A afirmação epigráfica é do Papa Francisco
na ronda de questões lançadas pelos jornalistas aquando do regresso da Terra
Santa. Ela encimou a resposta a uma pergunta em concreto sobre os obstáculos à
reforma da Cúria Romana. Mesmo assim, ela dá-me azo a uma reflexão mais
alargada, embora sem me afastar muito da temática daquele encontro com os
jornalistas.
É óbvio que o Papa argentino, quando esclarece
os jornalistas sobre o panorama político e social que contextualiza as eleições
europeias, como aliás as grandes movimentações no mundo, tem como subjacente
que o maior obstáculo às reformas é sempre o homem que se deixe dominar pelo “eu”
eivado do egocentrismo, do egoísmo exacerbado, do egotismo.
Com a simplicidade já proverbial de
Francisco, temos a resposta a uma pergunta sobre o crescimento do populismo
manifestado nas recentes eleições europeias, estribada no facto de nos últimos
dias ter tido tempo para rezar um pouco o Pai Nosso, mas não haver disposto de notícias.
Mais: confessa que, ao ouvir falar de confiança ou desconfiança na e da Europa
ou mesmo da saída do Euro, disto não entende nada. No entanto, não deixa de
sublinhar aquilo que deve preocupar todas as pessoas, porque é extremamente
grave – o desemprego, a palavra-chave do momento. E a sua grande causa
explicita-se de forma muito simples: estamos num sistema económico múltiplo que
se centra exclusivamente no dinheiro, quando o centro do verdadeiro sistema
económico deve ser a pessoa humana – o homem e a mulher.
Ora, o grande obstáculo à centração
do sistema económico no homem é o outro homem, aquele que pensa e diz coisa
parecida com isto: o mundo sou eu, o Estado sou eu. Ah, pois, o grande obstáculo
sou eu! Não haja a menor dúvida de que o enunciado hobbesiano do homem como lobo
do homem tem plena atualidade no hoje do mundo. E os sinais não abrem para
otimismos.
E o homem, enquanto obstáculo à
humanização das estruturas e dos sistemas, à verdadeira reforma, para manter o status quo sistémico do “lucro pelo
lucro”, ao mesmo tempo que faz o discurso da fala mansa da solidariedade e da
repartição equânime dos sacrifícios, empreende várias medidas de descarte, que
o Papa especifica: o descarte das crianças, como o indicam as taxas de
natalidade na Europa; e o descarte dos idosos. E chega ao ponto de afirmar que,
quando necessitam deles, remobilizam-nos para o trabalho, mesmo que estejam
jubilados/reformados. Porém, na ancianidade, descartam-nos, recorrendo a
situações de eutanásia, oculta em muitos países. E, ainda para mais, negoceia-se
escandalosamente com lares de idosos, saúde e funeral.
Mas o descarte estende-se aos jovens,
o que o Papa considera “gravíssimo”. E de cor lança dados sobre a desocupação
juvenil: 40%, em Itália; 50%, em Espanha (mas, na Andaluzia e Sul de Espanha,
60%). E refere que este sistema económico desumano produz a geração jovem de
nem-nem, isto é, de jovens que nem estudam nem trabalham. E assim se descarta
toda uma geração.
Este é um quadro traçado por um
Pontífice que diz não estar suficientemente informado, que mal teve tempo de
rezar o Pai Nosso nos últimos dias e que não entende nada de confiança e
desconfiança na e da Europa ou de vantagens e desvantagens da saída do Euro. Que
diria se tivesse tempo, papéis e o conhecimento que talvez desejasse.
Mas a afirmação referenciada em
epígrafe aplica-se a mais outros campos.
É o “eu” do homem pecador que impede
a reforma diária da Igreja (como diziam os antigos Padres da Igreja, Ecclesia semprer reformanda est – a Igreja deve reformar-se sempre) e
a sua purificação pertinente. E, como apostava Frei Bartolomeu dos Mártires,
também os cardeais! Ficou célebre a sua sentença: eminemtissimi
cardinales indigent eminentissima reformatione.
Por isso, em termos de reforma na
postura, ao mesmo tempo que se faz uma opção de Igreja preferencial pelos pobres
e se preconiza uma Igreja pobre e serva, surgem as contradições com a mensagem,
destacando-se as que vieram para as pantalhas da comunicação social: a alegada festa
opípara no dia das canonizações de João XXIII e João Paulo II e as questões
económicas protagonizadas pelo cardeal Bertone, atualmente sob estudo. O Papa
refere a advertência do Mestre sobre a inevitabilidade da existência dos escândalos.
Todavia, evoca o trabalho levado a cabo na reformulação da missão e estratégia
do IOR, acentuando que foram encerradas quase dois milhares de contas tituladas
por pessoas e entidades que não tinham direito a elas, bem como o esforço de
reordenamento das finanças vaticanas através da criação e entrada em funcionamento
da Secretaria de Economia, que levará por diante as reformas aconselhadas pelas
comissões de estudo das finanças. Mesmo assim, Francisco alerta para a necessidade
de atenção à continuidade das reformas e à nossa condição de pecadores e de
pessoas débeis.
Sobre a necessidade de purificação da
Igreja, a dificuldade é a mesma – a condição de pecadores e de débeis dos homens
da Igreja. Todavia, o fenómeno gravíssimo do abuso sexual de menores constitui
por parte de clérigos, segundo o Papa, uma traição, que ele carateriza:
Atraiçoa o corpo do Senhor porque estes sacerdotes que
devem conduzir este menino, esta menina, este rapaz, esta rapariga à santidade,
e este menino e esta menina confiam. E estes sacerdotes, em vez de os encaminharem
à santidade, abusam. E isto é gravíssimo. É como… Far-vos-ei uma comparação: é
como uma missa negra, por exemplo: tu tens que levá-lo (ao menino) à santidade
e leva-lo a um problema que vai durar toda a vida.
Assegura o Papa que, nestas coisas,
não há “filhos de papá”. Todos têm de ser punidos – abusadores e encobridores –
há, pois, vários casos sob investigação e deve prestar-se toda a colaboração às
autoridades civis. Não deixa de sublinhar que se trata de um crime hediondo existente
em muitos lugares, mas que lhe interessa sobremodo o que se passa em Igreja.
É também o homem manipulado pelo seu
egotismo, pelos interesses, que se tem tornado o grande obstáculo à paz, à paz
duradoura e também em Jerusalém. A isto, Francisco diz:
A Igreja Católica já estabeleceu a sua posição do ponto
de vista religioso: a cidade da paz, das três religiões. Porém, as medidas concretas
de paz devem resultar de negociação […] Creio que se deve negociar com honestidade,
fraternidade e muita confiança. Necessita-se de valentia para isto e eu rezo
muito para que estes dirigentes tenham a valentia de percorrer o caminho da paz.
Provavelmente será o ego histórico de homens que
prefere a observância das regras burocráticas e rubricistas ou a multiplicação
das comunidades sem a celebração eucarística a atender ao essencial e a, por
exemplo, colocar com franqueza as cartas na mesa da discussão sobre a
obrigatoriedade do celibato eclesiástico como condição de ingresso no sacerdócio
na Igreja Latina. Se, como todos referem, se trata de questão disciplinar (e
não dogmática), estude-se a sério e passem-se das palavras aos atos,
evidentemente sem deixar de salientar as vantagens teológicas e espirituais da
opção também por sacerdócio celibatário, tal como em Igreja há, tem havido e
creio continuar a haver a abundância das pessoas (homens e mulheres)
consagradas na observância dos valores evangélicos da pobreza, obediência e
castidade
Evidentemente que o obstáculo à reforma contínua da Igreja
e do Estado será sempre um ou mais “eus”.
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