Denuncia-se recorrentemente a
escalada e o avassalador alastramento da ditadura do poder financeiro a
condicionar das formas mais diversas, abertas ou disfarçadas, o devir dos
povos. Subordinando aos interesses da ambição avara de uns poucos toda a marcha
da civilização e obnubilando a realização cultural, cria e mantém sob seus pés
inúmeros milhões de descamisados – situação que um número razoável de bem
instalados acomodadamente sustenta e justifica com a lógica da inevitabilidade,
só contrariada por um generoso punhado de voluntários que teimam, por aqui e por
ali, inverter aquela lógica desumana e transformar a realidade segundo o
coração de Deus.
Para combater a miséria e erradicar a
pobreza objetiva, que matam tantos (“esta economia que mata”), uns poucos
selecionam e abraçam a pobreza como virtude interior e como atitude de
disponibilidade da pessoa e haveres em prol de quem mais precisa de pão,
cuidado e solidariedade. A dar a cara por este exército de nem sempre
compreendidos disponíveis pelo Reino de Deus – voluntários e voluntárias nas
lamas e poeiras do mundo ou a partir das casas de clausura – encontra-se o Papa
Francisco, que, mesmo a partir das imediações do empório vaticano, quer fazer
da Igreja a “casa das bem-aventuranças”, o real património dos pobres e o grupo
dos discípulos em saída para as periferias existenciais, onde a Igreja de Jesus
Cristo terá de ser também o hospital de campanha junto da humanidade ferida.
É a sequência do mandato evangélico
“Ide e fazei discípulos em todas as nações” (Mt 28,19-20). Mas não se pode
pregar a estômagos vazios. Ele próprio, o Mestre, “andava por todas as cidades
e aldeias, a ensinar nas sinagogas, a pregar o Evangelho do Reino e a curar
todas as doenças e enfermidades. E teve pena da multidão, pois andavam
maltratados e abatidos, eram como ovelhas sem pastor” (Mt 9,35-36). Mas avisou
que “ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6,24) – a Deus e ao dinheiro.
Quando os jornalistas sugeriram ao
Papa Francisco, no voo de regresso da Terra Santa, um comentário aos alegados
desmandos do Banco do Vaticano ou dos gastos ditos perdulários de prelados e
empresários, mesmo às barbas da Santa Sé, obtiveram como resposta o argumento
da tentação que espreita a todos e também aos membros da Igreja, a qual precisa
de quotidianamente se reformar e converter nas pessoas e nas estruturas. A
eminentíssima reforma de que, segundo Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, o
venerando, e agora beato, arcebispo de Braga, todos precisam, mesmo os
eminentíssimos cardeais, afinal não é obra que se confie exclusivamente aos
grandes momentos, como os concílios e anos jubilares, ou à irrupção dos grandes
movimentos apostólicos, como o franciscano, o dominicano ou o jesuítico, mas terá
de constituir escopo, preocupação e tarefa de cada dia. É Paulo quem afirma que,
não como título de glória mas, como dever, é necessário partir e evangelizar (“Ai
de mim, se não pregar o evangelho”, 1Co
9,16), em sintonia com as palavras do Mestre, “se
não fizerdes penitência, todos perecereis” (Lc 13,3) e, por conseguinte,
recomenda com caráter bem assertivo: “Como embaixadores que somos de Cristo,
que é Ele que exorta por nosso intermédio, nós vos exortamos, reconciliai-vos
com Deus” (2Co 5,20).
***
Talvez, num pano de fundo de
austeridade que perpassa pelos países periféricos da Europa, em que alguns (poucos)
vivem como nababos à sombra e à custa da crise, por alguns criada, não seja
descabido recordar o discurso do nosso Épico sobre o poder do “vil interesse e sede
immiga do dinheiro”, dirigido a quem
tenha a capacidade (curiosidade, juízo
curioso) de discernir o bem e o mal. Veja-se como Luís de Camões (“o meu
Luís”, como se lhe referia Telmo Pais em Frei
Luís de Sousa, de Garrett) sugere o poder que o vil metal exerce sobre o
rico e sobre o pobre – o “dinheiro que a tudo nos obriga”:
96
(…)
Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assi
como no pobre,
Pode o vil interesse e sede immiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.
97
A Polidoro mata o Rei Treício,
Só por ficar senhor do grão tesouro;
Entra, pelo fortíssimo edifício,
Com a filha de Acriso a chuva d'ouro;
Pode tanto em Tarpeia avaro vício
Que, a troco do metal luzente e louro,
Entrega aos inimigos a alta torre,
Do qual quási afogada em pago morre.
98
Este rende munidas fortalezas;
Faz trédoros
e falsos os amigos;
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências.
|
99
Este interpreta mais que sutilmente
Os textos; este faz e desfaz leis;
Este causa os perjúrios entre a gente
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude!
Luís de Camões, Os
Lusíadas VIII, (96-99)
|
O trecho transcrito constitui uma
séria reflexão de alcance humanista e antropagógico sobre o poder negativo e
ilimitado do dinheiro. É um poder negativo, tanto assim que nenhum dos versos
aponta uma única coisa relacionável com a bondade; e é um poder ilimitado, já
que atinge todos os aspetos e setores da vida. As estrofes postas à
consideração de todos demonstram-no com a enumeração de situações, factos e
personalidades, secundada pela anáfora com base no referente “dinheiro”
representado discursivamente pelo demonstrativo “este”, no desenvolvimento do
segmento “que a tudo nos obriga”. O emprego da primeira pessoa “nós”, ao
incluir na crítica o sujeito da enunciação, através da figura da enalaghê personas, alarga ou amplia o
universo dos destinatários do discurso satírico, colocando em evidência o facto
de ninguém, nem mesmo aquele que reflete sobre o problema, escapar ao poder do
dinheiro. Mas o mencionado segmento vem na linha do anterior expresso em
antítese “quanto no rico, assim como no pobre”. No rico, o perfume do dinheiro
desencadeia a cobiça, a ambição e a ganância do “lucro pelo lucro”, à custa de
tudo e de todos, com a subsequente atitude de avareza, fonte de exploração e
espezinhamento. Já no pobre, cria a sede de compensação da miséria, a cobiça e
a inveja ou o desejo de desforra se ele vier a estar na condição do rico –
contra o que nos adverte a orientação cautelar da máxima da sabedoria popular
do “não sirvas a que serviu, não peças a quem pediu, não devas a quem deveu”.
No entanto, o poeta épico, ora
tornado poeta satírico humanista, não se fica no enunciado genérico; ele
especifica, através da aludida enumeração anafórica, os efeitos perversos do
vil metal na Mitologia e na História (est. 97) e nas pessoas e instituições em
qualquer tempo e lugar (est. 98-99).
Assim, em primeiro lugar, no quadro
da Mitologia e da História, temos os seguintes exemplos, em que a moção do
dinheiro provoca o inêxito fatal de determinadas ações cujo sucesso, à partida,
estaria garantido:
– Príamo, rei de Troia, quando a
cidade estava prestes a cair no domínio dos Gregos, enviou o seu filho Príamo
com ouro ao encontro do rei de Trácia, o qual, entontecido pelo perfume do
tesouro, se apoderou do vil metal e matou o jovem;
– Acrísio, soberano de Argos, para a
anular a profecia oracular que previra a sua morte, encerrou numa torre a sua
filha Dánae, que Júpiter, introduzindo-se na torre sob uma chuva de ouro, a
tornou mãe de Perseu, que veio a assassinar Acrísio; e
– Tarpeia, rapariga romana que, na
esperança de obter anéis de ouro, dos Sabinos, que sitiavam Roma, lhes abriu as
portas da cidade, dando azo a que os inimigos, movidos pela avareza do ouro, a
esmagaram sob as joias e os escudos de proteção bélica.
Depois, em termos transtemporais e
translocais, podem elencar-se os diversos efeitos perniciosos do dinheiro,
também denominado de “encantador”: faz render fortalezas (e lançar à margem o valor, lealdade e mérito – mesmo militares);
torna traidores os amigos; corrompe os mais nobres carateres (impondo o domínio da mediocridade, do
carreirismo, do compadrio e do nepotismo) e as maiores purezas (leva à corrutela de donzelas e ao comércio
sexual de mulheres, agora também de jovens e adultos); deturpa o
conhecimento (“deprava às vezes as ciências” – tanta teoria de validade
duvidosa e até enganosa, que se impõe por interesses industriais e comerciais!)
e entorpece a consciência (julga-se a
validade das coisas e dos atos segundo as convicções que o dinheiro cria ou
favorece; pratica-se justificadamente a tortura, o tráfico de pessoas, órgãos,
droga e armas); condiciona a produção e a interpretação de textos e mesmo das
leis (Quem não se lembra da história da
vírgula que na década de 90 do século passado levou à publicação de normativo
legal alterado ou a promiscuidade entre governo/parlamento e sociedades de
consultores e grandes empresas como a banca?); está na origem das
difamações; favorece a tirania e a corrupção dos governantes ou dos aparelhos
de partido ou de Estado (“mil vezes tiranos torna os reis”); corrompe até os
sacerdotes, aparecendo sob a capa da virtude (“os que só a Deus omnipotente se
dedicam).
Até quando os seres humanos se
convencem do destino universal dos bens (são, no fundo, propriedade de todos e
de cada um,) e de que o dinheiro, em vez de fim estonteante, é um meio (a usar
no justo limite) para a construção do bem-estar de cada um e de todos, num
mundo em que, embora seja legítimo a cada um possuir “o seu”, todos disponham
do necessário para viver com dignidade, num clima interativo de solidariedade?
Enfim, os escândalos são inevitáveis,
mas ai daqueles por quem vem o escândalo destruidor da ética decorrente da
correta axiologia antropológica e do próprio homem! “Ai do mundo, por causa dos
escândalos; porque é mister que venham escândalos, mas ai daquele homem por
quem o escândalo vem!” (Mt 18,7).
Fico-me com o
excerto da cantiga para quem sonha,
de Luís Góis:
Tu que
crês num mundo maior e melhor
grita bem alto que o céu está aqui.
Tu que vês irmãos, só irmãos em redor,
Crê que esse mundo começa por ti.
grita bem alto que o céu está aqui.
Tu que vês irmãos, só irmãos em redor,
Crê que esse mundo começa por ti.
E com o segmento seguinte da Mensagem de
Paulo VI para o Dia Mundial da Paz de 1971:
Quem ajuda a
descobrir, em cada homem, além dos carateres somáticos, étnicos e raciais, a
existência de um ser igual ao próprio, transforma a terra, de um epicentro de
divisões, de antagonismos, de insídias e de vinganças, num campo de trabalho
orgânico de colaboração civil.
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