O suave milagre
é um conto do grande Eça de Queirós. Não é líquido que Eça fosse crente a sério
ou que fosse descrente por moda ditada por alguma da intelectualidade da
segunda metade do século XIX. Seja como for, torna-se encantadora a leitura do
referido conto, como também a de outro conto Um milagre ainda mais suave.
Como é recorrente dizer-se, a maneira
de fazer política e os políticos parecem nada ou quase nada terem mudado em
relação ao tempo queirosiano. Sendo assim, não dá para perceber se o atual
governo acredita ou não em milagres, como, pela sua postura, não dá para se entender
se ele crê mesmo na validade da sua política. Porém, pretende que nós sejamos
crédulos nas palavras que nos dirige e cuja verdade se transmuta com a fluidez
dos dias. Neste quadro se perfila a chamada “saída limpa” do programa de
ajustamento, que de limpa só detém a designação, ou então está munida de um
cendal tão suave que ultrapassa em transparência aquele “cendal delgado” que
cobria, sem cobrir, “as partes” do corpo quase desnudo de Vénus quando se foi
queixar a Júpiter, seu Pai (cf Camões, Os
Lusíadas, II,37).
Se a limpeza consiste apenas em não
existir, à porta de saída, um programa formal cautelar de apoio às necessidades
financeiras do país, então trata-se de uma limpeza muito suave, sem a segurança
das garantias de que uma população precisa. Se nos custa a acreditar, vejamos:
Ainda em julho transato, o país foi
atravessado por uma profunda crise política, servida pelo bater de porta
esclarecedor de Gaspar, que se reconheceu incompetente para veicular o rumo das
finanças portuguesas, enroladas por uma economia que desejava crescer, mas que não
podia crescer; pelo anúncio da saída irrevogável de Portas, que voltou como
vice-primeiro-ministro, adornado com mais umas mordomias, de que resultou um
sucessivamente prometido e protelado inocente (talvez indecente quadre melhor)
guião de reforma do Estado, agora aditado de 120 medidas; por um ineficaz grito
presidencial de consenso, mesmo com a venda do prato de lentilhas da hipótese
da antecipação a prazo de eleições legislativas; por uma teimosia governativa
de Passos Coelho, que ironicamente veio a salvar a governação com uns retoques
de milagrosa cirurgia tópica.
E o serviço da dívida continuava a
aumentar, os portugueses a pagar e os mercados a vigiar…
Eis senão quando, quase por milagre
do governo, os juros da dívida entram em descida acentuada até chegarem ao
cumprimento da exigência profetizante de Rui Machete (quem não se lembra?) e os
mercados calaram-se. Porém, as sábias agências de rating, apesar da conclusão de que o país está melhor e de uma
ligeira subida do índice classificativo, continuam a manter a economia do país
na zona de lixo. Mais: o empréstimo da troika já custou ao país 3,4 mil milhões
em juros e a dívida externa triplicou (130% +). Os casos BPN (e em certa
medida BCP, BES, BANIF e CGD), que esfarelaram o país, ainda não estão apagados
da escalada devastadora das contas, antes pelo contrário. E o rasto dos
dinheiros privados e públicos sumiu.
Já depois do festival do comício
conselho de ministros alargado em vésperas de campanha eleitoral para as
eleições europeias, prenunciador de outro do género em plena campanha, já
legitimado pela CNE, ficámos a saber que: o FMI exige do governo uma carta de
intenções com uma série bem definida de compromissos por parte do Estado
atinentes à dívida, à disciplina orçamental e às reformas (cujo conteúdo não
foi comunicado ao principal partido da oposição e que os governantes porfiam
não conter surpresas); a troika continuará a proceder a avaliação periódica
(semestralmente) da situação do país até que a dívida esteja controlada (até
2030 +); a par da propalada reposição de 20% dos salários cortados aos
trabalhadores da Administração Pública e da substituição da CES (contribuição
extraordinária de solidariedade) dos aposentados e reformados pela permanente
TS (taxa de solidariedade), o escalão máximo do IVA terá um agravamento de
0,25% e a TSU dos trabalhadores um agravamento de 0,2%; e, se o TC se “portar
mal”, isto é, se declarar inconstitucionais as normas orçamentais (OE de 2014 e
orçamento retificativo) sujeitas a fiscalização sucessiva, maior aumento de
impostos virá (promessa de governante mor). Mas a linguagem ministerial
continua a pregar categoricamente que o DEO não comporta aumento de impostos,
explicando de forma inexplicada o inexplicável, embora as más línguas prenunciam
cortes alapados previstos para depois de 2015.
Entretanto, também ficámos a saber
que a saída foi à irlandesa por escolha meramente formal do governo, porque os
parceiros europeus, em tempo de campanha eleitoral para as eleições europeias,
não estavam disponíveis para a negociação de qualquer programa cautelar, até
porque alguns, como a Alemanha e a Finlândia, tinham que submeter aos
respetivos parlamentos estaduais a eventual opção de ajuda a países-membros em
dificuldade (tal como aconteceria – afinal, acabou por saber-se – com a saída
da Irlanda do seu programa de resgate). Ficámos a saber que, embora as
avaliações da troika tenham sido todas positivas (era essa a declaração formal e
informal; mesmo aquela que só foi resolvida num 13 de maio acabou por ser tida
como positiva), não se cumpriram as metas do défice orçamental nem as da dívida.
O défice, esse baixou, não pelo lado da redução da despesa, mas do lado do
aumento de receita, sobretudo, graças a medidas extraordinárias, de que se
destacam, além da venda de património, a captação de fundos de pensões privados,
com o encargo de o Estado pagar as respetivas pensões futuras, o aumento brutal
de impostos, os cortes drásticos de salários, pensões e serviços, a redução
irracional de valências educativas e de saúde, o congelamento de progressões na
função pública. A dívida triplicou. As empresas públicas derraparam em milhares
e milhares de milhões, que o Estado tem de suportar à custa dos cidadãos. De resto,
as reformas estruturais não aconteceram: os equilíbrios são precários e nada
aponta para que venham a ter sustentabilidade.
Porém, os parceiros apoiaram, deram
os parabéns (vg o Presidente da Comissão Europeia e o Ministro das Finanças da
Alemanha), mas FMI, BCE e Comissão Europeia alertam para o facto de as dificuldades
não terem sido dissipadas. Até acontece que o FMI exige o compromisso de futuro
da parte do Estado Português e a Comissão Europeia relevantou o espantalho do perigo
das possíveis decisões do TC em não alinhamento com as opções governamentais e
parlamentares. E, a 17 de maio, o governo aprovará o documento de estratégia de
médio prazo.
Finalmente, a Comunicação Social
revelou, no passado fim de semana, que Philippe Legrain, conselheiro económico
independente de Durão Barroso até fevereiro
deste ano, diz em entrevista, que “as ajudas a Portugal e à Grécia foram
pensadas para resgatar”, sim, mas “os bancos alemães”. Pelo que dá por “incorreta
a narrativa que os alemães contaram a si próprios de que a crise do euro teve a
ver com o Sul a querer levar o dinheiro deles”.
O referido conselheiro económico assegura que o
empréstimo de dinheiro a uma Grécia insolvente transformou repentinamente os
maus empréstimos privados dos bancos em obrigações entre Governos. A inicial crise
bancária, que devia ter unido a Europa na limitação dos bancos, transmutou-se
em crise de dívida, que dividiu a Europa em países credores e países devedores,
passando as instituições europeias a instrumento dos credores na imposição da
vontade destes aos devedores. Apesar do elogio de sucesso, o programa de
resgate português não foi bem sucedido: “Portugal está bem pior do que antes do
programa, e a dívida privada não caiu”. A troika desempenhou “um papel
quase colonial” e sem controlo democrático, não no interesse europeu, mas no
dos credores de Portugal. E, “pior que tudo, impôs as políticas erradas”. “Isto
porque, em vez de enfrentar os problemas do setor bancário, a Europa entrou numa
corrida à austeridade coletiva que provocou recessões desnecessariamente longas
e tão severas que agravaram a situação das finanças públicas”.
Sobre a relação de Barroso com a crise e com a
solução, o economista explica:
O presidente Barroso teve a
abertura de espírito suficiente para perceber que os altos funcionários da
Comissão estavam a propor receitas erradas. Não conseguiram prever a crise e
revelaram-se incapazes de a resolver. Ele viu-me na televisão, leu o meu livro
anterior e pediu-me para trabalhar para ele como conselheiro, para lhe dar uma perspetiva
alternativa. O que foi corajoso, e a mim deu-me uma oportunidade para tentar
fazer a diferença. Infelizmente, apesar de termos tido muitas e boas conversas
em privado, os meus conselhos não foram seguidos. (vd Público, de 11-05-2014,
pgs 1.4-9).
Não deixa de ser irónico ter sido feito aos portugueses
durante três anos o discurso da inevitabilidade, do bom caminho e do
crescimento. Cresceu a pobreza e o número de pobres; diminuiu o número dos
ricos, mas estes ficaram mais ricos, sem que se tivesse criado mais riqueza. Cresceram
as exportações, que já parecem estar a diminuir; baixaram as importações, mercê
da diminuição drástica do consumo, as quais parecem estar a crescer novamente,
graças ao ligeiro aumento do consumo, em virtude de uma ligeira folga económica.
Aumentou assustadoramente a emigração de pessoas qualificadas e o desemprego,
com o aumento da precariedade – desemprego cujo valor percentual decresceu nos últimos
dias, mas sem garantia de sustentabilidade. Esvaziou-se a Administração Pública
e abateu-se a classe média.
Saída limpa? Sim, o país está mais limpo de
recursos; as pessoas têm limpas as carteiras, os cofres, as reservas de
depósitos bancários; o governo está satisfeito; e as pessoas estão pior.
Saída limpa? Sim, com escaninhos a asilar mais
austeridade, mais desconforto, mais pobreza, mais incerteza sobre o futuro.
Caminho limpo? Sim, de lamas, mas com, mais
sinuosidade, mais poeiras e mais pedregulho e sem muros de vedação, sob a
espreita dos mesmos predadores internos e externos.
Rumo certo? Eu, se fosse governante, não teria
tanta certeza.
Saída milagrosa? Não, de todo, não. Eu não pediria
milagres a um governo. Pediria, no entanto, muito mais empenhamento pelos interesses
nacionais, muito maior capacidade negocial com as entidades internacionais (mais
gestoras de mutualidade que instrumento da vontade caprichosa dos credores), muito
mais governança a pensar nas pessoas e nas instituições nacionais que nos “credores”
e na carreira política, muito mais equidade na repartição dos sacrifícios e nas
vantagens da política, nova imaginação para o investimento e para a produção e
distribuição da riqueza e, sobretudo, muito mais verdade e respeito.
Eu queria uma saída verdadeiramente limpa,
sustentável e sem mentira; não o milagre da suave limpeza!
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