sábado, 21 de junho de 2014

A Luisinha do "Milhões"

A expressão tem a ver com a arma de guerra e do seu utilizador na Batalha de la Lys, a 9 de abril de 1918, no quadro da Operação Georgette, integrada na grande ofensiva alemã da primavera, no âmbito da I Guerra Mundial (1914-18).
A participação portuguesa direta no grande conflito, cujo centenário começa agora a evocar-se, fica cercada de elementos estranhamente curiosos. O país estava esvaído financeiramente, graças ao despesismo exigido pelas necessidades do progresso e pelo orgulho do fontismo; e o Estado, que provinha de uma monarquia de feição constitucional, mas marcada pelo rotativismo partidário, pelo aviltamento diplomático do ultimatum britânico, pela ameaça espanhola e pela ditadura de João Franco, entrara num regime republicano instável, repleto de contradições político-sociais e cavalgando a galope para uma crise sistémica, no contexto da grande depressão, que se estava a desenhar.
Há quem diga que a entrada de Portugal no conflito mundial se devera à generosidade cívica do poder republicano na prestação de um serviço à velha aliada, sem que esta o houvesse solicitado e vindo-o a aceitar meio de soslaio. Aquilino Ribeiro, considerado um republicano dos quatro costados, que do exílio em França regressa a Portugal para oferecer os seus préstimos ao poder republicano instaurado em 1910, desentende-se dos comparsas por causa da participação na guerra. Outros, no entanto, garantem que estavam em risco os territórios das colónias, mercê da ambição hegemónica alemã – o que implicava que, se o país pretendia a ajuda dos aliados em África, também deveria disponibilizar um contingente significativo na Europa. E assim se constituiu um CEP (Corpo Expedicionário Português) para França e um CEP colonial.
O CEP constituído para combater em França integrava “camponeses analfabetos que não conheciam nada para lá dos montes que cercavam as suas aldeias” (vd Luís Martins, in Visão, n.º 1111, de 2014) e foram despachados a esmo, ressalvando as cautelas de segurança da viagem marítima, que poderia ser perturbada pelos submarinos alemães e que, por isso, teve de ser faseada. Eram homens que, preferindo “o bacalhau com batatas ao sushi, nunca se adaptaram à ração de combate britânica (que incluía sabores estranhos como os pickles e a carne enlatada, mas às quais faltavam os legumes e hortaliças) e escusado será dizer que estavam mal comandados e desmotivados” (cf Rui Cardoso, in A Primeira Guerra Mundial, vol 7: 2014, Esfera dos Livros).
Ao CEP foi entregue a guarda e a defesa da Zona do Bois Mystérieux, na região da Flandres. O adjetivo mystérieux terá decorrido do facto de inexplicavelmente haverem de lá desaparecido 25 mil soldados britânicos em operação anterior. O comando geral fora entregue ao general Tamagnini, que, ao verificar o que vinha acontecendo às unidades de veteranos britânicos e franceses, diria mais tarde que tudo concorrera para que se realizasse “o que era de prever”. Ora, como no setor da frente, relativamente tranquilo, haviam já tombado em combate 350 militares e mais cem por doença – o equivalente a quase um batalhão – por indicação do supremo comandante britânico, Alexander Haig, é retirada a I Divisão e apenas fica na linha da frente a II Divisão, sob o comando do general Gomes da Costa, que tinha de defender os mesmos 12 Km de frente com metade dos efetivos enquanto aguardava por substitutos, quem viriam a ser tropas inglesas, já que não havia tropas portuguesas para enviar para a França devido ao desfavor de retaguarda política relativamente à continuação do serviço bélico por parte da ditadura sidonista.
Que as tropas tinham o moral muito baixo fica bem espelhado na ameaça de revolta de um batalhão de infantaria 7 consubstanciada na recusa de marchar para a frente, desenhada quatro dias antes da batalha nefasta, neutralizada pela ordem do general Tamagnini à artilharia para apontar para o aldeamento onde estava estacionado o batalhão dos insubmissos.
A separar o setor português dos alemães estava um grande pântano que secava somente no verão. Porém, no ano de 1918, a primavera dava condições mínimas de transposição em virtude da sua secura anormal. Assim, numa noite nevoeirenta, as forças de invasão atacaram o setor português, após um forte bombardeamento com munições convencionais e o inovador gás, que emprestou ao conflito a vertente de guerra química. Embora, a norte e a sul, estivesse o terreno ocupado por divisões britânicas, a frente portuguesa (com um efetivo teórico de 22700 homens, reduzido na prática em mais de 6 mil) defrontava-se com pelo menos duas divisões alemãs.
Na frente portuguesa ocorre uma desintegração devido ao pouco caso que os britânicos faziam da primeira linha de trincheiras, que foi abandonada deliberadamente; quanto à segunda e à terceira linha, para que se efetivasse um combate em profundidade, de acordo com a experiência militar do general Sinel de Cordes, que no dealbar da ditadura militar foi ministro das Finanças, deveriam ficar na vanguarda de batalha apenas duas brigadas para que fosse possível algum descanso aos militares extenuados e o reforço do contra-ataque – solução que inexplicavelmente o já aludido supremo comandante rejeitou.
Uma batalha relativamente prolongada, travada na maior das confusões e na ausência de comunicações e diretivas atempadamente emanadas, levou a que uns soldados atirassem com as armas, outros fugissem e outros, apesar da resistência oferecida e do derrube de vários muros da ofensiva alemã, fossem subjugados. Neste ambiente de destroço, fuga e morticínio (600 mortos,1500 feridos e 6000 prisioneiros), Rui Cardoso (op cit, pg 65ss) refere que “a ‘honra do convento’ é salva por soldados isolados”, de que se destaca o soldado Aníbal Milhais, um transmontano de Murça, que se comportou como um herói homérico (vd Luís Martins, id et ib), que o seu comandante na Flandres, major Ferreira do Amaral, crismou de Milhões, provavelmente para conotar quantitativamente a dimensão do seu valor militar e pátrio. Este soldado analfabeto (não sabia ler nem escrever, porque ninguém lho ensinara), usou a sua cabecinha para pensar e, apesar do compreensível receio, com o fogo certeiro e resoluto da sua metralhadora Lewis, que afetivamente denominava de Luisinha, cobriu a retirada ordeira dos camaradas, salvando um número incontável de vidas. Alguns cronistas dizem (o que se dá de barato) que terá criado a ilusão nas tropas alemãs da existência de tanques inimigos algures alapados no setor. Todavia, com não há soluções simples, é de ter em conta outro dado militarmente significativo, que é o recuo das infantarias 13 e 15 para as fortificações de Lacouture, onde resistem em articulação com as tropas britânicas durante 30 horas. No entanto, apesar da rendição negociada, os primeiros que saem a terreiro, foram alvejados a sangue-frio.
Apesar de tudo, segundo alguns, o que poderia ter sido a chave de sucesso alemão, desencadeou a primeira leva de factos da sua perdição militar: se o pântano mencionado permitiu o trânsito das primeiras tropas de assalto, a artilharia e as tropas de reabastecimento começaram a experimentar enormes dificuldades de progressão, acompanhadas da falta de munições e víveres; e, com a chegada de reforços britânicos, o equilíbrio foi restabelecido. Tal facto impediu que a brecha com uma frente de 30 Km não tivesse atingido os 15 Km de profundidade, “e uma linha sinuosa que passa mesmo às portas do quartel-general de Gomes da Costa (o corifeu da revolta militar de 28 de maio de 1926, anotação nossa) ficará a marcar o ponto extremo do avanço alemão” (Rui Cardoso, op cit ib).
Mas o Aníbal Augusto Milhais é que emerge como o herói português da I Grande Guerra. Condecorado com a Torre e Espada e descoberto jornalisticamente em 1924 pelo Diário de Lisboa, o “Milhões” da I República percorreu o país em procissão triunfal aclamado por hossanas de multidões incontáveis num contexto de guerra colonial sob a égide do Estado Novo, tendo mesmo sido abraçado pelo Almirante Américo Tomás, o último Chefe de estado da II República.
Seja como for, mesmo que a força de “o mito é o nada que é tudo” (F. Pessoa) tenha conformado o perfil deste herói, o certo é que o povo não sobrevive sem os seus heróis bem cravejados na memória coletiva e este corresponde ao perfil do herói cantado por Camões: não é um deus, nunca o foi nem o pretendeu ser; é, sim, um como nós, que se tornou grande, pela circunstância, mas temem por si.
***
Integrados numa União Europeia, alegadamente por decisão voluntária do povo, em que, ao arrepio dos tratados, quem manda é o alemão, mesmo depois da estrondosa derrota da seleção portuguesa pela alemã na Copa do Mundo 2014, os portugueses têm de ensinar o Governo a resistir e a negociar, já não a batalha militar, mas a batalha da solidariedade política que abrange a questão económica, a vis financeira e, como instrumento da relação comercial, a moeda única. Enfim, é a vitória da soberania independente caldeada com a interdependência solidária e subsidiária que estão em jogo.
Tormenta

Que jaz no abismo sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o poder ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.

Isto, e o mistério de que a noite é o fausto…
Mas súbito, onde o vento ruge,
O relâmpago, farol de Deus, um hausto
Brilha, e o mar ,scuro ,struge.
Fernando Pessoa, Mensagem
“O poder ser” é extremamente importante. Mas para isso é preciso cuidar de “o desejar poder querer”. E isso está ao alcance dos portugueses. Se podem lá fora, porque não podem dentro do país? Quem impede a marcha da realização pessoal e social e do bem-estar pessoal e coletivo?

Venham daí os novos Milhais ou Milhões, apontem-se as novéis lewis ou luisinhas!

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