domingo, 25 de maio de 2014

A parábola do pai e dos dois filhos

O contexto da parábola
O Evangelho de Lucas, no seu capítulo 15, apresenta-nos as três parábolas da misericórdia divina (vd Lc 15,1-32). O Novum Testamentum, em grego e latim, com aparato crítico de Augustinus Meerk, S.I. (9.ª ed., de 1964) dá a este capítulo a designação genérica de parabolae misericordiae divinae, sem qualquer designação subtitular para cada uma das suas três parábolas.
Convém referir que estas parábolas vêm contextuadas pelos dois primeiros versículos do seguinte teor: “Ora aproximavam-se dele os publicanos e pecadores, todos para O ouvirem. E os fariseus e os escribas murmuravam entre si dizendo: este acolhe os pecadores e come com eles.” (Lc 5,1-2).
Como pode ver-se pelo início da perícopa, há dois grupos diferentes com atitudes opostas: os que se aproximavam para escuta do Mestre, os considerados fora da Lei e, consequentemente, da Salvação, os publicanos (telónai, funcionários públicos, cobradores de impostos) e os pecadores (amartolói, apontados a dedo por todos); mas os fariseus ou se aproximavam ou ficavam à distância, só para murmurarem ou, noutras circunstâncias, para O experimentarem ou tentarem (cf Mt 22,18.35).
Perante este cenário, Jesus desafia-os com a parábola que é consensualmente denominada da “ovelha perdida” e, em alternativa, com a parábola conhecida como da “dracma perdida”.
E, ao colocar palavras de exultação e convite à alegria na boca do pastor que encontra a sua ovelha e na da mulher que encontra a sua dracma, o Mestre dá asas à afirmação da misericórdia divina: “Digo-vos que assim haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento” (Lc 15,7); e “Assim vos digo que há alegria diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende” (Lc 15,10). A alegria por um pecador que se converte é enorme no céu e, em especial, diante dos anjos de Deus.
Como se referiu, a susodita versão do Novo Testamento não subtitula cada uma das parábolas. As designações referidas são comuns a muitas traduções dos evangelhos, que contêm tais designações. A designação não consensual refere-se à terceira parábola, que muitos designam como do “filho pródigo”, alguns designam por “os dois filhos: filho pródigo e o filho fiel”, outros designam, por “os dois filhos” e outros, ainda, por “a parábola do homem que tinha dois filhos”.
Convém advertir que a denominação de “filho pródigo” ou a contraposição entre “filho pródigo” e “filho fiel” é conotativa de um pré-juízo valorativo de sentido negativo sobre um, e só um, dos filhos, o que é perverso numa boa leitura da Bíblia, sobretudo se não houver abertura de espírito para acolher a lição que o Mestre quis veicular com a parábola. Deixo, desde já, aqui a minha homenagem ao Padre José Paula que me abriu os ouvidos para a releitura desta parábola.
É outrossim de chamar a atenção para a não legitimidade, sugerida por algumas traduções, de se concluir que se trata de mero aditamento às outras duas parábolas. Assim, não podemos contentar-nos com um “disse ainda”, no sentido de acrescentar; teremos talvez, de considerar as anteriores parábolas, formuladas em termos de desafio, como propedêutica para a escuta da grande parábola da misericórdia. A versão grega na obra suso citada inicia-se por “eipen de” como se fora perícopa autónoma (ou seja, com uma mensagem específica, embora no contexto global da misericórdia) – o que é corroborado pela versão latina “ait autem” (porém, disse).
As primeiras parábolas surgem no esquema de pergunta-resposta-ensinamento. Porém, a terceira aparece como uma narrativa estruturada com narrador, espaços diversos e contrastantes, várias personagens (sendo uma delas estruturante da narrativa) e uma ação servida por ações prévias e ações subsequentes. Não há já perdida ovelha ou dracma (que foram finalmente reencontradas) mais valiosa que o filho perdido que se reencontrou, pelo que o ensinamento já não remeterá para o ambiente de céu futuro, mas para o agir do hoje, aqui e agora, já: “Mas nós tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto” (necrós én) – e não só perdido como a ovelha ou a dracma – “e voltou à vida; estava desaparecido” – neste aspeto, partilhava da situação da ovelha e da dracma, embora muito mais importante – “e foi encontrado”.


A análise da parábola
Um homem tinha dois filhos” (15,11) – e não só um ou mais – o que bem podia suceder. Poderiam ser mais, mas dois bastam para o ensinamento que a parábola transmite.
O mais novo disse ao pai: Pai, dá-me a parte da fortuna que me pertence. E ele repartiu por eles a fortuna” (15,12). Como, para que ou porque é que o filho mais novo se arrogou o direito de exigir os bens tendo lugar na casa paterna e com o pai ainda vivo? Porém, o pai não o questionou. Cedeu, mas dividiu a fortuna pelos dois filhos, embora só um o tenha exigido. Este pai é justo na sua liberalidade (não é liberalismo!) e distribui igualmente pelos dois sem inquirir o que vai cada um fazer com a fortuna. É um pai que respeita a liberdade dos filhos, mesmo que ela ostente o capricho de mocidade ou leve a correr riscos, confiando que os filhos são responsáveis na sua maioridade e maturidade.
E, poucos dias depois, o filho mais novo, ajuntando tudo, partiu para uma longínqua região, e ali desperdiçou os seus bens, vivendo dissolutamente” (15,13) – grego, asótos; latim, luxuriose). Esta partida foi à revelia do pai, ao “deus-dará”, e não concertada com ele (apedémesen, no grego, e peregre profectus est, no latim. Há um afastamento por rutura; e não simples partida, abiit). O narrador diz só o que refere o versículo e não mais. Veremos, adiante, de que será acusado o filho moço, por inveja.
E, havendo ele gastado tudo, houve naquela região uma grande fome, e ele começou a padecer necessidades. E foi, e chegou-se a um dos cidadãos daquela terra, o qual o mandou para os seus campos, a apascentar porcos. E desejava encher o seu estômago com as alfarrobas que os porcos comiam, e ninguém lhas dava” (15,14-16).
Não haja dúvidas de que a vida dissoluta conduz à falência total em menos tempo do que se imagina. E, na abundância, todos se fazem amigos e se acercam parasitariamente do perdulário, sugando-o até ao tutano. Ele não disse ao pai que iria malbaratar a fortuna ou inventar melhor forma de a rentabilizar. Uma vez caído em desgraça, o antigo rico, que, em vez de amealhar e continuar a trabalhar, de tudo se foi desfazendo, tornando-se agora um dos novos pobres e mesmo miseráveis, ninguém olha para ele. Se lhe dão trabalho, será do que mais ninguém quer fazer, como, por exemplo, guardar porcos. Mais: exige-se que nada falte aos animais, mesmo que à pessoa tudo falte. Os animais são quem tem os seus direitos; os dos homens não são absolutos, podem ceder em situação de necessidade. Se lhe dessem as alfarrobas, talvez se habituasse à situação de miséria. De resto, como é que se entenderia que as pessoas se tornem impenitentes e de coração empedernido?
Ora, isto não é o abstrato da parábola. Aconteceu outrora e continua a acontecer, como consequência do pecado pessoal, que leva à degradação da pessoa humana; e acontece como estrutura social e comunitária de pecado pelo abandono ostensivo (ou dissimulado) de quem precisa, pelo compromisso em posturas de opressão, repressão e escravização (pense-se na exploração laboral e na exploração sexual, no tráfico de pessoas e de órgãos, no falacioso aliciamento migratório para situações enganosas, alegadamente de trabalho bem pago).
Mas haja Deus. Porém, caindo em si, disse: Quantos jornaleiros de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui morro de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e perante ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus jornaleiros.” (15,17-19).
Teve atitude sensata: não se agarrou à lama da miséria; teve um baque de lucidez. Reconhecendo a vida misérrima (o que falta a muitos que pecam), reconhece o desafogo e até a liberdade com que os trabalhadores do pai vivem, apesar de não terem fortuna própria. Então, decide-se por uma postura correta, totalmente contrária à arrogância. Propõe-se partir e abeirar-se do pai, com a humildade de quem pecou. Não se esqueçam as duas dimensões do pecado – contra Deus (contra o céu) e contra as pessoas (contra ti). Mas o pecador, o prófugo, sabe que já não é digno da filiação em relação ao pai que abandonou e aceita que ele o possa vir a tratar como jornaleiro (porém, não como um jornaleiro qualquer, mas com pelo menos a dignidade de jornaleiro de seu pai), como veremos o pai não terá este entendimento da ética dos mínimos, aplicada ao filho.
E, levantando-se, foi ter com seu pai; e, quando ainda estava longe, seu pai viu-o, moveu-se de íntima compaixão e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e beijou-o. E o filho disse-lhe: Pai, pequei contra o céu e perante ti, e já não sou digno de ser chamado teu filho. Mas o pai disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa; e vesti-lha; ponde-lhe um anel na mão e calçado nos pés. Trazei o vitelo gordo, matai-o e comamos em festa. Porque este meu filho estava morto e voltou à vida; estava perdido e encontrou-se. E começaram a alegrar-se.” (15,20-24).
Foi consequente com o propósito tomado em boa hora: se bem o pensou, melhor o fez, tornando-se o modelo do regresso à casa paterna. Por seu turno, o pai não se limitou a esperá-lo no seu cadeirão ou, como fazem tantos hoje como dantes, a pensar no ajuste de contas, a exigir reparação pela ofensa ao nome do pai, à honra da casa paterna ou a trabalhar até pagar os prejuízos. Não inquiriu como gastou, com quem andou, o que fez, o que lhe fizeram. Não lhe devassou o passado recente! Compadecido correu ao seu encontro. E não teve pejo de o beijar, nem pesquisou se havia vestígios de contactos suspeitos ou doenças contagiosas. Mas deixou que o filho se reconhecesse pecador e como que sem direito a chamar-se seu filho. O pai não perdeu a lucidez com a comoção, tanto assim que não deixou que o filho completasse o discurso. Na casa deste pai, os filhos, mesmo que não o merecessem, nunca deixam de ser filhos. Quantos pais haverá com esta dotação de lucidez misericordiosa. É óbvio que este extraordinário pai não pode ser outro que não o nosso Deus, que não tem vergonha nem medo de mostrar a compaixão. Porém, pródigos há muitos, mas não como este: só o imitam na fuga e não na dinâmica do regresso, porque não querem humilde e lucidamente dar o braço a torcer. Não fizeram nada de mal (Não tenho pecados, não mato nem roubo…; eu tenho a consciência tranquila), não querem confessar a culpa ou não querem emendar-se.
O pai fez subitamente gravitar toda a casa em torno do filho regressado: roupa própria de filho, anel no dedo, matança do vitelo gordo, música e danças. E a festa começou de imediato, sem burocracias!
***
Mas o filho mais velho estava no campo. Quando, de regresso, ouviu música e sentiu as danças, chamou um dos moços e inquiriu sobre o acontecido. É que chegou o teu irmão – respondeu naturalmente – e teu pai matou o vitelo gordo, porque ele regressou com saúde. Ele ficou irritado e não queria entrar e alinhar na festa” (15,25-28a).
Esta é a lógica do filho mais velho, que se tem por fiel e dedicado, o invejoso que fica triste com as mercês feitas ao desgraçado do irmão, que, na ótica do zeloso, a nada tem direito, nem à saúde nem à vida. Por isso, face a um herege e pecador, a festa era ilegítima, ilegal ou desproporcionada. Não estava para alinhar com atos de injustiça e impiedade. Quanto maior distância melhor, não venha o pecador contaminar-nos com a lepra do seu pecado!
“Mas o pai, vindo cá fora, instava com ele. Mas ele, respondendo, disse ao pai: há tantos anos que te sirvo, nunca transgredi uma ordem tua, e tu nunca me deste um cabrito para me banquetear com os meus amigos; mas, depois que chegou esse teu filho, que desperdiçou os teus bens com as meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo.” (15,28b-30).
Notem-se as recorrentes adversativas “mas” ou equivalentes, conforme a tradução, a opor a atitude e discurso paternos à postura agora rebelde do filho mais velho, que se enaltece a si e acusa irmão e pai. Enaltece-se a si: serviu-o há tantos anos, como se não se tratasse de pai, mas de patrão. Nunca transgrediu uma ordem, como se a relação fosse a de déspota prepotente para com o súbdito timorato. Um autoenaltecimento desviante, portanto. Mentindo, acusa o pai (que lhe dá tudo, inclusive repartiu igualmente com ele a fortuna), que nunca lhe dera um cabrito para as farras a que tinha direito (porque este tinha todos os direitos e alegadamente foram-lhe sonegados). E exagera, por mal de inveja, os erros do irmão (que não trata por irmão, mas despicientemente por filho do pai, “esse teu filho”), que desbaratou “todos os teus bens” (os bens, na sua ótica de falso zelo eram do pai) com meretrizes (aqui inventou: o narrador novo fala em vida dissoluta, que não especifica; mas o irmão mais velho, talvez por experiência própria, sabe acusar, mas não sabe reconhecer seus erros nem sua inveja mentirosa e demolidora). E agora, por vontade, de legalidade duvidosa, do pai, teve direito ao vitelo gordo, que todos os da casa bem identificam e que o filho dito fiel também queria para si ou queria que não fosse para ninguém, na perspetiva egotista de que aquilo que não é para mim não pode ser para ninguém.
“Mas o pai, ele próprio lhe disse: Filho, tu sempre estás comigo, e todas as minhas coisas são tuas. Porém, era justo alegrarmo-nos e folgarmos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; tinha-se perdido, e achou-se. (15,31-32).
O pai não se deixou levar pelo ódio da inveja do “beato”, mas também não o esconjurou nem se irritou. E, com lídima lucidez e a constância da paciência de que um verdadeiro pai é dotado, explicou-se. Continuou a chamar-lhe “filho” e a assegurar que as coisas do pai são do filho, pelo que é importante sublinhar a excelência desta vida em comum de filho e pai. Mas tinha de haver festa, não pelo pecado do irmão. O pródigo, queira-o ou não o mais velho, continua a ser irmão, “este teu irmão”, este bem próximo. A festa, o anel, a roupa nova justificam-se e impõem-se não pelo abandono de há anos ou meses, semanas ou dias, mas como acolhimento inclusivo e mercê pelo regresso, reencontro, reinserção.

Considerações finais
Na parábola é de relevar em primeiro lugar, a magnanimidade e liberalidade equânimes deste pai excecional, que é Deus. Depois, vem a arrogância de quem se sente com direito a tudo, tudo exige e tudo desbarata irresponsavelmente. Vem, a seguir, a capacidade de lucidamente repensar a situação e a coragem de sair dela, reconhecendo erros e humildemente os declarando a quem deve essa declaração, na disposição de aceitar incondicionalmente as consequências.
Enfim, deve salientar-se a iniquidade da inveja excludente e acusatória de tudo e todos por parte dos “bons”.
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A sociedade e a Igreja estão cheias de pródigos a quem todos apontam o dedo. Porem, é provável que o número de “filhos mais velhos”, alegadamente carregados de zelo e de também experiência, iguale o número daqueles. E não podemos olvidar que a inveja das mercês que Deus faz a outrem é um pecado contra o Espírito Santo, tão nefasto como o da impenitência final. Por outro lado, à magnanimidade de Deus deve corresponder-se com a postura do acolhimento e da inclusão, da abertura de portas, da saída ao encontro de quem não comparece alapado no erro, miséria ou opressão. E não vale a pena fazer longe o exercício da pesquisa sobre onde estão o pródigo e o presumível fiel. Interessa saber refletir se cada um de nós é um ou outro ou em que medida cada um é falsamente fiel ou efetivamente pródigo.
E, sobretudo, pensemos no perfil magnânimo e equânime do “pai” da parábola e no seu discurso acolhedor, lúcido e paciente! Haja menos julgamento e mais reflexão/ação/reflexão… 

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