terça-feira, 13 de maio de 2014

O milagre da suave limpeza

O suave milagre é um conto do grande Eça de Queirós. Não é líquido que Eça fosse crente a sério ou que fosse descrente por moda ditada por alguma da intelectualidade da segunda metade do século XIX. Seja como for, torna-se encantadora a leitura do referido conto, como também a de outro conto Um milagre ainda mais suave.
Como é recorrente dizer-se, a maneira de fazer política e os políticos parecem nada ou quase nada terem mudado em relação ao tempo queirosiano. Sendo assim, não dá para perceber se o atual governo acredita ou não em milagres, como, pela sua postura, não dá para se entender se ele crê mesmo na validade da sua política. Porém, pretende que nós sejamos crédulos nas palavras que nos dirige e cuja verdade se transmuta com a fluidez dos dias. Neste quadro se perfila a chamada “saída limpa” do programa de ajustamento, que de limpa só detém a designação, ou então está munida de um cendal tão suave que ultrapassa em transparência aquele “cendal delgado” que cobria, sem cobrir, “as partes” do corpo quase desnudo de Vénus quando se foi queixar a Júpiter, seu Pai (cf Camões, Os Lusíadas, II,37).
Se a limpeza consiste apenas em não existir, à porta de saída, um programa formal cautelar de apoio às necessidades financeiras do país, então trata-se de uma limpeza muito suave, sem a segurança das garantias de que uma população precisa. Se nos custa a acreditar, vejamos:
Ainda em julho transato, o país foi atravessado por uma profunda crise política, servida pelo bater de porta esclarecedor de Gaspar, que se reconheceu incompetente para veicular o rumo das finanças portuguesas, enroladas por uma economia que desejava crescer, mas que não podia crescer; pelo anúncio da saída irrevogável de Portas, que voltou como vice-primeiro-ministro, adornado com mais umas mordomias, de que resultou um sucessivamente prometido e protelado inocente (talvez indecente quadre melhor) guião de reforma do Estado, agora aditado de 120 medidas; por um ineficaz grito presidencial de consenso, mesmo com a venda do prato de lentilhas da hipótese da antecipação a prazo de eleições legislativas; por uma teimosia governativa de Passos Coelho, que ironicamente veio a salvar a governação com uns retoques de milagrosa cirurgia tópica.
E o serviço da dívida continuava a aumentar, os portugueses a pagar e os mercados a vigiar…
Eis senão quando, quase por milagre do governo, os juros da dívida entram em descida acentuada até chegarem ao cumprimento da exigência profetizante de Rui Machete (quem não se lembra?) e os mercados calaram-se. Porém, as sábias agências de rating, apesar da conclusão de que o país está melhor e de uma ligeira subida do índice classificativo, continuam a manter a economia do país na zona de lixo. Mais: o empréstimo da troika já custou ao país 3,4 mil milhões em juros e a dívida externa triplicou (130% +). Os casos BPN (e em certa medida BCP, BES, BANIF e CGD), que esfarelaram o país, ainda não estão apagados da escalada devastadora das contas, antes pelo contrário. E o rasto dos dinheiros privados e públicos sumiu.
Já depois do festival do comício conselho de ministros alargado em vésperas de campanha eleitoral para as eleições europeias, prenunciador de outro do género em plena campanha, já legitimado pela CNE, ficámos a saber que: o FMI exige do governo uma carta de intenções com uma série bem definida de compromissos por parte do Estado atinentes à dívida, à disciplina orçamental e às reformas (cujo conteúdo não foi comunicado ao principal partido da oposição e que os governantes porfiam não conter surpresas); a troika continuará a proceder a avaliação periódica (semestralmente) da situação do país até que a dívida esteja controlada (até 2030 +); a par da propalada reposição de 20% dos salários cortados aos trabalhadores da Administração Pública e da substituição da CES (contribuição extraordinária de solidariedade) dos aposentados e reformados pela permanente TS (taxa de solidariedade), o escalão máximo do IVA terá um agravamento de 0,25% e a TSU dos trabalhadores um agravamento de 0,2%; e, se o TC se “portar mal”, isto é, se declarar inconstitucionais as normas orçamentais (OE de 2014 e orçamento retificativo) sujeitas a fiscalização sucessiva, maior aumento de impostos virá (promessa de governante mor). Mas a linguagem ministerial continua a pregar categoricamente que o DEO não comporta aumento de impostos, explicando de forma inexplicada o inexplicável, embora as más línguas prenunciam cortes alapados previstos para depois de 2015.
Entretanto, também ficámos a saber que a saída foi à irlandesa por escolha meramente formal do governo, porque os parceiros europeus, em tempo de campanha eleitoral para as eleições europeias, não estavam disponíveis para a negociação de qualquer programa cautelar, até porque alguns, como a Alemanha e a Finlândia, tinham que submeter aos respetivos parlamentos estaduais a eventual opção de ajuda a países-membros em dificuldade (tal como aconteceria – afinal, acabou por saber-se – com a saída da Irlanda do seu programa de resgate). Ficámos a saber que, embora as avaliações da troika tenham sido todas positivas (era essa a declaração formal e informal; mesmo aquela que só foi resolvida num 13 de maio acabou por ser tida como positiva), não se cumpriram as metas do défice orçamental nem as da dívida. O défice, esse baixou, não pelo lado da redução da despesa, mas do lado do aumento de receita, sobretudo, graças a medidas extraordinárias, de que se destacam, além da venda de património, a captação de fundos de pensões privados, com o encargo de o Estado pagar as respetivas pensões futuras, o aumento brutal de impostos, os cortes drásticos de salários, pensões e serviços, a redução irracional de valências educativas e de saúde, o congelamento de progressões na função pública. A dívida triplicou. As empresas públicas derraparam em milhares e milhares de milhões, que o Estado tem de suportar à custa dos cidadãos. De resto, as reformas estruturais não aconteceram: os equilíbrios são precários e nada aponta para que venham a ter sustentabilidade.
Porém, os parceiros apoiaram, deram os parabéns (vg o Presidente da Comissão Europeia e o Ministro das Finanças da Alemanha), mas FMI, BCE e Comissão Europeia alertam para o facto de as dificuldades não terem sido dissipadas. Até acontece que o FMI exige o compromisso de futuro da parte do Estado Português e a Comissão Europeia relevantou o espantalho do perigo das possíveis decisões do TC em não alinhamento com as opções governamentais e parlamentares. E, a 17 de maio, o governo aprovará o documento de estratégia de médio prazo.
Finalmente, a Comunicação Social revelou, no passado fim de semana, que Philippe Legrain, conselheiro económico independente de Durão Barroso até fevereiro deste ano, diz em entrevista, que “as ajudas a Portugal e à Grécia foram pensadas para resgatar”, sim, mas “os bancos alemães”. Pelo que dá por “incorreta a narrativa que os alemães contaram a si próprios de que a crise do euro teve a ver com o Sul a querer levar o dinheiro deles”.
O referido conselheiro económico assegura que o empréstimo de dinheiro a uma Grécia insolvente transformou repentinamente os maus empréstimos privados dos bancos em obrigações entre Governos. A inicial crise bancária, que devia ter unido a Europa na limitação dos bancos, transmutou-se em crise de dívida, que dividiu a Europa em países credores e países devedores, passando as instituições europeias a instrumento dos credores na imposição da vontade destes aos devedores. Apesar do elogio de sucesso, o programa de resgate português não foi bem sucedido: “Portugal está bem pior do que antes do programa, e a dívida privada não caiu”. A troika desempenhou “um papel quase colonial” e sem controlo democrático, não no interesse europeu, mas no dos credores de Portugal. E, “pior que tudo, impôs as políticas erradas”. “Isto porque, em vez de enfrentar os problemas do setor bancário, a Europa entrou numa corrida à austeridade coletiva que provocou recessões desnecessariamente longas e tão severas que agravaram a situação das finanças públicas”.
Sobre a relação de Barroso com a crise e com a solução, o economista explica:
O presidente Barroso teve a abertura de espírito suficiente para perceber que os altos funcionários da Comissão estavam a propor receitas erradas. Não conseguiram prever a crise e revelaram-se incapazes de a resolver. Ele viu-me na televisão, leu o meu livro anterior e pediu-me para trabalhar para ele como conselheiro, para lhe dar uma perspetiva alternativa. O que foi corajoso, e a mim deu-me uma oportunidade para tentar fazer a diferença. Infelizmente, apesar de termos tido muitas e boas conversas em privado, os meus conselhos não foram seguidos. (vd Público, de 11-05-2014, pgs 1.4-9).
Não deixa de ser irónico ter sido feito aos portugueses durante três anos o discurso da inevitabilidade, do bom caminho e do crescimento. Cresceu a pobreza e o número de pobres; diminuiu o número dos ricos, mas estes ficaram mais ricos, sem que se tivesse criado mais riqueza. Cresceram as exportações, que já parecem estar a diminuir; baixaram as importações, mercê da diminuição drástica do consumo, as quais parecem estar a crescer novamente, graças ao ligeiro aumento do consumo, em virtude de uma ligeira folga económica. Aumentou assustadoramente a emigração de pessoas qualificadas e o desemprego, com o aumento da precariedade – desemprego cujo valor percentual decresceu nos últimos dias, mas sem garantia de sustentabilidade. Esvaziou-se a Administração Pública e abateu-se a classe média.
Saída limpa? Sim, o país está mais limpo de recursos; as pessoas têm limpas as carteiras, os cofres, as reservas de depósitos bancários; o governo está satisfeito; e as pessoas estão pior.
Saída limpa? Sim, com escaninhos a asilar mais austeridade, mais desconforto, mais pobreza, mais incerteza sobre o futuro.
Caminho limpo? Sim, de lamas, mas com, mais sinuosidade, mais poeiras e mais pedregulho e sem muros de vedação, sob a espreita dos mesmos predadores internos e externos.
Rumo certo? Eu, se fosse governante, não teria tanta certeza.
Saída milagrosa? Não, de todo, não. Eu não pediria milagres a um governo. Pediria, no entanto, muito mais empenhamento pelos interesses nacionais, muito maior capacidade negocial com as entidades internacionais (mais gestoras de mutualidade que instrumento da vontade caprichosa dos credores), muito mais governança a pensar nas pessoas e nas instituições nacionais que nos “credores” e na carreira política, muito mais equidade na repartição dos sacrifícios e nas vantagens da política, nova imaginação para o investimento e para a produção e distribuição da riqueza e, sobretudo, muito mais verdade e respeito.

Eu queria uma saída verdadeiramente limpa, sustentável e sem mentira; não o milagre da suave limpeza!

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