Como se pode ler no JN on line, de 17 de junho, inserida no “Porto de Encontro”, ciclo de conversas
com escritores que a Porto Editora vem promovendo, haverá no próximo dia 25 de
junho pelas 21 horas e 30 minutos, na Casa da Música, na cidade do Porto, uma
sessão de homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen. O evento enquadra-se
nas comemorações do décimo aniversário da morte da autora e poeta (Sophia
preferia a designação de poeta à de poetisa), que ocorrerá a 2 de julho –
data em que serão festivamente trasladados os seus restos mortais para o
Panteão Nacional.
O referido tributo materializa-se com uma conversa em que participarão Maria Andresen, Miguel
Sousa Tavares, Teresa Andresen, Carlos Mendes de Sousa, Rui Moreira e Luís
Miguel Cintra. Em articulação com o aludido colóquio, estão previstas atuações
artísticas diversas, designadamente exibição do Balleteatro Escola Profissional,
leitura de poemas por Luís Miguel Cintra, Luísa Cruz, Dora Rodrigues e João
Paulo Sousa, e interpretação ao piano de alguns dos compositores favoritos de
Sophia, no encerramento da sessão, por António Victorino de Almeida.
A edição deste notável
evento do “Porto de Encontro” dedicada
a Sophia marca o final da terceira temporada deste ciclo. Desde novembro de
2011 foram já destacadas obras de quase 30 autores, entre os quais Mário de
Carvalho, Valter Hugo Mãe, Manuel António Pina, Gonçalo M. Tavares, Miguel
Miranda e Dulce Maria.
***
Sophia de Mello Breyner Andresen, a
primeira mulher portuguesa a receber o mais importante galardão literário da
Língua Portuguesa, o Prémio Camões, em 1999, nasceu na cidade do Porto, a
invicta, a 6 de novembro de 1919, e faleceu na cidade de Lisboa, a capital, a 2
de julho de 2004. Uma das mais importantes poetisas portuguesas do século XX e
que transpôs a fronteira para o século XXI, a Sophia, de origem dinamarquesa
pelo lado paterno, era filha de João Henrique Andresen e de Maria Amélia de Mello
Breyner.
Jan Heinrich Andresen, seu
bisavô, desembarcado num determinado dia no Porto, nunca mais abandonou a região e o filho
João Henrique (avô da escritora) comprou, em 1895, a Quinta do Campo Alegre, transformada
mais tarde no “Jardim Botânico do Porto”.
Por seu turno, a mãe, Maria Amélia de Mello Breyner, era filha do conde de
Mafra, médico e amigo do rei Dom Carlos,
e neta do conde Henrique de Burnay, um dos homens mais ricos da época.
Nada e criada na velha
aristocracia, foi educada no quadro dos valores tradicionais da moral cristã e
veio, por consequência, a ser dirigente de movimentos universitários católicos
quando frequentava Filologia Clássica na
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no lapso de tempo de 1936 a
1939, curso que não chegou a concluir. Foi colaboradora da revista Cadernos de Poesia, onde travou
conhecimento e construiu amizade com autores influentes e reconhecidos, como: Ruy Cinatti e Jorge de Sena. Com o tempo tornou-se uma das figuras
mais representativas do grupo sociopolítico de tendência política liberal,
denunciando o regime salazarista e
os seus sequazes, embora do lado do apoio ao movimento monárquico. Neste
contexto de contestação ao regime monolítico e opressor do Estado Novo, a sua “Cantata da Paz” ganhou foros de
cidadania e identificava, qual lema de atuação, o grupo dos catódicos progressistas.
E muitos em muitos lugares entoaram e reentoaram o estribilho “Vemos, Ouvimos e
Lemos. Não podemos ignorar!”
Em 1946, casou com o
jornalista, advogado e político Francisco Sousa Tavares, que chegou a ser
Ministro da Qualidade de Vida, e foi mãe
de cinco filhos: uma professora no âmbito das Letras, um jornalista e escritor em
ascensão, um pintor e ceramista e uma terapeuta ocupacional (que ficou com o
nome da mãe). Terão sido estes membros da sua considerável prole quem a levou a
escrever contos para a infância e para a adolescência.
Marcou a sua vida a
viva memória, sobretudo de índole visual, das casas e seus equipamentos, que guarda
desde a infância e juventude e que tenta presentificar na vida e na obra.
Para lá da literatura
infanto-juvenil, a que já se fez referência, Sophia Andresen, que foi deputada à Assembleia Constituinte, distingue-se pela poesia, a
que ela atribui o múnus de valor transformador fundamental e a que se habituou
logo em criança quando a sua ama Laura lhe ensinou “A Nau Catrineta”. A sua
produção corresponde a ciclos específicos, com a culminação da atividade da
escrita durante a noite, porque, segundo confessa, precisa “daquela
concentração especial que se vai criando pela noite fora.” (cf Entrevista a Eduardo do Prado Coelho, in ICALP REVISTA, n.º
6, 1986, 60-62).
Sublinha a vivência noturna em vários poemas como: “Noite”, “O luar”, “O jardim
e a noite”, “Noite de Abril”, “Ó noite”… Para ela, a poesia acontece, não se encomenda.
Chega a afirmar que pensava que “os poemas não eram escritos por ninguém, que
existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento do natural,
que estavam suspensos imanentes (…). É difícil descrever o fazer de um poema.
Há sempre uma parte que não consigo distinguir, uma parte que se passa na zona
onde eu não vejo.” (Sophia de Mello Breyner, in rev. Crítica, 1972).
***
Elencam-se, a seguir, alguns dos tópicos mais
relevantes da sua produção literária, que não esgotam, de modo algum, o que
poderia dizer-se da poetisa escritora.
Constituem-se como espaço virtual
de referência para a autora a infância e a juventude em belos poemas, como: “O jardim e a casa” e “Casa
Branca”, em Poesia, 1944; e “Casa”, em Geografia, 1967.
Também a sua obra literária fica profundamente marcada
pelo assíduo contacto com a natureza. É a natureza o cenário de
liberdade, beleza, perfeição e mistério, largamente referenciado na sua obra,
quer pelas alusões à terra (árvores, pássaros, luar…), quer pelas referências
ao mar (praia, conchas, ondas…). Não há de ser estranho o facto da sua comunhão
com o mar e os pinheiros de então na praia da Granja, onde o pai alocou uma
casa de férias e veraneio. Assim,
no quadro da natureza, o mar é assumido como um dos
conceitos-chave na criação literária de Sophia: “Desde a orla do mar/ Onde tudo
começou intacto no primeiro dia de mim” (SMB Andersen, in “Dual”). A força
inspiradora do mar – com a sua beleza, a sua serenidade, os seus mitos e,
ainda, como símbolo da dinâmica da vida – emerge nitidamente em poemas, como: “Homens
à beira-mar” ou “Mulheres à beira-mar”; “Mar” em Poesia, 1944; “Inicial”
em Dual, 1972; “Praia” em No Tempo dividido; e “Açores”
em O Nome das Coisas, 1977.
Um outro elemento estruturante da literatura
andresiana é a cidade, que se
espraia à vontade em peças literárias, como: “Há Cidades Acesas”, em Poesia,
1944; “Cidade” em Livro Sexto, 1962; e “Fúrias”, em Ilhas,
1989. A cidade, de que a poetisa tem funda alargada experiência, apresenta-se aqui como
um espaço negativo, conotado com o mundo frio, artificial, hostil e
desumanizado, ao invés do espaço idílico, edénico e seguro da natureza.
Não pode, no entanto, ser olvidada a componente clássica da obra de Sophia. Uma notável
admiradora do classicismo no século XX não poderia furtar-se à sua influência e deixar de lhe prestar o tributo
devido. Assim, nos seus poemas, aparecem recorrentemente
palavras grafadas à antiga, como Eurydice, Delphos, Amphora (a modo de quem não
se submete à ortografia de 1911 nem à de 1945); e são temas abordados a arte e
tradição próprias da civilização grega. Vejam-se, a este respeito, espécimes,
como: “Soneto de Eurydice”, em No Tempo Dividido, 1954; “Ressurgiremos”, em
Livro Sexto, 1962; “Crepúsculo dos Deuses”, em Geografia, 1967; “Os Gregos”, em Dual,
1972; e “O Rei de Ítaca” e “Exílio”, em O Nome das Coisas, 1977.
Porém, o tópico eminentemente distintivo da produção
de Sophia é o tempo: o dividido e o absoluto, em flagrante
contraste e até oposição. O primeiro é tempo da solidão, medo e mentira, ao
passo que o tempo absoluto é eterno – unindo a vida, é o tempo dos valores éticos
e morais. Vejam-se, a título de exemplo, os poemas: “O Tempo Dividido”, em
No Tempo Dividido, 1954; e “Este é o Tempo”, em Mar Novo,
1958. De acordo com Eduardo Prado Coelho (cf “Sophia, a Lírica e a
Lógica” in Colóquio, n.º 57, 1981), “o tempo dividido é o tempo do exílio da casa, associado com a
cidade, porque a cidade é também feita pelo torcer de tempo, pela degradação”.
+++
De modo geral, o universo temático da escritora, que é
muito vasto, pode ser condensado nos seguintes itens: a tomada de consciência
do tempo em que vivemos; a busca da justiça, do equilíbrio, da harmonia e
a exigência do moral; a memória da infância e da juventude; um idealismo e
individualismo de nível psicológico; o tema da casa; o amor; a natureza e, em
especial o mar, como espaço referencial e eufórico para qualquer ser
humano; a vida, em oposição à morte; os valores da antiguidade clássica, designadamente
o naturalismo helénico (o culto da natureza, o nu humano…), que devem inspirar
as atitudes do presente e do futuro; o humanismo cristão, com muito do seu altruísmo
e filantropia; a separação; a crença em valores messiânicos, incluindo o sebastianismo
à maneira de Vieira e de Pessoa; e, sobretudo o poeta como pastor do absoluto e
a poesia como fator e fautor de transformação da sociedade.
A temática elencada é bem servida por um estilo e uma linguagem
em que se distinguem como principais marcas: o valor sacral da palavra, a
expressão precisa e vigorosa, o apelo constante ao visualismo clarificador, a
riqueza dos símbolos, a audácia das alegorias, o calor das sinestesias e
o ritmo evocador de uma dimensão celebrativa e ritual. É clara a relação profunda
da palavra com a ideia e com o sentimento, bem como com a realidade das coisas,
mesmo quando lhe atribui caráter simbólico. É nítida a sintonia luminosa entre
o mundo interior do intelecto e o mundo exterior da realidade e da palavra
proferida ou confiada ao papel, qual secretário de confidências ou porta-voz de
mensagens a propalar Urbi et Orbi, em devido tempo.
Como coroa dos prémios e
condecorações com que foi galardoada em vida, agora, a 2 de julho próximo, o seu
corpo, que jaz no Cemitério de Carnide, irá para o Panteão Nacional, por
decisão unânime da Assembleia da República de homenagear a poetisa com honras
de Panteão.
Sem comentários:
Enviar um comentário