Vai decorrer no Brasil o Mundial 2014
de Futebol, lá designado por Copa do Mundo. Certamente que todos queriam – e querem
– que este evento da “indústria da paz” decorresse na normalidade da vida social,
sem violência e sem obstrução dos direitos humanos.
Porém, a realidade tem-se revelado
bem mais dura e estranha, quer pelas medidas tomadas pelos poderes quer pela
onda de manifestações que tem percorrido o território deste grandes país e que
denunciam as situações de forte irregularidade social contra os mais vulneráveis.
Ninguém quererá abdicar das vantagens
deste evento à escala mundial, mas os brasileiros, aqueles que vivem a crueza
da realidade, ditada pelas assimetrias, pelas desigualdades, pela exploração,
que a cada passo se impõe como repressão, não podem bendizer uma iniciativa que
os espolia, que os instrumentaliza em nome da beleza de fachada do país. Inclusive,
soube-se que se organizaram cursos de inglês para determinados grupos sociais de
previsível contacto com os turistas, em que se inserem as prostitutas, mas
negados, pelos vistos, aos taxistas.
Na sequência de mensagem oportunamente
a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), divulgou, através do
Departamento de Pastoral do Turismo, um folheto ou desdobrável sob o título Copa do Mundo, Dignidade e Paz, preparado
pela Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da
Paz, e em que, numa perspetiva de contribuição para o debate, denunciam com
preocupação as seguintes situações clamorosas que acompanham a preparação e realização
da Copa, que sintetizamos assim:
Situações clamorosas
Exclusão de milhares de cidadãos da informação e da participação nos processos
decisórios sobre as obras atinentes à copa; remoção de famílias e comunidades
para a construção dos estádios e vias de comunicação, com a violação do direito
de moradia em comunidades e bairros populares; aprofundamento das desigualdades
urbanas e a degradação ambiental; apropriação do desporto por privados e
grandes corporações, em quem os governos vêm delegam responsabilidades
públicas; desrespeito da legislação e do direito ambiental, laboral e do consumidor;
inversão das prioridades do dinheiro público, em detrimento da saúde, educação,
saneamento básico, transporte e segurança; institucionalidade progressiva do
regime de exceção, mediante decreto, medidas provisórias, portarias e
resoluções; e remoção de espaços sagrados das religiões.
Os bispos reconhecem no desporto um
direito humano de especial valor para uma vida saudável, que nenhum povo deve
negligenciar; e verificam que, de entre os diversos desportos, os brasileiros
nutrem inquestionável paixão pelo futebol. Assim se explica, segundo os prelados,
a expectativa e a alegria com que a maioria dos brasileiros aguarda a copa do
mundo, realizada no país pela segunda vez.
Por isso, garantem que, no quadro da fidelidade
à sua missão evangelizadora, a Igreja que milita no Brasil “acompanha, com
presença amorosa, materna e solidária”, este “grande evento que reunirá vários
países e protagonizará a oportunidade de um congraçamento universal, na alegria
que o desporto pode trazer ao espírito humano”. No entanto, advertem que o sucesso
do evento não se medirá pelos valores que injete na economia nacional ou pelos
lucros que proporcione aos patrocinadores, mas “na garantia de segurança para todos sem o uso da violência, no respeito
ao direito às pacíficas manifestações de rua, na criação de mecanismos que
impeçam o trabalho escravo, o tráfico humano e a exploração sexual, sobretudo
de pessoas socialmente vulneráveis, e combatam eficazmente o racismo e a violência”
(cf mensagem da CNBB para a Copa do Mundo).
A CNBB idealiza agora o Brasil como “um imenso campo de futebol sem arquibancadas nem camarotes”,
em que todos foram convocados e, por consequência, todos se devem sentir “titulares
do jogo da vida que não admite expectadores”, mas cuja “vitória de todos” só resultará,
se forem cumpridas exigências fundamentais, como aquelas, que, a segui, se
discriminam de forma sintética:
Exigências fundamentais
Garantia da permanência em suas localidades e da segurança para a vida de
todos os brasileiros e turistas, mas sobretudo das pessoas dos bairros
populares e pessoas em situação de rua; respeito integral da legislação laboral
e da proteção dos trabalhadores; proibição da perseguição a quem quer que trabalhe
em espaço público; promoção de ações eficazes contra “o trabalho escravo, o
tráfico humano e a exploração sexual, especialmente de crianças e adolescentes,
com punição exemplar e ágil para com os infratores”; não criminalização dos movimentos
sociais, com total respeito do direito às manifestações de rua; e respeito
integral dos direitos dos “torcedores” (claques) e consumidores.
Mas os bispos brasileiros vão mais
longe que denunciar situações de pecado social – expressas na espoliação,
exploração e repressão, motivadas pela sede insaciável do lucro e/ou pela
necessidade política de apresentar as melhores condições da Copa para impressionar
o mundo – ou definir condições para que o evento tenha verdadeiro sucesso. Eles
vêm empenhar os serviços de Igreja no compromisso sincero e eficaz a:
Tríplice compromisso
Acompanhar torcedores (claques) e jogadores nas suas solicitações de momentos
de espiritualidade e encontro com Deus e dar testemunho de uma presença orante
durante toda a copa; acompanhar as populações vulneráveis, especialmente aquelas
que vivem em situação de rua, para que não sejam retiradas dos logradouros
públicos durante a copa e posteriormente restituídas às ruas, como objetos que estorvam
o evento; e participar dos esforços por consciencialização dos visitantes, no
sentido de não praticarem o turismo sexual, mas serem presença que valorize a
dignidade humana e a confraternização universal.
***
Em síntese e de acordo com a agência Ecclesia, segundo os prelados
brasileiros, o êxito do Campeonato do Mundo de Futebol de 2014, em que estará
presente a seleção de Portugal, deve ser avaliado pela “garantia de segurança
para todos sem o uso da violência, no respeito pelo direito às pacíficas
manifestações de rua, na criação de mecanismos que impeçam o trabalho escravo,
o tráfico humano e a exploração sexual”.
A publicação do folheto suso referido,
preparada pela Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da
Justiça e da Paz, surgiu após encontros entre representantes das 12
cidades-sede do Mundial 2014 (12 de junho a 13 de julho).
A Igreja Católica do Brasil mostra,
nas suas palavras, verdadeiro ‘cartão vermelho’ à subtração de milhões (o
documento diz “milhares”) de cidadãos “ao direito à informação” e à
participação nos “processos decisórios sobre as obras” atinentes ao evento.
A hierarquia eclesiástica requer dos poderes
constituídos e seus agentes ações eficazes para evitar o trabalho escravo, o
tráfico humano e o turismo sexual, com “punição exemplar e ágil para com os
infratores”.
A CNBB, por seu turno, assume o real
e humilde compromisso de acompanhar adeptos e jogadores, em “momentos de
espiritualidade”, e de defender as populações “vulneráveis”, especialmente as
que vivem na rua.
O folheto/desdobrável retoma trechos
da mensagem da CNBB, ‘Jogando pela Vida’, divulgada no passado mês de março; e
os responsáveis católicos manifestam a sua solidariedade, em particular, “aos
que, por causa das obras da Copa, foram feridos na sua dignidade e visitados
pela dor da perda de entes queridos”. Também os bispos apelam à sociedade
brasileira para que adira ao projeto ‘Copa da Paz’ e à Campanha ‘Jogando a
favor da vida – denuncie o tráfico humano’, que têm a finalidade de trabalhar
para que o evento seja “lembrado como tempo de fortalecimento da cidadania”.
Finalmente, a Igreja Católica no
Brasil considera que “não é possível aceitar” que famílias e comunidades
inteiras tenham sido removidas para a construção de estádios e de outras obras
estruturantes, “numa clara violação” do direito à habitação, ou que este evento
de dimensão mundial “aprofunde as desigualdades urbanas e a degradação
ambiental”.
***
Trata-se de um documento que
reconhece a validade do desporto, a importância deste evento para o Brasil. No
entanto, os pobres correram riscos graves, cuja continuidade e agravamento há
que estancar e cujas consequências urge minorar. Para tanto, postula-se a
mobilização de todos. A Igreja manifesta nesta circunstância a lucidez dos
valores e a consciência da gravidade e extensão das situações de risco, a que
se pode obviar também pela leitura das manifestações de rua cuja legitimidade
não deve ser torpedeada. Mas a Igreja não pode deixar de disponibilizar o seu
serviço de solicitude pastoral e humanitária, pela dignidade da pessoa humana e
da vida por cuja pujança e abundância Cristo se doou.
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