Luís de Camões apresenta como prémio
para o heroísmo dos melhores dos portugueses a “ínsula divina” preparada pela
deusa Vénus, amiga dos portugueses, com o trabalho e a disponibilidade das
ninfas suas colaboradoras. Nesse cenário paradisíaco – marcado pela abundância
das árvores de fruto e pelas árvores e arbustos de adorno, discrição e conforto,
refrescado pela limpidez das águas irrigantes e dessedentantes, saciante pela
diversidade e caráter suculento das iguarias (do banquete lautamente oferecido
a homens, cansados, famintos e sedentos) e ardoroso com os jogos amorosos das
ninfas, que no jogo sedutor da fuga e da aproximação – o poeta faz consistir simbolicamente
a recompensa oferecida pelos deuses aos esforçados humanos, já que os poderes
não os sabem recompensar (vd
Os Lusíadas, X,145).
No dealbar do terceiro milénio,
ninguém espera por um lugar de delícias como o descrito no canto IX da epopeia,
que todos os estudiosos da obra de Camões entendem como simbólico, consentâneo com
a estética renascentista. Mas hoje os seres humanos anelam o prémio do conhecimento
oferecido a Vasco da Gama pela deusa Tétis no canto X: ciência do homem,
ciência do mundo. As mulheres e os homens do “aqui e agora” pretendem a resposta
interrogação do poeta no final do canto I:
Onde pode acolher-se um fraco humano, / Onde terá segura a curta
vida, / Que não se arme e se indine o Céu sereno /
Contra um bicho da terra tão pequeno? (I,106).
E, se os viventes hodiernos não podem
esperar por obterem aquela ilha, por mais que a demandem, já que as ninfas ou se
extinguiram ou estão em vias de extinção, têm direito, ao menos, a uma vida de
conforto, de sã convivência e de paz – que os tire da condição de bichos da
terra tão pequenos e os fortaleça para enfrentarem a indignação de qualquer céu
sereno ou as adversidades de “tanta tormenta e tanto dano” (…), “tanta guerra e
tanto engano, tanta necessidade aborrecida” (I,106) – e serem tão grandes no mundo (“tamanhos”, vd infra) que se tornem famosos. As suas
obras os precederão (Ap
14,13).
Para tanto, há que seguir as
condições definidas pelo vate:
(…)
Por isso, ó vós que as famas
estimais,
Se quiserdes no mundo ser
tamanhos,
Despertai já do sono do ócio
ignavo,
Que o ânimo, de livre, faz
escravo.
E ponde na cobiça um freio
duro,
E na ambição também, que
indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe
e escuro
Vício da tirania infame e
urgente;
Porque essas honras vãs,
esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à
gente:
Milhor é merecê-los sem os
ter,
Que possuí-los sem os
merecer.
Ou dai na paz as leis
iguais, constantes,
Que aos grandes não deem o
dos pequenos,
Ou vos vesti nas armas
rutilantes,
Contra a lei dos imigos
Sarracenos:
Fareis os Reinos grandes e
possantes,
E todos tereis mais e nenhum
menos:
Possuireis riquezas
merecidas,
Com as honras que ilustram tanto
as vidas.
|
E fareis claro o Rei que
tanto amais,
Agora c' os conselhos bem
cuidados,
Agora co’ as espadas, que
imortais
Vos farão, como os vossos já
passados.
Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde;
e numerados
Sereis entre os Heróis
esclarecidos
E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.
(Os Lusíadas IX,92-95)
|
Ou seja: é fundamentalmente
necessário despertar do sono do ócio, da situação de preguiça – a maior causa
de escravidão do homem, uma vez que quem não se aplica, não estuda ou não
trabalha fica dependente do que outrem lhe dê, e sujeita-se, na hora da verdade,
a caprichos alheios.
Depois, é preciso frear duramente a “cobiça”
e a “ambição”, que são frutos da intemperança e da inveja e constituem
tentações em que muitos caem e recaem um pouco a esmo. E é de notar que estes denunciados
vícios conduzem quem quer que tenha possibilidades à assunção teórico-prática
da tirania, que o épico, agora satírico-crítico, denomina de “torpe e escuro vício”.
Por outro lado, classifica a tirania de “infame e urgente”.
Sabendo todos como a tirania cria
infâmia de desumanidade em quem a pratica, também sabemos como ela torna injustamente
infames, por vilipendiados, os que são vítimas suas, sem face, sem alma, sem
escrúpulos. Torna-se “urgente”, porque o tirano não dispõe de um mínimo de paciência
para esperar pela consecução dos seus intentos ou pelo castigo aos “réprobos”,
para suportar as contestações ou os motins. O tirano urge a repressão e aposta
no figurino da unicidade de pensamento, da excelência da anuência e da uniformidade
de ação. Ademais, cria a figura do intermediário que assume, sob a capa do cumprimento
de ordens superiores, as malhas ditatoriais, a falta de escrúpulo, a postura da
adulação, a desumanidade do trato, o policiamento intempestivo, a doutrina da inevitabilidade.
Na certeza de que não há dinheiro nem
honras que satisfaçam a cobiça, ambição e tirania, o vate julga – e bem – que é
melhor merecer o dinheiro e as honras que possui-los sem os merecer. É a cultura
do mérito que o épico no propõe em detrimento da cultura do ter.
Poderíamos ficar por aqui. No entanto,
Camões parece vislumbrar a degradação do século presente, quando vitupera a
falta de equidade legislativa ou a instabilidade jurídica: “dai na paz as leis
iguais” (a proposta da equidade: o governante deve tratar igual o que é igual e
desigual, pela positiva o que é diferente) – dita ele aos decisores – e acrescenta
a exigência de “constantes”, de modo que a legislação não ande ao sabor do
vento ou na resposta obtusa aos interesses privados. Lá vem, a esse respeito, a
obrigação de não dar ao grande o que é do pequeno (o combate à exploração, à
iniquidade). O pequeno também tem direitos: a ser, a estar, a ter.
Por outro lado, é preciso saber
identificar o inimigo (hoje não será já o sarraceno ou a sua lei, mas outros
como a mediocridade, o compadrio, a corrupção e a falta de ética pessoal,
profissional, social e política) e utilizar as armas adequadas (“rutilantes”) e
não ficar a esgrimir contra o vento. Só assim se engrandece um país e todos, na
solidariedade construtiva e na coesão nacional, possuirão as merecidas riquezas
e viverão uma vida genuinamente honrada.
Por fim, é de superior interesse
substituir a adulação aos governantes (o rei) pelos “conselhos bem cuidados” e
os brinquedos por “espadas” de eficácia. E, na certeza de que a ninguém se
exige o impossível, é urgente recordar a todos que “quem quis sempre pôde”, ou,
como diz o aforismo, “querer é poder”. E “quem quer sempre alcança” ou “alcança
quem não cansa”.
Grande Camões, nosso Luís, volta, que
não há quem cante como urge!
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