de Cristo, Seu Filho, dado aos seus discípulos e fortalecido pelos dons do Espírito Santo, sabermos que na Igreja de hoje se cumpre com alegria a saudação de Paulo aos Coríntios, hoje proclamada: Sede alegres, trabalhai pela vossa perfeição, animai-vos uns aos outros, tende os mesmos sentimentos, vivei em paz. E o Deus do amor e da paz estará convosco. A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco (2 Co 13,11-13).”.
Ora, se esta caminhada solidária em famílias e em Igreja nos faz “entrar no mistério do amor de Deus, a dialogar com Deus, como fez  Moisés no Sinai e como fez Nicodemos com Jesus”, não deixa de consistir no hoje de 2014 uma séria interpelação às famílias este segmento homilético:
“É ainda ao Coração de Deus que recorro, com particular afeto, ao lembrar as famílias que vivem momentos difíceis, seja pelas ruturas do amor e da fidelidade, seja pelas provações trazidas pela doença, pela falta de trabalho, pelas incertezas e medos diante do futuro”.
Finalmente, este Dia Diocesano da Família fica marcado pelo pregão episcopal, que vale a pena meditar, a partir do dia litúrgico da solenidade da Santíssima Trindade:
“Não procuramos outra voz para as famílias da nossa Diocese senão esta de dizermos a todas as pessoas, homens e mulheres, jovens e crianças, idosos ou doentes, sem ninguém excluir nem a ninguém esquecer que Deus, uno e trino, que neste dia da Santíssima Trindade celebramos, os ama com amor fiel e santo”.

Que a Dom António nunca doa a voz na explicitação profética da legibilidade da doutrina e na sua função de salmista da misericórdia divina, mas também na de testemunha dos dramas da família hodierna e desta sociedade tão martirizada pelos poderes, a quem há de ser restituída a esperança.

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