terça-feira, 10 de junho de 2014

Em Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, a Palavra a Camões

Luís de Camões apresenta como prémio para o heroísmo dos melhores dos portugueses a “ínsula divina” preparada pela deusa Vénus, amiga dos portugueses, com o trabalho e a disponibilidade das ninfas suas colaboradoras. Nesse cenário paradisíaco – marcado pela abundância das árvores de fruto e pelas árvores e arbustos de adorno, discrição e conforto, refrescado pela limpidez das águas irrigantes e dessedentantes, saciante pela diversidade e caráter suculento das iguarias (do banquete lautamente oferecido a homens, cansados, famintos e sedentos) e ardoroso com os jogos amorosos das ninfas, que no jogo sedutor da fuga e da aproximação – o poeta faz consistir simbolicamente a recompensa oferecida pelos deuses aos esforçados humanos, já que os poderes não os sabem recompensar (vd Os Lusíadas, X,145).
No dealbar do terceiro milénio, ninguém espera por um lugar de delícias como o descrito no canto IX da epopeia, que todos os estudiosos da obra de Camões entendem como simbólico, consentâneo com a estética renascentista. Mas hoje os seres humanos anelam o prémio do conhecimento oferecido a Vasco da Gama pela deusa Tétis no canto X: ciência do homem, ciência do mundo. As mulheres e os homens do “aqui e agora” pretendem a resposta interrogação do poeta no final do canto I:
Onde pode acolher-se um fraco humano, / Onde terá segura a curta vida, / Que não se arme e se indine o Céu sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno? (I,106).
E, se os viventes hodiernos não podem esperar por obterem aquela ilha, por mais que a demandem, já que as ninfas ou se extinguiram ou estão em vias de extinção, têm direito, ao menos, a uma vida de conforto, de sã convivência e de paz – que os tire da condição de bichos da terra tão pequenos e os fortaleça para enfrentarem a indignação de qualquer céu sereno ou as adversidades de “tanta tormenta e tanto dano” (…), “tanta guerra e tanto engano, tanta necessidade aborrecida” (I,106) – e serem tão grandes no mundo (“tamanhos”, vd infra) que se tornem famosos. As suas obras os precederão (Ap 14,13).
Para tanto, há que seguir as condições definidas pelo vate:
(…)
Por isso, ó vós que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo,
Que o ânimo, de livre, faz escravo.

E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente:
Milhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.

Ou dai na paz as leis iguais, constantes,
Que aos grandes não deem o dos pequenos,
Ou vos vesti nas armas rutilantes,
Contra a lei dos imigos Sarracenos:
Fareis os Reinos grandes e possantes,
E todos tereis mais e nenhum menos:
Possuireis riquezas merecidas,
Com as honras que ilustram tanto as vidas.


E fareis claro o Rei que tanto amais,
Agora c' os conselhos bem cuidados,
Agora co’ as espadas, que imortais
Vos farão, como os vossos já passados.
Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos
E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.

(Os Lusíadas IX,92-95)
Ou seja: é fundamentalmente necessário despertar do sono do ócio, da situação de preguiça – a maior causa de escravidão do homem, uma vez que quem não se aplica, não estuda ou não trabalha fica dependente do que outrem lhe dê, e sujeita-se, na hora da verdade, a caprichos alheios.
Depois, é preciso frear duramente a “cobiça” e a “ambição”, que são frutos da intemperança e da inveja e constituem tentações em que muitos caem e recaem um pouco a esmo. E é de notar que estes denunciados vícios conduzem quem quer que tenha possibilidades à assunção teórico-prática da tirania, que o épico, agora satírico-crítico, denomina de “torpe e escuro vício”. Por outro lado, classifica a tirania de “infame e urgente”.
Sabendo todos como a tirania cria infâmia de desumanidade em quem a pratica, também sabemos como ela torna injustamente infames, por vilipendiados, os que são vítimas suas, sem face, sem alma, sem escrúpulos. Torna-se “urgente”, porque o tirano não dispõe de um mínimo de paciência para esperar pela consecução dos seus intentos ou pelo castigo aos “réprobos”, para suportar as contestações ou os motins. O tirano urge a repressão e aposta no figurino da unicidade de pensamento, da excelência da anuência e da uniformidade de ação. Ademais, cria a figura do intermediário que assume, sob a capa do cumprimento de ordens superiores, as malhas ditatoriais, a falta de escrúpulo, a postura da adulação, a desumanidade do trato, o policiamento intempestivo, a doutrina da inevitabilidade.  
Na certeza de que não há dinheiro nem honras que satisfaçam a cobiça, ambição e tirania, o vate julga – e bem – que é melhor merecer o dinheiro e as honras que possui-los sem os merecer. É a cultura do mérito que o épico no propõe em detrimento da cultura do ter.
Poderíamos ficar por aqui. No entanto, Camões parece vislumbrar a degradação do século presente, quando vitupera a falta de equidade legislativa ou a instabilidade jurídica: “dai na paz as leis iguais” (a proposta da equidade: o governante deve tratar igual o que é igual e desigual, pela positiva o que é diferente) – dita ele aos decisores – e acrescenta a exigência de “constantes”, de modo que a legislação não ande ao sabor do vento ou na resposta obtusa aos interesses privados. Lá vem, a esse respeito, a obrigação de não dar ao grande o que é do pequeno (o combate à exploração, à iniquidade). O pequeno também tem direitos: a ser, a estar, a ter.
Por outro lado, é preciso saber identificar o inimigo (hoje não será já o sarraceno ou a sua lei, mas outros como a mediocridade, o compadrio, a corrupção e a falta de ética pessoal, profissional, social e política) e utilizar as armas adequadas (“rutilantes”) e não ficar a esgrimir contra o vento. Só assim se engrandece um país e todos, na solidariedade construtiva e na coesão nacional, possuirão as merecidas riquezas e viverão uma vida genuinamente honrada.
Por fim, é de superior interesse substituir a adulação aos governantes (o rei) pelos “conselhos bem cuidados” e os brinquedos por “espadas” de eficácia. E, na certeza de que a ninguém se exige o impossível, é urgente recordar a todos que “quem quis sempre pôde”, ou, como diz o aforismo, “querer é poder”. E “quem quer sempre alcança” ou “alcança quem não cansa”.

Grande Camões, nosso Luís, volta, que não há quem cante como urge!

Sem comentários:

Enviar um comentário