O contexto da parábola
O Evangelho de Lucas, no seu capítulo
15, apresenta-nos as três parábolas da misericórdia divina (vd Lc 15,1-32). O Novum Testamentum, em grego e latim, com
aparato crítico de Augustinus Meerk, S.I. (9.ª ed., de 1964) dá a este capítulo
a designação genérica de parabolae
misericordiae divinae, sem qualquer designação subtitular para cada uma das
suas três parábolas.
Convém referir que estas parábolas
vêm contextuadas pelos dois primeiros versículos do seguinte teor: “Ora
aproximavam-se dele os publicanos e pecadores, todos para O ouvirem. E os fariseus e os escribas murmuravam entre si dizendo:
este acolhe os pecadores e come com eles.” (Lc 5,1-2).
Como pode ver-se
pelo início da perícopa, há dois grupos diferentes com atitudes opostas: os que
se aproximavam para escuta do Mestre, os considerados fora da Lei e,
consequentemente, da Salvação, os publicanos (telónai, funcionários
públicos, cobradores de impostos) e os pecadores (amartolói, apontados a dedo por todos); mas os fariseus
ou se aproximavam ou ficavam à distância, só para murmurarem ou, noutras
circunstâncias, para O experimentarem ou tentarem (cf Mt 22,18.35).
Perante este
cenário, Jesus desafia-os com a parábola que é consensualmente denominada da
“ovelha perdida” e, em alternativa, com a parábola conhecida como da “dracma
perdida”.
E, ao colocar
palavras de exultação e convite à alegria na boca do pastor que encontra a sua
ovelha e na da mulher que encontra a sua dracma, o Mestre dá asas à afirmação
da misericórdia divina: “Digo-vos que assim haverá alegria no céu por um
pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não
necessitam de arrependimento” (Lc 15,7); e “Assim vos digo que há alegria
diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende” (Lc 15,10). A alegria
por um pecador que se converte é enorme no céu e, em especial, diante dos anjos
de Deus.
Como se referiu, a
susodita versão do Novo Testamento não subtitula cada uma das parábolas. As
designações referidas são comuns a muitas traduções dos evangelhos, que contêm tais
designações. A designação não consensual refere-se à terceira parábola, que
muitos designam como do “filho pródigo”, alguns designam por “os dois filhos:
filho pródigo e o filho fiel”, outros designam, por “os dois filhos” e outros,
ainda, por “a parábola do homem que tinha dois filhos”.
Convém advertir que
a denominação de “filho pródigo” ou a contraposição entre “filho pródigo” e
“filho fiel” é conotativa de um pré-juízo valorativo de sentido negativo sobre
um, e só um, dos filhos, o que é perverso numa boa leitura da Bíblia, sobretudo
se não houver abertura de espírito para acolher a lição que o Mestre quis
veicular com a parábola. Deixo, desde já, aqui a minha homenagem ao Padre José
Paula que me abriu os ouvidos para a releitura desta parábola.
É outrossim de
chamar a atenção para a não legitimidade, sugerida por algumas traduções, de se
concluir que se trata de mero aditamento às outras duas parábolas. Assim, não
podemos contentar-nos com um “disse ainda”, no sentido de acrescentar; teremos
talvez, de considerar as anteriores parábolas, formuladas em termos de desafio,
como propedêutica para a escuta da grande parábola da misericórdia. A versão
grega na obra suso citada inicia-se por “eipen
de” como se fora perícopa autónoma (ou seja, com uma mensagem específica,
embora no contexto global da misericórdia) – o que é corroborado pela versão
latina “ait autem” (porém, disse).
As primeiras
parábolas surgem no esquema de pergunta-resposta-ensinamento. Porém, a terceira
aparece como uma narrativa estruturada com narrador, espaços diversos e
contrastantes, várias personagens (sendo uma delas estruturante da narrativa) e
uma ação servida por ações prévias e ações subsequentes. Não há já perdida
ovelha ou dracma (que foram finalmente reencontradas) mais valiosa que o filho
perdido que se reencontrou, pelo que o ensinamento já não remeterá para o
ambiente de céu futuro, mas para o agir do hoje, aqui e agora, já: “Mas nós
tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto”
(necrós én) – e não só perdido como a
ovelha ou a dracma – “e voltou à vida; estava desaparecido” – neste aspeto,
partilhava da situação da ovelha e da dracma, embora muito mais importante – “e
foi encontrado”.
A análise da
parábola
“Um homem tinha dois filhos” (15,11) – e não só um ou mais – o que bem podia
suceder. Poderiam ser mais, mas dois bastam para o ensinamento que a parábola
transmite.
“O mais novo disse ao pai: Pai, dá-me a parte da fortuna que me
pertence. E ele repartiu por eles a fortuna” (15,12). Como, para que ou
porque é que o filho mais novo se arrogou o direito de exigir os bens tendo
lugar na casa paterna e com o pai ainda vivo? Porém, o pai não o questionou.
Cedeu, mas dividiu a fortuna pelos dois filhos, embora só um o tenha exigido.
Este pai é justo na sua liberalidade (não é liberalismo!) e distribui
igualmente pelos dois sem inquirir o que vai cada um fazer com a fortuna. É um
pai que respeita a liberdade dos filhos, mesmo que ela ostente o capricho de
mocidade ou leve a correr riscos, confiando que os filhos são responsáveis na
sua maioridade e maturidade.
“E, poucos dias depois, o filho mais novo, ajuntando tudo, partiu para
uma longínqua região, e ali desperdiçou os seus bens, vivendo dissolutamente”
(15,13) – grego, asótos; latim, luxuriose). Esta partida foi à revelia do pai, ao
“deus-dará”, e não concertada com ele (apedémesen, no grego, e peregre profectus est, no latim. Há um afastamento
por rutura; e não simples partida, abiit). O narrador diz só o
que refere o versículo e não mais. Veremos, adiante, de que será acusado o
filho moço, por inveja.
“E, havendo ele gastado tudo, houve naquela região uma grande fome, e
ele começou a padecer necessidades. E foi, e chegou-se a um dos cidadãos
daquela terra, o qual o mandou para os seus campos, a apascentar porcos. E
desejava encher o seu estômago com as alfarrobas que os porcos comiam, e
ninguém lhas dava” (15,14-16).
Não haja dúvidas de
que a vida dissoluta conduz à falência total em menos tempo do que se imagina.
E, na abundância, todos se fazem amigos e se acercam parasitariamente do
perdulário, sugando-o até ao tutano. Ele não disse ao pai que iria malbaratar a
fortuna ou inventar melhor forma de a rentabilizar. Uma vez caído em desgraça,
o antigo rico, que, em vez de amealhar e continuar a trabalhar, de tudo se foi
desfazendo, tornando-se agora um dos novos pobres e mesmo miseráveis, ninguém
olha para ele. Se lhe dão trabalho, será do que mais ninguém quer fazer, como,
por exemplo, guardar porcos. Mais: exige-se que nada falte aos animais, mesmo
que à pessoa tudo falte. Os animais são quem tem os seus direitos; os dos
homens não são absolutos, podem ceder em situação de necessidade. Se lhe dessem
as alfarrobas, talvez se habituasse à situação de miséria. De resto, como é que
se entenderia que as pessoas se tornem impenitentes e de coração empedernido?
Ora, isto não é o
abstrato da parábola. Aconteceu outrora e continua a acontecer, como
consequência do pecado pessoal, que leva à degradação da pessoa humana; e
acontece como estrutura social e comunitária de pecado pelo abandono ostensivo
(ou dissimulado) de quem precisa, pelo compromisso em posturas de opressão,
repressão e escravização (pense-se na exploração laboral e na exploração
sexual, no tráfico de pessoas e de órgãos, no falacioso aliciamento migratório
para situações enganosas, alegadamente de trabalho bem pago).
Mas haja Deus. “Porém, caindo em si, disse: Quantos jornaleiros de meu pai têm
abundância de pão, e eu aqui morro de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com meu
pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e perante ti. Já não sou digno de
ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus jornaleiros.” (15,17-19).
Teve atitude
sensata: não se agarrou à lama da miséria; teve um baque de lucidez.
Reconhecendo a vida misérrima (o que falta a muitos que pecam), reconhece o
desafogo e até a liberdade com que os trabalhadores do pai vivem, apesar de não
terem fortuna própria. Então, decide-se por uma postura correta, totalmente
contrária à arrogância. Propõe-se partir e abeirar-se do pai, com a humildade
de quem pecou. Não se esqueçam as duas dimensões do pecado – contra Deus
(contra o céu) e contra as pessoas (contra ti). Mas o pecador, o prófugo, sabe
que já não é digno da filiação em relação ao pai que abandonou e aceita que ele
o possa vir a tratar como jornaleiro (porém, não como um jornaleiro qualquer,
mas com pelo menos a dignidade de jornaleiro de seu pai), como veremos o pai
não terá este entendimento da ética dos mínimos, aplicada ao filho.
“E, levantando-se, foi ter com seu pai; e, quando ainda estava longe,
seu pai viu-o, moveu-se de íntima compaixão e, correndo, lançou-se-lhe ao
pescoço e beijou-o. E o filho disse-lhe: Pai, pequei contra o céu e perante ti,
e já não sou digno de ser chamado teu filho. Mas o pai disse aos seus servos:
Trazei depressa a melhor roupa; e vesti-lha; ponde-lhe um anel na mão e calçado
nos pés. Trazei o vitelo gordo, matai-o e comamos em festa. Porque este meu filho estava morto e voltou à vida;
estava perdido e encontrou-se. E começaram a alegrar-se.” (15,20-24).
Foi consequente com
o propósito tomado em boa hora: se bem o pensou, melhor o fez, tornando-se o
modelo do regresso à casa paterna. Por seu turno, o pai não se limitou a
esperá-lo no seu cadeirão ou, como fazem tantos hoje como dantes, a pensar no
ajuste de contas, a exigir reparação pela ofensa ao nome do pai, à honra da
casa paterna ou a trabalhar até pagar os prejuízos. Não inquiriu como gastou,
com quem andou, o que fez, o que lhe fizeram. Não lhe devassou o passado recente! Compadecido correu ao seu
encontro. E não teve pejo de o beijar, nem pesquisou se havia vestígios de
contactos suspeitos ou doenças contagiosas. Mas deixou que o filho se
reconhecesse pecador e como que sem direito a chamar-se seu filho. O pai não
perdeu a lucidez com a comoção, tanto assim que não deixou que o filho
completasse o discurso. Na casa deste pai, os filhos, mesmo que não o
merecessem, nunca deixam de ser filhos. Quantos pais haverá com esta dotação de
lucidez misericordiosa. É óbvio que este extraordinário pai não pode ser outro
que não o nosso Deus, que não tem vergonha nem medo de mostrar a compaixão.
Porém, pródigos há muitos, mas não como este: só o imitam na fuga e não na
dinâmica do regresso, porque não querem humilde e lucidamente dar o braço a
torcer. Não fizeram nada de mal (Não tenho pecados, não mato nem roubo…; eu
tenho a consciência tranquila), não querem confessar a culpa ou não querem
emendar-se.
O pai fez
subitamente gravitar toda a casa em torno do filho regressado: roupa própria de
filho, anel no dedo, matança do vitelo gordo, música e danças. E a festa
começou de imediato, sem burocracias!
***
“Mas o filho mais velho estava no campo. Quando, de regresso, ouviu
música e sentiu as danças, chamou um dos moços e inquiriu sobre o acontecido. É
que chegou o teu irmão – respondeu naturalmente – e teu pai matou o vitelo
gordo, porque ele regressou com saúde. Ele ficou irritado e não queria entrar e
alinhar na festa” (15,25-28a).
Esta é a lógica do
filho mais velho, que se tem por fiel e dedicado, o invejoso que fica triste
com as mercês feitas ao desgraçado do irmão, que, na ótica do zeloso, a nada
tem direito, nem à saúde nem à vida. Por isso, face a um herege e pecador, a
festa era ilegítima, ilegal ou desproporcionada. Não estava para alinhar com
atos de injustiça e impiedade. Quanto maior distância melhor, não venha o
pecador contaminar-nos com a lepra do seu pecado!
“Mas o
pai, vindo cá fora, instava com ele. Mas ele, respondendo, disse ao pai: há
tantos anos que te sirvo, nunca transgredi uma ordem tua, e tu nunca me deste
um cabrito para me banquetear com os meus amigos; mas, depois que chegou
esse teu filho, que desperdiçou os teus bens com as meretrizes, mataste-lhe o
vitelo gordo.” (15,28b-30).
Notem-se as recorrentes
adversativas “mas” ou equivalentes, conforme a tradução, a opor a atitude e discurso
paternos à postura agora rebelde do filho mais velho, que se enaltece a si e
acusa irmão e pai. Enaltece-se a si: serviu-o há tantos anos, como se não se tratasse
de pai, mas de patrão. Nunca transgrediu uma ordem, como se a relação fosse a
de déspota prepotente para com o súbdito timorato. Um autoenaltecimento
desviante, portanto. Mentindo, acusa o pai (que lhe dá tudo, inclusive repartiu
igualmente com ele a fortuna), que nunca lhe dera um cabrito para as farras a
que tinha direito (porque este tinha todos os direitos e alegadamente foram-lhe
sonegados). E exagera, por mal de inveja, os erros do irmão (que não trata por
irmão, mas despicientemente por filho do
pai, “esse teu filho”), que desbaratou “todos os teus bens” (os bens, na
sua ótica de falso zelo eram do pai) com meretrizes (aqui inventou: o narrador novo fala em
vida dissoluta, que não especifica; mas o irmão mais velho, talvez por
experiência própria, sabe acusar, mas não sabe reconhecer seus erros nem sua
inveja mentirosa e demolidora). E agora, por vontade, de legalidade duvidosa, do pai,
teve direito ao vitelo gordo, que todos os da casa bem identificam e que o
filho dito fiel também queria para si ou queria que não fosse para ninguém, na
perspetiva egotista de que aquilo que não é para mim não pode ser para ninguém.
“Mas o
pai, ele próprio lhe disse: Filho, tu sempre estás comigo, e todas as minhas
coisas são tuas. Porém, era justo alegrarmo-nos e folgarmos, porque este teu
irmão estava morto e reviveu; tinha-se perdido, e achou-se. (15,31-32).
O pai
não se deixou levar pelo ódio da inveja do “beato”, mas também não o esconjurou
nem se irritou. E, com lídima lucidez e a constância da paciência de que um
verdadeiro pai é dotado, explicou-se. Continuou a chamar-lhe “filho” e a assegurar
que as coisas do pai são do filho, pelo que é importante sublinhar a excelência
desta vida em comum de filho e pai. Mas tinha de haver festa, não pelo pecado
do irmão. O pródigo, queira-o ou não o mais velho, continua a ser irmão, “este
teu irmão”, este bem próximo. A festa, o anel, a roupa nova justificam-se e
impõem-se não pelo abandono de há anos ou meses, semanas ou dias, mas como
acolhimento inclusivo e mercê pelo regresso, reencontro, reinserção.
Considerações
finais
Na parábola
é de relevar em primeiro lugar, a magnanimidade e liberalidade equânimes deste
pai excecional, que é Deus. Depois, vem a arrogância de quem se sente com direito
a tudo, tudo exige e tudo desbarata irresponsavelmente. Vem, a seguir, a
capacidade de lucidamente repensar a situação e a coragem de sair dela,
reconhecendo erros e humildemente os declarando a quem deve essa declaração, na
disposição de aceitar incondicionalmente as consequências.
Enfim,
deve salientar-se a iniquidade da inveja excludente e acusatória de tudo e
todos por parte dos “bons”.
+++
A sociedade
e a Igreja estão cheias de pródigos a quem todos apontam o dedo. Porem, é provável
que o número de “filhos mais velhos”, alegadamente carregados de zelo e de também
experiência, iguale o número daqueles. E não podemos olvidar que a inveja das
mercês que Deus faz a outrem é um pecado contra o Espírito Santo, tão nefasto
como o da impenitência final. Por outro lado, à magnanimidade de Deus deve corresponder-se
com a postura do acolhimento e da inclusão, da abertura de portas, da saída ao
encontro de quem não comparece alapado no erro, miséria ou opressão. E não vale
a pena fazer longe o exercício da pesquisa sobre onde estão o pródigo e o
presumível fiel. Interessa saber refletir se cada um de nós é um ou outro ou em
que medida cada um é falsamente fiel ou efetivamente pródigo.
E, sobretudo,
pensemos no perfil magnânimo e equânime do “pai” da parábola e no seu discurso
acolhedor, lúcido e paciente! Haja menos julgamento e mais reflexão/ação/reflexão…
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