“Haverá numerosos governantes a lutar pelo poder entre
eles. Não terão caráter. A violência, as mentiras e a imoralidade estarão na
ordem do dia. A piedade e a natureza do bem desvanecer-se-ão lentamente. A
paixão e a luxúria serão a única atração entre os sexos. As mulheres serão
objeto de prazer sexual. A mentira será a linha limite da subsistência. As
pessoas cultas serão ridicularizadas e humilhadas; no mundo a lei do mais rico
será a única lei.”
- Do texto religioso Vishu Purana sobre a era de Kali
No
entanto, a regeneração está disponível, desde que desejada, procurada e aceite.
Atente-se no seguinte poemeto e respetivo comentário.
Nun’Álvares Pereira
Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando,
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.
Mas que espada é que,
erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
Que o Rei Artur te deu.
'Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!
Fernando
Pessoa, in Mensagem
Excalibur é a lendária espada do Rei Artur. Contudo, as lendas
sobre a espada do Rei Artur veiculam duas versões distintas sobre a origem de Excalibur: segundo algumas, esta seria a
espada presa na pedra; segundo outras, a espada foi dada a Artur pela Dama do
Lago.
Análise estilística
O poema distribui-se por três
quadras, com 12 versos, sendo todos de seis sílabas (heroico quebrado) e com o
esquema rimático abab (rima cruzada). São versos agudos o 2.º e o 4.º da
segunda e da terceira estrofes; os outros são graves. As rimas são consoantes.
São ricas as rimas do segundo e quarto versos da primeira e da segunda quadras.
O poeta desenvolve o tema segundo o
esquema de pergunta-resposta, nas duas primeiras quadras, e termina com uma
frase imperativa, na terceira. É um discurso em forma de colóquio, com o uso da
segunda pessoa, com apóstrofes e preces quase em ladainha. Usa a metonímia,
invocando São Portugal em vez de Nun’Álvares, a adjetivação expressiva (negro e
brando), para salientar o poder da espada-luz no azul celeste para nos iluminar
o caminho, e o gerúndio “volteando”, para imprimir um dinamismo ao movimento
singular da espada-luz a dar-lhe a eficácia da espada-bênção ou da
bênção-espada (vd poema D. Afonso Henriques).
Análise ideológica e de contexto
É um poema surge na primeira parte de
“Mensagem” – “Brasão”. O título “Brasão” não foi escolhido por acaso, sendo o
brasão uma representação emblemática que se reveste de símbolos a fim de
identificar famílias, indivíduos, regiões ou povos por seus atos de nobreza e
heroísmo. Neste título, Pessoa procura identificar de onde vem a nobreza de
Portugal. “Brasão” inicia-se com a expressão latina “Bellum sine Belo”, que
significa “guerra sem armas”. É subdividido em cinco pontos: os campos; os castelos;
as quinas; a coroa; e o timbre (um grifo).
Este poema está no quinto ponto, “A
Coroa”.
A coroa é um símbolo de poder e
autoridade dos governantes desde os tempos pré-históricos. Mas também era dada
ou posta a indivíduos que não eram monarcas, caso em que a coroa era símbolo de
grandes feitos heroicos ou conquistas de coragem. Por uma razão de orgulho
rutor e nobreza anómala, Pessoa deu a coroa a Nuno Álvares e não a um rei ou
príncipe.
Neste poema, o poeta refere uma
auréola. A auréola que cerca Nuno Álvares Pereira é, ao mesmo tempo, uma
auréola de santidade (do guerreiro tornado monge) e uma auréola de combate (“é
a espada (…) volteando”). Quer ele dizer que a santidade que Nuno alcançou, foi
à custa dos seus atos de guerreiro, pois é a sua espada que desenha o círculo
diáfano por cima da sua cabeça, destacando-o – o santo – do comum dos homens.
Conhecendo a origem da auréola que
cerca Nuno Álvares Pereira – a espada – na segunda estrofe, Pessoa fala-nos
dessa mesma espada. Diz-nos que a espada “que, erguida / Faz esse halo no céu”
não é uma espada qualquer, não é a espada de um comum cavaleiro, mas “é
Excalibur, a ungida”, a espada do “Rei Artur”.
Pessoa pede a Nuno Alves Pereira (a
quem chama, por antonomásia, S. Portugal), nos dois últimos versos, que erga a
luz da sua espada “para a estrada se ver”, para sabermos que caminho seguir no
futuro.
Concluído este esboço de análise
geral do poema, será agora apresentada uma interpretação de acordo com os
tópicos de leitura que requerem não só uma análise subjacente da obra de
Fernando Pessoa, mas também uma relação poema / imagem, uma comparação entre a
obra Pessoana e a obra Camoniana e o uso de determinados recursos estilísticos.
Na primeira parte da obra, “Brasão”,
Fernando Pessoa faz referência a personagens históricas e míticas, daí a
presença de Nuno Álvares Pereira como líder preparado para a batalha, o
guerreiro perfeito.
Por isso, em Mensagem, Pessoa exalta o valor incomparável de Nuno Álvares
Pereira. O facto de existir uma parte no “Brasão”,
que é “ A Coroa”, destinada apenas ao poema de Nuno Álvares Pereira, enaltece
ainda mais a sua personalidade. Também Camões faz referência, explícita ou
implicitamente, a Nuno Álvares Pereira umas 14 vezes em Os Lusíadas.
Pessoa inicia o poema com uma
interrogação retórica acerca daquilo de que é feito Nuno Álvares Pereira. Os
restantes versos da primeira estrofe são como que respostas à questão inicial.
Nesta estrofe, Fernando Pessoa chega a afirmar que o valor de Nuno Álvares
Pereira é maior que o do rei Artur, já que o primeiro passou de realidade a
mito (foi beatificado e canonizado), este último é apenas um mito que muitos
afirmam ter sido realidade. Para além disso, assim como o Rei Artur foi
predestinado para empunhar a sua Excalibur,
também Nuno Álvares Pereira o foi para empunhar a sua espada, que o guiou, a
ungida, na batalha.
Os dois últimos versos do poema podem
ser vistos como um conselho dado aos portugueses: se querem ser vitoriosos
devem seguir o exemplo de Nuno Álvares Pereira, usando a exclamação final como
um pedido para Nuno Álvares nos indicar o caminho a seguir para o império que
há de vir.
Tudo isto se pode comparar com Os Lusíadas. Na primeira parte, temos o
ideal de guerreiro, por um lado, forte e robusto fisicamente, por outro,
conhecedor da arte e inteligente. Na segunda parte, existe uma semelhança já
que Camões manifesta a importância de Nuno Álvares para Portugal (“mas não vês
quase já desbaratado/ o poder Lusitano, pela ausência/ Do capitão devoto, que,
apertado, / Orando invoca a suma e trina Essência?”).
Quanto à relação da imagem, que mais
usualmente se vê na iconografia condestabrina, com o poema, esta é de autoria
de Luciano Freire que, no fundo, ilustra tudo o que o poema diz.
A imagem, tal como o poema, faz como
que de ponto de referência à espada, que é um dos símbolos da grandeza de Nuno
Álvares, a espada que apenas pode ser usada só por alguns; e os guerreiros
míticos como Rei Artur e Nuno Álvares é que são destinados a usá-la.
Na pintura surge também uma coroa,
coroa esta que, como já foi referido, é símbolo de feitos heroicos e apenas
para pessoas que fazem atos heroicos. E não apenas para monarcas. Ainda é visível
como fundo, uma batalha, que muito possivelmente quer retratar o grande ato de
Nuno Álvares, que veio a sair vitorioso da decisiva batalha de Aljubarrota.
Assim, está aberto aos portugueses o horizonte dos grandes
feitos perante o espectro do estado de exiguidade a que o país chegou.
Saibam-nos os espíritos abnegados interpretar e assumir numa perspetiva
altruísta e ação solidária.
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