quarta-feira, 28 de maio de 2014

Exigência e rigor na "preparação do nosso futuro"

Um inquérito que foi lançado, sob a égide da Universidade de Évora, a milhares de estudantes e também a professores e dirigentes de escolas, agora mais propriamente agrupamentos de escolas, revela dados curiosos, mas que não sei se era necessário recorrer a tal auscultação de opinião para chegarmos ao conhecimento deles.
Todavia, merecem reflexão e desapontamento. A reflexão tem a ver com o reconhecimento de que algo vai mal no sistema, que não exatamente o que foi dito nem o porquê do que foi dito. Especificando, é certo que os programas escolares das diversas disciplinas do ensino secundário são notoriamente extensos; as disciplinas no 10.º ano e no 11.º são bastantes, o que não acontece no 12.º (e, pelo menos no que a comunicação social acentua, tal diferença não vem anotada), e o número de alunos por turma, em regra, é excessivo. Já não será verdade que os alunos não dispõem de tempo para estudo e outras ocupações também necessárias à vida e à educação.
Referem muitos dos inquiridos que não é suficiente a articulação do ensino básico com o secundário e querem que se instale uma lógica de maior e exigência e rigor na preparação do “nosso futuro”.
Este postulado considero-o abstruso – e daí o meu desapontamento – não porque não deva ser como o dizem agora. Mas pergunto-me com toda a indignação que me assiste, solidariamente com tudo aquilo que os professores sofrem na pele, na carne e no sangue: Onde estavam ou estão os agora opinantes quando os professores na escola querem contrariar a indisciplina, o desinteresse, a preguiça, a irresponsabilidade, a falta de autoridade do professor, a má educação de postura, atitudes e comportamentos, bem como às vezes, as ameaças e a violência? Onde estão ou estavam os pais, individualmente considerados e/ou em associação, quando deveriam estar ao lado dos professores mais do que ao lado dos alunos irrequietos e irresponsáveis, a alinhar no hipercriticismo, tantas vezes, demolidor? Onde estavam ou estão alguns dirigentes que dão sempre razão aos alunos e alguns professores que branqueiam situações bem “imbranquiáveis”? Se calhar agora foram todos lestos a dizer mal do sistema, a expor à opinião pública a miséria de algumas unidades escolares (que não sei quantificar, mas a Comunicação Social sabe fazê-lo e nem sempre o faz da melhor maneira) … Onde está a observância por parte de uma enorme franja de alunos do constitucional direito e dever de aprender, com que se relacionam o direito e dever de ensinar – que, aliás, muitos alunos o desejam, tantas vezes na discrição e no silêncio? Como é que é possível que o legítimo direito de aprender não se sobreponha à superficialidade e à balda? Surge mais tarde, quando já não se torna fácil apanhar o comboio do real sucesso, porquê, para quê?
É verdade que o excessivo número de alunos por turma é um obstáculo grande à gestão da sala de aula e ao sucesso. Todavia, não será o maior nem o único. A prova é que, em muitos casos em que o número de alunos é excecionalmente exíguo, os resultados não são bons e a gestão de aula nem sempre é a aceitável. O problema resulta do facto de tudo se exigir da escola, mesmo aquilo que a família e a sociedade deveriam dar, mas não o fazem porque não sabem, não podem ou não querem. Mas, se não podem ou não sabem, deveriam dar mais a mão à escola, em vez de se porem contra ela ou contra os professores, por vezes, invadindo a autonomia profissional e questionando a seleção de conteúdos programáticos e de metodologias de ensino.
Os programas das diversas disciplinas parecem extensos. E sê-lo-ão se os alunos tiverem de aprender quase tudo neste nível de ensino. Quantas horas não perdem os professores do ensino secundário a instruir sobre conteúdos que deveriam estar mais que assimilados e em parâmetros de exercício da cidadania que deveriam estar já incorporados (o saber estar em sala de aula, a assiduidade e pontualidade, o saber ouvir, o saber intervir, o saber cumprimentar, etc.)! E será verdade que esses aspetos foram descurados no ensino básico? É óbvio que não. Os módulos de formação cívica, em regime de disciplina autónoma ou nas abordagens nas diversas disciplinas, têm sido imperativo no ensino básico, aliás como muitos dos conteúdos, em justa consonância com os diversos níveis etários e de escolaridade.
Porém, há dois fatores de insucesso nesta matéria: enquanto uns fazem os marcos de percurso, outros os desfazem; por outro lado, os profissionais nem sempre têm a resiliência suficiente para avançar perante os obstáculos de toda a ordem. E, por trás destes fatores, há uma situação de base perversa: “o não se admitir que seria necessário assumir, em determinados momentos, o insucesso real e, a partir daí, refazer a caminhada rumo ao sucesso”. Ora, a partir do tempo de Roberto Carneiro, apesar da magna reforma educativa que ele pôs em marcha, presumiu-se o sucesso escolar e educativo (Quem não se lembra das cartas por si enviadas com o remetente “da escola do sucesso”?) e, nesse sentido, declarou-se o caráter excecional das retenções, que muitos apostam em levar ao pé da letra, e proibiu-se a retenção no termo do primeiro ano de escolaridade. É certo que na escola os professores são assiduamente chamados à atenção para a importância dos anos de início de ciclo. Implicam marcos específicos de socialização que deveriam ser encarados com cuidados também específicos. Ora, em vez da preocupação com eventuais traumas de infância, alegadamente provocáveis por determinadas medidas educativas, deveriam ter-se em conta as situações parcelares de insucesso. E, se além das medidas consensualmente espelhadas nos normativos legais, fosse necessário provocar uma pausa individualizada no avanço da escolaridade, as equipas interdisciplinares de orientação escolar deveriam entrar em ação de acompanhamento específico junto de quem dele necessitasse. Nem sempre terá sido boa conselheira a insistência quase tautológica em que os professores devem mudar de estratégias, ter em conta o percurso escolar e alargar a avaliação a elementos não estritamente cognitivos, como os valores, as atitudes e os comportamentos – como se fossem os principais responsáveis pelo insucesso. Tal não pode significar que os professores não devam fazer competentemente o seu trabalho pré-didático, didático e pós-didático, sempre na atenção aos contextos de escola e de comunidade (e às crises de infância e de adolescência), sempre na disposição de reavaliar, reformular e promover. Todavia, a escola tem de abandonar o “puericentrismo” como linha-força e a “matetolatria” como postura. É verdade que a escola se faz para os alunos e em torno dos alunos, mas não podem ser eles os condutores do processo de ensino-aprendizagem.
Voltando à extensão dos programas do ensino secundário, deve dizer-se que, além do necessário cumprimento das metas do ensino básico adequadas a cada nível de ensino, progressivas e cíclicas, deveria dar-se ao professor a capacidade da gestão dos programas de acordo com as circunstâncias de turma, constituindo os mesmos uma panóplia de possibilidades curriculares. É que a escola, mais do que do exame final, deveria cuidar da formação académica dos alunos. Diga-se que se torna desviante a insistência excessiva ministerial, editorial e escolar em prol da preparação de exame final. Este deveria surgir por acréscimo e aferição das aprendizagens, ou então modalidade de avaliação única para quem transbordou o sistema escolar. E o ingresso no ensino superior deveria ser reequacionado noutros parâmetros que não as médias do ensino secundário (quase em exclusivo, porquê?). Evitar-se-iam fabricações de notas, sobretudo em instituições do ensino privado, que dizem que preparam melhor para o ingresso no ensino superior que as escolas públicas, as quais, por sua vez, parece que preparam melhor para aguentar com o peso académico daquele patamar de ensino. Mas, se quisermos que os exames constituam modalidade de avaliação final universal, então a gestão dos programas que se faça como na disciplina de Literatura Portuguesa: núcleos fundamentais obrigatórios em todas as escolas; e núcleos a lecionar em regime alternativo. E o exame incidiria sobre os conteúdos obrigatórios e com várias hipóteses sobre os conteúdos lecionados em alternativa, respondendo cada aluno aos conteúdos lecionados na sua escola.
Quanto à insuficiente articulação entre ensino básico e secundário (multiplicam-se as reuniões e os relatórios!), penso que se deve ter em conta que a articulação não é fácil, sobretudo se desde o início (1.º ano de escolaridade) não se doseia o rigor com a flexibilidade, se as tendências pueris não são orientadas, se a prestação docente e discente não se torna cada vez menos lúdica e cada vez mais responsável. Não haverá um demasiado “tutuar” dos alunos em relação ao (à) professor (a), um excessivo cumprimento das vontades caprichosas das crianças? Não seria conveniente uma reorientação da postura parental em relação às crianças e à melhor e equilibrada relação com a escola? Não estará a ser progressivamente prejudicada a autonomia que se quer cada vez mais consolidada para os alunos? Ademais, os resultados das provas finais no fim dos diversos ciclos do ensino básico não são famosos, mas os alunos, regra geral, transitam para o ciclo seguinte. Mais: o regime de assiduidade é exigente, segundo o estatuto do aluno e ética escolar, mas o seu atropelo mais não é que a sobrecarga de trabalhos para os professores; idem para o regime disciplinar, em que tudo ou quase tudo se inobserva, mas nada acontece, a não ser mais trabalho de papelada para docentes e diretores de turma.
Finalmente, por não relevante, diga-se que não tem suporte real a afirmação de que os alunos não têm tempo para estudar. Regra geral, o tempo não falta. Será é mal aproveitado. Os alunos passam muito tempo fora de casa sem ocupação. Mas podem estudar na escola, não tendo de o fazer necessariamente em casa: até, sem falar de ludotecas e bibliotecas escolares, para matar o tempo, ainda dispõem de tempo para ginásio, academias, piscinas, passeios e farras. Podem não ter tempo eventualmente para os ditos testes. E aí algo vai mal: se a avaliação das aprendizagens resulta de várias modalidades, instrumentos e momentos, porquê um disciplinamento específico à volta dos testes? Se ela deve incidir no processo e nos resultados, porque não levar os alunos a estudar todos os dias? Porque é que os pais têm de ser informados em especial sobre testes e não sobre todo o processo escolar? Porquê a marcação antecipada, a obrigatoriedade do teste e a não prestação de dois testes no mesmo dia?

Enfim, só no termo da escolaridade é que nos damos conta de que se cedeu ao facilitismo ao longo da escolaridade? Só em inquérito anónimo é que temos a ousada coragem de sugerir a obrigação de maior exigência e rigor na preparação do nosso futuro? Esquecemo-nos de que a escola nos dá tantas vezes a palavra?

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