Trata-se da trinomia propalada pela
Revolução Francesa, a que subjaz uma cadeia ideológica que se inspirou no
liberalismo de Rousseau e demais pensadores coevos e que alguns dizem ser a
face superior do iluminismo, embora nesta nos apareça não a fraternidade, mas o
progresso.
Felizmente, a História das ideias permite
a satisfação das diversas tendências que se formam no conspecto global da
Humanidade. Reivindicam a causa desta trinomia cristãos, judeus e muçulmanos,
os elementos conscientes das religiões mais orientais ou do interior profundo
dos diversos continentes e das paragens insulares ou peninsulares.
Reivindicam-na as organizações secretas que influenciam o devir da humanidade
na era moderna e pós-moderna, como a estabeleceram como estilo de vida os
inventores do discipulado na antiguidade em redor do respetivo mestre (alguns,
como os pitagóricos, viviam em permanente comunidade). E muitas sociedades,
associações, agremiações, congregações, irmandades e confrarias (religiosas,
eclesiais ou seculares) se instituem hoje com base no reconhecimento da
igualdade perante a lei, na liberdade de reunião e de expressão e na relação
fraterna que implica os deveres do aperfeiçoamento pessoal, da aceitação da
crítica fraterna e da reciprocidade de tratamento. Mais: a trinomia, feita
trilogia ideológica, constitui a plataforma de base das declarações dos
direitos do cidadão, originariamente redigidas nas revoluções setecentistas e
seguintes, transpostas para as constituições dos modernos Estados de direito
democrático, bem como o entendimento basilar que pautou a declaração universal
dos direitos humanos, em 1948, que tantos subscreveram e tanto inobservam.
Mas a Revolução Francesa não pode
arvorar-se em mestra originária ou dona das ideias da liberdade, igualdade e
fraternidade. Apesar de nas fachadas dos edifícios oficiais em França se exibir
o emblema “liberdade, igualdade, fraternidade”, Charles Péguy (1960. Euvres en prose. Paris: Gallimard, Pléiade
IT) advogava que o lema republicano deveria ser reescrito pela ordem seguinte:
fraternidade, liberdade, igualdade. A ideia não vingou porque os anticlericais
da época revolucionária advertiram – e com razão – que a fraternidade era um
conceito cristão.
Efetivamente, a linguagem bíblica
remete-nos muitas vezes para o campo lexical da fraternidade. Dentro dos
registos bíblicos, desde a criação, passando pelos livros históricos, pelos
sapienciais e pelos proféticos, encontramos inúmeras recorrências que testificam
que fraternidade e religião caminham de mãos dadas.
Citam-se, a título de exemplo,
algumas passagens:
– “Quanto à coleta em prol dos
santos, fazei vós também o que ordenei às Igrejas da Galácia. No primeiro dia
da semana, cada um, em sua casa, ponha algo de lado, para que, quando eu
chegar, não se tenha de fazer ainda a coleta. E, quando eu for aí, enviarei a
Jerusalém os homens que vós escolherdes, para levarem a vossa dádiva. Porém, se
convier que eu vá também, eles viajarão comigo.” (1Co 16,1-4). Paulo, face ao
caos vivido então pelos judeus, mobiliza a Igreja que vivia em Corinto e
Galácia, que responde em conformidade para corrigir as desigualdades, demonstrando
o espírito de união fraterna. Um ano depois, Paulo refere a participação da
Macedónia e da Acaia.
– “Cada um dê como resolveu em seu
coração, sem tristeza nem sob compulsão, pois Deus ama o doador animado.
Ademais, Deus faz abundar em vós toda a benignidade imerecida, para que, embora
possuais plena autossuficiência, tenhais de sobra para toda boa obra”. (2Co
9,7-8). A fraternidade está, pois, patente na mútua solidariedade que deve
existir em toda a comunidade, não por imposição, mas por atitude positiva em
ajudar a pessoa humana. Deste modo, a ação de Paulo gera ainda mais a unidade
dos homens, ensinando-os na prática do ideal da fraternidade, ou seja, da
compaixão e assistência mútua como uma constante da doutrina do Evangelho,
buscando uma sociedade igualitária.
A fraternidade já, no Antigo
Testamento aparece estabelecida, renovada e mesmo como finalidade, como se pode
ver, por exemplo, através das seguintes citações:
– “Decidimos renovar os laços de fraternidade e amizade convosco, para não nos
tornarmos estranhos, pois já faz muito tempo que vós nos enviastes aquela
embaixada” (1Mac 12,10).
– “Encarregámo-los de passarem junto de vós para vos saudarem e entregarem
esta carta, cujo fim é renovar a nossa fraternidade.” (1Mac 12,17).
No entanto, é o Novo Testamento que estabelece a
fraternidade como fulcro da relação interpessoal e intraeclesial em consonância
com o dinamismo da oração que Jesus ensinou. Se o Pai de Jesus Cristo é o pai
de todos, todos estamos necessariamente embarcados na fraternidade em Cristo
(cf Mt 6,9-13):
– “Deveis empenhar-vos em unir à fé a
virtude, à virtude o conhecimento, ao conhecimento a temperança, à temperança a paciência, à paciência a piedade, à piedade a fraternidade
e à fraternidade a caridade.” (2Pe 1,5-7).
– “Honrai a todos. Amai a fraternidade. Temei a Deus.” (1Pe 2,17).
A
fraternidade gera e desenvolve um amor com as seguintes caraterísticas: de
coração ou sincero e não de boca, exprimindo uma genuína preocupação com os
irmãos (1Pe 1,22); ardente e intenso, como convém ao verdadeiro servo do Senhor
(1,22; 4,8); paciente para com os pecados dos outros, embora não os minimize,
mas levando ao arrependimento e à emenda (cf 1Pe 4,8; Tg 5,19-20); respeitador
dos irmãos, que são tratados como amigos, sem vinganças e maledicências, mas
com misericórdia, amor e humildade (cf Tg 3,8-11); hospitaleiro e dedicado no
serviço aos outros (cf1Pe 4,9-10; Mt 20,28); e que leva a saudar a todos com o
amor de quem vive na família de Deus (cf 1Pe 5,14).
Sobre
a liberdade, há também recorrências bíblicas, como se pode aferir pelos lugares
citados:
– “Se permanecerdes na minha palavra,
verdadeiramente sereis meus discípulos. E conhecereis a verdade, e a verdade os
libertará.” (Jo 8,31-32) .
– “Ora, o Senhor é o Espírito e, onde está
o Espírito do Senhor, aí está a liberdade.” (2Co 3,17).
– “Foi para a liberdade que Cristo nos
libertou […] Irmãos, vós fostes chamados para a liberdade. Mas não a useis para
dar ocasião à vontade da carne; pelo contrário, sirvi-vos uns aos outros
mediante o amor.” (Gl 5,1.13).
– “Deu-me ampla liberdade; livrou-me, pois
me quer bem.” (2Sm, 22,20)
– “Andarei em verdadeira liberdade, pois
tenho buscado os teus preceitos.” (Sl 119,45).
Quanto à igualdade, há que dizer que
também aparece bem incorporada na Bíblia, como se pode aferir, pois, segundo a
Palavra do Senhor, não se pode fazer aceção de pessoas:
– “Não discriminareis as pessoas em juízo;
ouvireis tanto o pequeno como o grande; não temereis a face de ninguém, porque
o juízo é só de Deus.” (Dt 1,17).
– “Quanto menos àquele que não faz aceção
de pessoas de príncipes nem estima o rico mais que o pobre: porque todos são
obra das suas mãos.” (Jb 34,19).
– “E, abrindo a boca, Pedro disse: Reconheço por verdade que Deus não faz
aceção de pessoas.” (At 10,34).
– “Mas, se fazeis aceção de pessoas,
cometeis pecado e sois redarguidos pela lei como transgressores.” (Tg 2,9).
– “E, se invocais por Pai aquele que, sem
aceção de pessoas, julga segundo a obra de cada um, andai com temor, durante o
tempo da vossa peregrinação” (1Pe 1,17).
***
Porém, a memória bíblica de Caim-Abel
leva-nos a inferir que a fraternidade não é espontânea. Está, entretanto,
sempre à nossa frente como dever de construção quotidiana. Edgar Morin (Complexidade-e-Liberdade.pdf, ac. 30-05-14)
dizia que a liberdade pode ser instituída e imposta, ao passo que a fraternidade
não se fixa por lei nem por imposição estatal. Resulta, sim, da experiência
pessoal de solidariedade e de responsabilidade. Per se, a liberdade matará a igualdade e a igualdade imposta como
único princípio destrói a liberdade. Só a fraternidade garante a manutenção da
lídima liberdade, mas com a luta para a supressão das desigualdades.
No passado, dois sistemas diziam
encarnar a liberdade ou a igualdade. O liberalismo económico garantiria a todos
o bem-estar e o socialismo promoveria a igualdade, atribuindo o primeiro ao
Estado o papel de árbitro e o segundo, o da distribuição da riqueza.
Recentemente, as crises financeiras, as doenças e a pobreza levaram à ilação da
falta de base ética que garanta o sentido dos esforços de quem tem o múnus da
organização da vida social e económica. E essa ética terá necessariamente a
fraternidade como referência. Não raro, confunde-se fraternidade e
solidariedade. Mas a solidariedade intenta corrigir as desigualdades e as
injustiças, mas sem as discutir. Por seu turno, a fraternidade visa a sociedade
genuinamente igualitária, numa igualdade não só de direito mas de facto, em nome
da premente dignidade do homem. Na sociedade fraterna, o privilégio individual
não existe e cada um cuida do outro; cada um é reconhecido a simul como diferente e igual. Somos irmãos enquanto integramos à
mesma família humana.
A fraternidade endita a liberdade e a
igualdade porque, ao contrário da liberdade meramente liberal, a liberdade
fraterna sente-se responsável pela liberdade do outro.
São João Paulo II, na sua visita à
França em 1980, reclamou a matriz cristã da trinomia “liberdade, igualdade e fraternidade”.
E com razão, já que o cristianismo primitivo apresenta a Igreja como
“comunidade de irmãos”. O termo “irmão” (grego, adelfos; latim, frater) designa os que pertencem ao grupo dos
discípulos de Jesus, que Paulo, aos Romanos
(8,29), designa como “o primogénito numa multidão de irmãos”. E a comunidade primeva
usa o termo “fraternidade” (grego, adelphótes; latim, fraternitas) – termo típico do
vocabulário cristão: por exemplo, não se encontra em Platão ou Aristóteles,
embora esses autores usem com frequência o vocábulo “irmãos”. Portanto, para os
cristãos a fraternidade, mais do que virtude, reside no facto de serem irmãos,
membros de um grupo, o grupo dos cristãos, batizados, unidos a Cristo através
dos sacramentos da Ecclesia.
Também Bento XVI glosa a fraternidade
na Caritas in Veritate, cujo cap. III é
intitulado: “fraternidade, desenvolvimento económico e sociedade civil”. No
cap. V, no âmbito da colaboração da família humana, a fraternidade é examinada
do lado teológico: a SS.ma Trindade é a referência última da unidade
da família humana (n. 54), inferindo o Papa que as diversas culturas e
religiões, ao considerarem a exigência do amor e da verdade, dão inestimável
contributo à reaproximação dos povos. Embora mantenha prudência e reserva quanto
à colaboração das religiões na garantia da unidade do género humano, o
Pontífice insiste na afirmação de que o contributo das religiões para o desenvolvimento
requer, antes de mais, que Deus tenha o seu lugar explícito na esfera pública (n.
56). Neste contexto, o Papa evoca a relação entre fé e razão, que se purificam
reciprocamente.
A Declaração Universal dos Direitos
do Homem, da ONU em 1948, após as barbáries da segunda guerra mundial,
estribou-se na fraternidade, como se verifica na releitura do art.º 1.º:
Todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência,
devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.
Ora, tal enunciado significa que a
fraternidade não é facultativa, mas imperativo ínsito nos valores mais
sagrados, religiosos ou laicos. Não sendo espontânea nem imediata, deve ser
aprendida através da educação e da formação, não só na escola, mas por toda a
vida. Na escola, deverá ensinar as crianças a ajudarem-se reciprocamente, a
respeitar as diferenças – itens em que as religiões têm papel decisivo. Isto,
porque é possível conviver e conservar a própria identidade, porque somos
membros de uma mesma família, e sob o olhar de Deus – para uns Criador, para
outros Pai – devemos viver não só tolerando-nos, mas amando-nos como numa
família. Assim, o diálogo inter-religioso torna-se fator charneira neste mundo
pluricultural e plurirreligioso para a convivência pacífica e sobretudo para a edificação
de um mundo novo. Os crentes são provocados ao confronto com o tríplice desafio:
identidade, diferença e pluralismo. O desafio da identidade implica a aquisição
da consciência do conteúdo da própria fé, porque não se pode dialogar na
ambiguidade; o desafio da diferença postula a aceitação como amigo e irmão de
quem pertence a outra religião ou cultura; e o desafio do pluralismo exige o
reconhecimento de que Deus misteriosamente age em cada uma das suas criaturas.
A vivência desta espiritualidade capacita os crentes para o combate de todas as
causas de não-fraternidade: desemprego, desigualdades sociais, isolamento da
doença e da pobreza, desatenção (e descarte) para com pessoas idosas,
estrangeiros e migrantes. Os crentes podem prestar relevante serviço aos irmãos
em humanidade, em busca do sentido da vida e da história. Paul Ricoeur, em
artigo de 1966, publicado na revista Esprit,
afirma que o homem moderno se confronta com quatro questões: autonomia, desejo,
poder e insensatez. Encarando tais questões com moderação e sublimação, é de
reconhecer que todos os crentes podem cooperar para o bem comum nas seguintes
áreas: a cidade, o desporto e a música, a educação e a hospitalidade. Com
muitos homens e mulheres os crentes devem compartilhar os grandes valores do
património cristão: o respeito pela pessoa humana, nunca circunscrito à produtividade
económica nem à posição social; a tutela das liberdades fundamentais da pessoa
humana; a igualdade, que assenta na caridade. Todos se devem ajudar, no
respeito das diferenças, a escolher entre o bem e o mal; e os responsáveis
religiosos têm o dever de indicar o caminho a empreender para cada um a poder
escolher, na liberdade e com responsabilidade, o reto caminho.
(cf L’
Osservatore Romano, 07-08-10)
Vamos mesmo enveredar pela revolução
da liberdade, igualdade e fraternidade – cristã ou laica?
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