A expressão tem a ver com a arma
de guerra e do seu utilizador na Batalha de la Lys, a 9 de abril de 1918, no quadro
da Operação Georgette, integrada na
grande ofensiva alemã da primavera, no âmbito da I Guerra Mundial (1914-18).
A participação portuguesa direta
no grande conflito, cujo centenário começa agora a evocar-se, fica cercada de
elementos estranhamente curiosos. O país estava esvaído financeiramente, graças
ao despesismo exigido pelas necessidades do progresso e pelo orgulho do
fontismo; e o Estado, que provinha de uma monarquia de feição constitucional,
mas marcada pelo rotativismo partidário, pelo aviltamento diplomático do ultimatum britânico, pela ameaça
espanhola e pela ditadura de João Franco, entrara num regime republicano
instável, repleto de contradições político-sociais e cavalgando a galope para
uma crise sistémica, no contexto da grande depressão, que se estava a desenhar.
Há quem diga que a entrada de
Portugal no conflito mundial se devera à generosidade cívica do poder
republicano na prestação de um serviço à velha aliada, sem que esta o houvesse
solicitado e vindo-o a aceitar meio de soslaio. Aquilino Ribeiro, considerado
um republicano dos quatro costados, que do exílio em França regressa a Portugal
para oferecer os seus préstimos ao poder republicano instaurado em 1910,
desentende-se dos comparsas por causa da participação na guerra. Outros, no
entanto, garantem que estavam em risco os territórios das colónias, mercê da
ambição hegemónica alemã – o que implicava que, se o país pretendia a ajuda dos
aliados em África, também deveria disponibilizar um contingente significativo
na Europa. E assim se constituiu um CEP (Corpo Expedicionário Português) para
França e um CEP colonial.
O CEP constituído para combater
em França integrava “camponeses analfabetos que não conheciam nada para lá dos
montes que cercavam as suas aldeias” (vd Luís Martins, in Visão, n.º 1111, de 2014) e foram despachados a esmo, ressalvando
as cautelas de segurança da viagem marítima, que poderia ser perturbada pelos
submarinos alemães e que, por isso, teve de ser faseada. Eram homens que,
preferindo “o bacalhau com batatas ao sushi,
nunca se adaptaram à ração de combate britânica (que incluía sabores estranhos
como os pickles e a carne enlatada,
mas às quais faltavam os legumes e hortaliças) e escusado será dizer que
estavam mal comandados e desmotivados” (cf Rui Cardoso, in A Primeira Guerra Mundial, vol 7: 2014, Esfera dos Livros).
Ao CEP foi entregue a guarda e a
defesa da Zona do Bois Mystérieux, na
região da Flandres. O adjetivo mystérieux
terá decorrido do facto de inexplicavelmente haverem de lá desaparecido 25 mil
soldados britânicos em operação anterior. O comando geral fora entregue ao
general Tamagnini, que, ao verificar o que vinha acontecendo às unidades de
veteranos britânicos e franceses, diria mais tarde que tudo concorrera para que
se realizasse “o que era de prever”. Ora, como no setor da frente,
relativamente tranquilo, haviam já tombado em combate 350 militares e mais cem
por doença – o equivalente a quase um batalhão – por indicação do supremo
comandante britânico, Alexander Haig, é retirada a I Divisão e apenas fica na
linha da frente a II Divisão, sob o comando do general Gomes da Costa, que
tinha de defender os mesmos 12 Km de frente com metade dos efetivos enquanto
aguardava por substitutos, quem viriam a ser tropas inglesas, já que não havia
tropas portuguesas para enviar para a França devido ao desfavor de retaguarda
política relativamente à continuação do serviço bélico por parte da ditadura
sidonista.
Que as tropas tinham o moral
muito baixo fica bem espelhado na ameaça de revolta de um batalhão de
infantaria 7 consubstanciada na recusa de marchar para a frente, desenhada
quatro dias antes da batalha nefasta, neutralizada pela ordem do general
Tamagnini à artilharia para apontar para o aldeamento onde estava estacionado o
batalhão dos insubmissos.
A separar o setor português dos
alemães estava um grande pântano que secava somente no verão. Porém, no ano de
1918, a primavera dava condições mínimas de transposição em virtude da sua
secura anormal. Assim, numa noite nevoeirenta, as forças de invasão atacaram o
setor português, após um forte bombardeamento com munições convencionais e o
inovador gás, que emprestou ao conflito a vertente de guerra química. Embora, a
norte e a sul, estivesse o terreno ocupado por divisões britânicas, a frente
portuguesa (com um efetivo teórico de 22700 homens, reduzido na prática em mais
de 6 mil) defrontava-se com pelo menos duas divisões alemãs.
Na frente portuguesa ocorre uma
desintegração devido ao pouco caso que os britânicos faziam da primeira linha
de trincheiras, que foi abandonada deliberadamente; quanto à segunda e à
terceira linha, para que se efetivasse um combate em profundidade, de acordo
com a experiência militar do general Sinel de Cordes, que no dealbar da
ditadura militar foi ministro das Finanças, deveriam ficar na vanguarda de
batalha apenas duas brigadas para que fosse possível algum descanso aos
militares extenuados e o reforço do contra-ataque – solução que
inexplicavelmente o já aludido supremo comandante rejeitou.
Uma batalha relativamente
prolongada, travada na maior das confusões e na ausência de comunicações e
diretivas atempadamente emanadas, levou a que uns soldados atirassem com as
armas, outros fugissem e outros, apesar da resistência oferecida e do derrube
de vários muros da ofensiva alemã, fossem subjugados. Neste ambiente de
destroço, fuga e morticínio (600 mortos,1500 feridos e 6000 prisioneiros), Rui
Cardoso (op cit, pg 65ss) refere que “a ‘honra do convento’ é salva por
soldados isolados”, de que se destaca o soldado Aníbal Milhais, um transmontano de Murça, que se comportou como um
herói homérico (vd Luís Martins, id et ib), que o seu comandante na Flandres,
major Ferreira do Amaral, crismou de Milhões,
provavelmente para conotar quantitativamente a dimensão do seu valor militar e pátrio.
Este soldado analfabeto (não sabia ler nem escrever, porque ninguém lho
ensinara), usou a sua cabecinha para pensar e, apesar do compreensível receio,
com o fogo certeiro e resoluto da sua metralhadora Lewis, que afetivamente denominava de Luisinha, cobriu a retirada ordeira dos camaradas, salvando um
número incontável de vidas. Alguns cronistas dizem (o que se dá de barato) que
terá criado a ilusão nas tropas alemãs da existência de tanques inimigos
algures alapados no setor. Todavia, com não há soluções simples, é de ter em
conta outro dado militarmente significativo, que é o recuo das infantarias 13 e
15 para as fortificações de Lacouture, onde resistem em articulação com as
tropas britânicas durante 30 horas. No entanto, apesar da rendição negociada, os
primeiros que saem a terreiro, foram alvejados a sangue-frio.
Apesar de tudo, segundo alguns, o
que poderia ter sido a chave de sucesso alemão, desencadeou a primeira leva de
factos da sua perdição militar: se o pântano mencionado permitiu o trânsito das
primeiras tropas de assalto, a artilharia e as tropas de reabastecimento
começaram a experimentar enormes dificuldades de progressão, acompanhadas da
falta de munições e víveres; e, com a chegada de reforços britânicos, o
equilíbrio foi restabelecido. Tal facto impediu que a brecha com uma frente de
30 Km não tivesse atingido os 15 Km de profundidade, “e uma linha sinuosa que
passa mesmo às portas do quartel-general de Gomes da Costa (o corifeu da revolta militar de 28 de maio de 1926, anotação nossa) ficará a marcar o ponto extremo
do avanço alemão” (Rui Cardoso, op cit ib).
Mas o Aníbal Augusto Milhais é
que emerge como o herói português da I Grande Guerra. Condecorado com a Torre e Espada e descoberto jornalisticamente
em 1924 pelo Diário de Lisboa, o “Milhões”
da I República percorreu o país em procissão triunfal aclamado por hossanas de
multidões incontáveis num contexto de guerra colonial sob a égide do Estado
Novo, tendo mesmo sido abraçado pelo Almirante Américo Tomás, o último Chefe de
estado da II República.
Seja como for, mesmo que a força
de “o mito é o nada que é tudo” (F. Pessoa) tenha conformado o perfil deste herói,
o certo é que o povo não sobrevive sem os seus heróis bem cravejados na memória
coletiva e este corresponde ao perfil do herói cantado por Camões: não é um deus,
nunca o foi nem o pretendeu ser; é, sim, um como nós, que se tornou grande, pela
circunstância, mas temem por si.
***
Integrados
numa União Europeia, alegadamente por decisão voluntária do povo, em que, ao arrepio
dos tratados, quem manda é o alemão, mesmo depois da estrondosa derrota da
seleção portuguesa pela alemã na Copa do
Mundo 2014, os portugueses têm de ensinar o Governo a resistir e a
negociar, já não a batalha militar, mas a batalha da solidariedade política que
abrange a questão económica, a vis financeira e, como instrumento da relação
comercial, a moeda única. Enfim, é a vitória da soberania independente caldeada
com a interdependência solidária e subsidiária que estão em jogo.
Tormenta
Que jaz no abismo
sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o
poder ser.
Que inquietação
do fundo nos soergue?
O desejar poder
querer.
Isto, e o mistério
de que a noite é o fausto…
Mas súbito, onde
o vento ruge,
O relâmpago,
farol de Deus, um hausto
Brilha, e o mar ,scuro ,struge.
Fernando Pessoa, Mensagem
“O poder ser” é extremamente
importante. Mas para isso é preciso cuidar de “o desejar poder querer”. E isso
está ao alcance dos portugueses. Se podem lá fora, porque não podem dentro do
país? Quem impede a marcha da realização pessoal e social e do bem-estar pessoal
e coletivo?
Venham daí os novos Milhais ou
Milhões, apontem-se as novéis lewis ou luisinhas!
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