quarta-feira, 21 de maio de 2014

O último bispo português que participou no Concílio Vaticano II

Dom Eurico Dias Nogueira, arcebispo primaz emérito, pastor missionário e sem fronteiras (M. Morujão), faleceu, a 19 de maio, na cidade de Braga, após internamento súbito no hospital local.
O ilustre prelado nasceu em Dornelas do Zêzere, do concelho de Pampilhosa da Serra, a 6 de março de 1923. Ordenado sacerdote em 22 de dezembro de 1945, frequentou, de 1915 a 1948, a Pontifícia Universidade Gregoriana, onde se doutorou em Direito Canónico com tese sobre o Acordo Missionário celebrado entre a Santa Sé e a República Portuguesa. E de 1950 a 1956, frequentou a Universidade de Coimbra, tendo nela concluído a licenciatura em Direito (Civil), enquanto desempenhava funções docentes e pastorais na diocese coimbrã.
Em 10 de julho de 1964, Paulo VI nomeou-o bispo de Vila Cabral, atual Lichinga, em Moçambique, qualidade em que participou na III sessão (como bispo eleito) e na IV sessão (como bispo residencial) do Concílio Vaticano II, assembleia que decorreu de 1962 a 1965. Era o último bispo português sobrevivo que participou nos trabalhos conciliares.
A ordenação episcopal (dantes dizia-se “sagração”) ocorreu na Sé Nova de Coimbra, a 6 de dezembro de 1964. A 19 de fevereiro de 1972 passou a bispo de Sá da Bandeira, atual Lubango, em Angola, onde permaneceu até 3 de fevereiro de 1977. Tornou-se, a 5 de novembro de 1977, arcebispo primaz de Braga, cargo ocupado até 18 de agosto de 1999, momento em que, por limite de idade, se tornou emérito, fixando residência no Seminário de Santiago.

O que dizem do arcebispo – (a partir de locais várias da agência Ecclesia)
Por ocasião do seu 89.º aniversário, D. Jorge Ortiga, na homilia da celebração a que presidiu na Sé Primacial, referiu que o curriculum de D. Eurico só leva a “aprender a fazer o bem”. Sobre a sua passagem por terras de África, o atual metropolita bracarense salientou:
O inédito e os perigos duma sociedade civil agitada não o impediram de servir um povo que necessitava da ternura de Deus, para além da cor ou religião.
E adiantou:
O seu testemunho recorda-nos que a dimensão missionária não se cinge ao Ultramar, mas também se pode ser missionário na Europa. Trata-se de uma premissa a valorizar no agora panorama da nova evangelização.
Nestes dias do seu passamento, o metropolita – ao assinalar a sua capacidade de diálogo com todos, dentro da Igreja e com outras confissões nos âmbitos ecuménico e inter-religioso – considerou:
Podemos considerá-lo como alguém que nos alerta para essa dimensão que a Igreja terá de continuar a acolher como uma mensagem para os dias de hoje, procurando uma Igreja que está no mundo, fazendo suas as alegrias e tristezas dos homens, para que os homens possam fazer uma experiência de libertação dessas mesmas experiências que vão fazendo no encontro com Cristo e no encontro fraterno dos homens.
E o cónego João Aguiar Campos, diretor do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais da Igreja (SNCS), destacou, no editorial da Agência Ecclesia referente à mesma efeméride, o seu “exemplar” modo de vida “após deixar o paço e o governo ativo da arquidiocese”, opinando:
Realmente, poderia D. Eurico Dias Nogueira ter-se pura e simplesmente retirado, para um merecido repouso no conforto da família e dos muitos amigos. Ou poderia ter-se dedicado a uma espécie de vida de comentador eclesial, nas fronteiras entre um hipócrita desprendimento e aquilo a que a minha veia irónica chama a magistratura da intromissão... Mas não. O senhor D. Eurico entregou-se, generosa e discretamente, às tarefas que lhe foram solicitadas na vida diocesana, com a humildade de quem põe à disposição de outrem as suas muitas competências. Com uma serenidade exemplar e uma modelar silêncio. Sem comentários, juízos ou comparações, provocados ou consentidos.
Agora o seu amigo opina que o primaz foi um homem de “convicções” que promoveu o diálogo e a renovação pastoral. “Guardo dele esta imagem de solidez, de diálogo, da capacidade de fazer pontes sem nunca prescindir da firmeza das suas convicções”, referiu, recordando-o como o “renovador” da pastoral e do diálogo “entre as diversas sensibilidades” e “uma voz forte, que se fazia ouvir com o prestígio da sua cultura, a coerência do seu passado, adquirida nomeadamente em Coimbra e em África”. O diretor do SNCS lembra que, na sua vinda para Braga, em 1977, foi catalogado como “bispo socialista” por alguns partidos, que se foram “desiludindo no caminho”. Mas, na sua missão, o arcebispo, que chegou em momento “difícil”, assumiu-se como “defensor da liberdade, de uma democracia séria, defensor inclusive de uma Constituição que tivesse em conta a cultura democrática do Ocidente”. E criou “pontes”, num diálogo “caridoso” que não significa “cedência” e foi uma voz “culturalmente ouvida” fora da Igreja, integrando o Senado da Universidade do Minho, que lhe atribuiu o doutoramento ‘honoris causa’ (17-02-1990).
Pastoralmente, o cónego Aguiar evoca a convocação do XL Sínodo Diocesano, a renovação dos seminários e a aposta na presença da Universidade Católica.
A Câmara de Braga decidiu luto municipal de dois dias pelo falecimento do arcebispo emérito, aos 91 anos – decisão que o Presidente Ricardo Rio comunicou em mensagem de condolências em que homenageia o “homem de coragem, ampliador de causas e de especial sensibilidade social e disponibilidade para o próximo”. Por seu turno, a Câmara da Pampilhosa da Serra, concelho onde nasceu o arcebispo, aprovou um voto de pesar, a apresentar na Assembleia Municipal, onde se lê que “com a sua morte, Portugal perde um grande homem, um pensador profundo, uma voz irreverente que nunca deixou de se fazer ouvir, quer dentro quer fora da Igreja”. E José Brito, Presidente da autarquia, refere:
Um homem que nunca receou as suas raízes e tão pouco esqueceu as gentes das Serras, foi condecorado, em 2005, com a Medalha de Mérito Municipal na terra que viu nascer aquele que ficará para a história como um dos maiores vultos da Cultura Pampilhosense.
O Presidente da República releva “um homem de fé, de convicções e de princípios” que foi “personalidade marcante da vida da Igreja portuguesa no século XX”, acrescentando:
O seu magistério, profundamente influenciado pela renovação eclesial iniciada pelo Concílio Vaticano II, em que participou, pautou-se pela defesa dos valores essenciais da dignidade da pessoa humana.
D. Serafim Ferreira e Silva, bispo emérito de Leiria-Fátima, que, enquanto bispo auxiliar de Braga entre 1979 e 1981, conviveu com D. Eurico Dias Nogueira, lembrou o homem “bom, sincero, amigo” e o prelado “missionário” e “intelectual”, com a “inteligência do coração”. E manifestou o seu testemunho “de admiração e de gratidão”, destacando o homem com grande “sentido de Igreja” e de “família”, que desempenhou a sua missão na Igreja “não como quem exerce uma autoridade, mas como quem dialoga”.
D. Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), entende que D. Eurico é indispensável para “aprofundar o conhecimento” de Portugal e seu catolicismo nas “décadas centrais do século XX”. E considerou:
Ele tinha uma memória muito aguda daquilo que tinha acontecido com ele ao longo das décadas e tem trechos absolutamente preciosos para compreendermos a história do catolicismo português, como a história do nosso país, nas décadas centrais do século XX, quer aqui quer em África.
O Patriarca julga “muito importante” ler os testemunhos do arcebispo para “aprofundar o conhecimento nas décadas centrais do século XX” e para “perceber o que foi a ação de homens da Igreja”, tanto em Portugal como em Angola e Moçambique. Assim, afirma:
Desde os seus tempos de padre e estudante de direito em Coimbra, depois como Bispo em Moçambique, Angola e em Portugal, concretamente como arcebispo de Braga e na CEP, ele era das presenças mais permanentes e em variadíssimos setores onde a Igreja em Portugal e o catolicismo português tiveram significado, atitude e risco.
O presidente da CEP considera, ainda, que o emérito bracarense tinha uma memória muito “viva, participativa e comunicativa” da Igreja e da sociedade, que ajudava a “integrar os acontecimentos” e a “perspetivar as coisas”, antes e depois de 1974. E refere que o “gosto da convivência, da conversa lúcida, brilhante e argumentativa” mostra que D. Eurico manteve ao longo da vida o “espírito coimbrão”, no “melhor sentido do termo”, dos seus anos da Universidade e do clero de Coimbra. E acrescentou que ele era uma presença que a comunicação também “gostava de rondar”, ora “para picar”, ora “para acolher”, a confirmar o “seu espírito muito vivo”.
A CEP de Angola e São Tomé, por sua vez, evocou o caráter “visionário e pacifista” do arcebispo, destacando a sua passagem como bispo de Sá da Bandeira, hoje Lubango:
Para nós é uma perda irreparável, mas deixou o sabor do Evangelho, da alegria, do valor da dignidade da pessoa humana. Conseguiu valorizar o clero autóctone, oferecendo-lhe a formação necessária e indispensável para melhor poder servir o povo de Deus.

O que nos diz Dom Eurico do Concílio
Ouviu a convocação do Concílio com muito entusiasmo. Ainda bem que a Igreja resolve encarar os problemas no seu conjunto e não espera que seja só Roma com os seus organismos a resolver os problemas. Alguns países, quando lhes pareceu que o Vaticano queria dominar os trabalhos, reagiram e disseram: ‘O Concílio é nosso. É de toda a Igreja e não de um grupo que manda em Roma’.
O Concílio – disse – tornou-se um lugar de discussão clara, pública e sem reservas, mas terminado verificou-se que havia uma tendência, de novo, da Santa Sé para centralizar e não deixar as ‘coisas’ correrem muito fora das suas mãos. Isso foi mau porque deviam ter mantido um processo de orientar a vida da Igreja e encarar os problemas no seu conjunto.
Não assegurando categoricamente que se deva fazer um Concílio de quanto em quanto tempo, mas aventa a hipótese de 50 em 50 anos. E, sobre a atualidade e importância dos documentos, diz:
Há ‘coisas’ que não seguiram o rumo que se esperava. A vida da Igreja não está a acompanhar e a desenvolver-se de acordo com os documentos. […] Todos eles [os documentos] são importantes. Todos foram bem discutidos e votados. A votação, de modo geral, era bastante consensual e não havia divergências grandes na parte final. Isso só mostra que os assuntos tinham sido bem estudados e as propostas estavam bem feitas. […] Tem havido uns certos atrasos e reações no sentido de se voltar atrás, não se avançar. O Concílio era para continuar… e de quando em quando fazer-se o ponto da situação.
Sobre a participação Portuguesa, lamenta:
Não tínhamos Faculdade de Teologia nem um conjunto de teólogos que ajudassem e também não houve esforço por parte dos bispos para os arranjar. Recorda-se de ter lamentado, junto dum bispo, não haver um grupo que nos ajudasse. Não tínhamos escola, mas havia casos isolados de padres, com muito valor, que podiam estar connosco, vg. Urbano Duarte e Manuel Paulo (Coimbra), José Policarpo (Lisboa) e Godinho (Porto). D. Sebastião Soares de Resende, bispo da Beira (Moçambique) foi, sem dúvida, aquele que interveio mais vezes e com boas intervenções.
Tentou estudar os assuntos. Logo que foi nomeado para o Concílio entendeu ter o direito de saber como as coisas se passavam, mas não pôde contar com o apoio do bispo português a quem pediu informações.
***
E assim passou ao mundo da Igreja do novo Céu e nova Terra (Ap 21,1) aquele bispo que “avisava que não contassem com ele para “tomar café com os ‘grandes da terra’ e chá com as respetivas esposas” (vd Público, 21-05). Foi aquele que, por ter pedido menos censura e menos intervenção da polícia política e não ter dito bem do governo colonialista foi apelidado de bispo revolucionário e comunista – o que nunca o impediu de se insurgir contra os abusos colonialistas de Lisboa, de criticar abertamente o processo de descolonização e de prosseguir com segurança e liberdade o caminho do ecumenismo saudável e do diálogo inter-religioso e com os não crentes.

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