O senhor bispo emérito da diocese de
Setúbal, Dom Manuel da Silva Martins, foi homenageado, no passado dia 25 de
abril, no quadro da celebração do 40.º aniversário da “Revolução do 25 de
Abril”, com a medalha de honra do município de Sernancelhe, na Diocese de
Lamego, pelo seu trabalho e testemunho em prol dos mais desfavorecidos. É um
bispo que procurou exercer o seu magistério na proclamação da “dignidade da
pessoa humana” e na denodada “denúncia às agressões” aos homens e mulheres
deste tempo, não tendo pejo em esclarecer que, ao chegar à sua diocese, em 26
de outubro de 1975, encontrou um povo “em condições desgraçadas”, pelo que
entende que poderia “fazer um livro só com casos concretos, até com suicídios”.
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Parece-me que, independentemente de
eventuais motivos de circunstância subjacentes à atribuição do galardão
municipal, a cerimónia configura o reconhecimento pelo melhor uso da liberdade
– o trabalho por aqueles que a sociedade e/ou os poderes não querem ou não sabem
incluir no estatuto de seres humanos livres. Não há dignidade humana sem
liberdade. E como pode haver liberdade sem pão, vestuário e casa? Será que a
esmola, episódica ou regularmente concedida, confere ou restitui dignidade e
liberdade ao homem?
Bem cremos que o trabalho pelos
desfavorecidos impõe a denúncia das situações que o “bispo vermelho”, como o
denominavam os detratores da causa pelo semelhante, não teve papas na língua
para pôr a nu: É a fome, senhores, é a
fome! Mas o bispo não se ficou pela denúncia. Muitas vezes o prelado
indicou vias de solução, afastando a tentativa de resolver os problemas com o
paliativo da caridadezinha (muitas vezes
promovida a caridade), mas, após a ajuda ditada pela emergência, acionar os
mecanismos impostos pela justiça, ou seja, o emprego estribado no trabalho por
conta de outrem ou na criação do autoemprego (hoje designado pelo termo espampanante de “empreendedorismo”), que
possibilite o desafogo económico do trabalhador, da família e do futuro, bem
como das pausas que a doença ou a situação de desemprego impuserem. É óbvio que
é justo que a sociedade organizada exija também do trabalhador um contributo
para o acautelamento da situação futura de doença, eventual desemprego e
velhice.
É, pois, no trabalho, cuja penosidade
há de ser reduzida ao mínimo, e no merecido lazer que o ser humano encontra o
estrato da liberdade, que ele deve esforçar-se por conquistar e colocar nas
rotas do “conseguimento” (não
hostilizemos a palavra por causa da Presidenta da AR) e com a qual pode e
deve exercer em pleno o direito e o dever da cidadania, votando na escolha de
seus representantes a vários patamares e desenvolvendo o sentido crítico e
cooperativo. Este será o homem livre, na consciência e na responsabilidade.
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Porém, faz furor em muitos espíritos
a afirmação recorrente na boca do bispo emérito da diocese sadina, agora com a
idade de 87 anos de idade, quando sustenta que o “altar também está no mundo” e
a “maioria das vezes, está primeiro no mundo e depois na Igreja”. Ora, não o
afirmar é que deveria escandalizar os espíritos, sobretudo os dos cristãos
convictos e praticantes. O livro dos Atos dos Apóstolos refere que os primeiros
cristãos “vendiam propriedades e bens e distribuíam o dinheiro por todos
conforme as necessidades de cada um” (vd At 2,45; 4,34-37), de modo que “nem
havia entre eles qualquer necessitado”. E Paulo exorta a que os seguidores de
Cristo “carreguem as cargas uns dos outros” para que “assim cumpram plenamente
a lei de Cristo” (cf Gl 6,2) e compromete-se no apelo, quando adverte, “enquanto
temos oportunidade, façamos bem a todos, mas principalmente aos irmãos da fé”
(Gl 6,10).
Porém, o apóstolo encontrou uma forma
de ajuda às comunidades mais necessitadas: a coleta. E, quando foi encorajado
pelos responsáveis da Igreja em Jerusalém a “lembrar-se dos pobres” (cf Gl 2,10),
levou muito a peito este empreendimento. As suas peças epistolares e o
mencionado Livro dos Atos dos Apóstolos evidenciam o enorme empenho do apóstolo
ao longo de duas décadas para auxiliar os “santos” (eram ao tempo assim denominados os cristãos) necessitados na igreja
mãe em Jerusalém. Paulo estimulou todas as igrejas que fundou entre os gentios
na Ásia Menor, Macedónia e Acaia a levantarem uma oferta de amor para ser
enviado, por meio do apóstolo junto com representantes destas Igrejas, à Igreja-mãe
que vivia em Jerusalém. A importância desta coleta é visível na sua indicação
em vários segmentos textuais de significativa relevância: 1Co 16,1-4 (modo de proceder); 2Co 8-9 (importância, sentido e finalidade da
coleta: respetivamente, cumprimento da lei divina, generosidade do coração e
consecução da igualdade entre os irmãos e glorificação divina); Rm 15,25-33 (dinamismo da partilha de bens espirituais e de bens materiais); e At 24,17 (menção do facto da sua presença no Templo anos antes para trazer a coleta
e fazer oblação, em alegação da sua defesa perante o governador).
Embora não saibamos quais eram os
resultados exatos desta ação social de Paulo e das Igrejas gentias, podemos
descortinar que a coleta, embora não tenha cumprido completamente todos os
objetivos de Paulo a seu respeito, pelo menos deve tê-los cumprido em parte,
aliviando um pouco o padecimento dos irmãos na Palestina e ensinando a todos
que, no final das contas, há uma só Igreja (que não pode descansar
enquanto houver pobres), um só evangelho (embora redigido por quatro
evangelistas com diversas intenções cristológicas) e um só Senhor sobre todos os
cristãos (apesar das muitas divisões criadas ao longo da
História, algumas bem artificiais, em resultado da vaidade ferida).
E quer a venda das propriedades quer
a coleta revelaram-se insuficientes para criar a igualdade, afirmar a unidade
da Igreja na diversidade de expressão e a fraternidade universal em torno do
único Senhor. É que, se faltar a radicalidade evangélica e a doação total ao
semelhante (aquele que é da mesma semente que nós
e não o estranho a abater ou a tolerar) todo o esforço religioso cai por terra. A prática do
cristianismo tem de pautar-se pelo Evangelho: Sempre que fizestes “isto” (dar de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede, recolher o
peregrino, vestir o nu e visitar o preso ou o doente) a um destes meus irmãos mais
pequeninos, a Mim mesmo o fizestes (cf Mt 25,31-46).
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É o Evangelho lido pelo apóstolo
Tiago que nos deve orientar: “Olhai que o salário que não pagastes
aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos está a clamar e os clamores dos
ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo” (Tg 5,4). Já no capítulo primeiro
da sua carta explicita que “Se alguém presume ser religioso, deixando de
refrear a língua, antes, enganando o seu coração, tem uma
religião vã. A religião pura e imaculada diante
de nosso Deus e Pai é: visitar os
órfãos e as viúvas nas suas aflições e guardar-se
incontaminado do mundo” (Tg 1,26-27).
Não podemos esquecer que a tradição eclesiástica catalogou como pecados que
bradam ao céu, além do homicídio voluntário e do pecado sensual contra a
natureza: a opressão dos pobres, principalmente órfãos e viúvas; e o não pagamento
do salário a quem trabalha (que dantes se dizia “o jornal”).
A religião deve, neste contexto, ser
entendida não como um corpo doutrinal, mas como uma postura adequada diante de
Deus, ou seja, a forma verdadeira de culto que agrada a Deus, “em espírito e verdade”, onde quer que
seja (cf Jo 4,24).
O apóstolo, na sua carta, apresenta um conjunto de três condições para realizar
a verdadeira religião.
A primeira passa pelo “refrear da língua”, na sequência da
pré-admonição de Cristo “Porque pelas tuas palavras serás
justificado e pelas tuas palavras serás condenado” (Mt 12,37). Por isso, os
seguidores de Jesus devem primar pela sobriedade no falar, piedade no
relacionamento com o mundo e austeridade nas palavras. A palavra, que no
hebraico se dizia “Dabar”, é a
expressão e a extensão da nossa personalidade: “A boca fala do que o coração está cheio” (Mt 12,34). O verdadeiro
cristão não fala por falar, não aumenta, não difama, não sente satisfação em
passar a outrem notícias desagradáveis, não exulta com infâmias, não julga,
pois não lhe é reconhecido esse direito, perdoa.
A segunda manifestação da verdadeira religião é “visitar
os órfãos e as viúvas nas suas aflições”. Muitos cristãos pensam que o culto que agrada a
Deus é só o momento de culto no templo. Tiago não nos ensina só uma religião
mística, de contemplação, que a tantos faz bem e que pode ser apostólica,
mas que, por si só, não testemunha muita coisa. “Visitar os órfãos e as viúvas
nas suas aflições” é manifestar simpatia e solidariedade aos que sofrem
privações (materiais, físicas, emocionais, culturais, sociais e espirituais).
As pessoas não são apenas “almas” para salvar, mas seres humanos reais, concretos,
com necessidades e aspirações em todas as áreas da vida. O termo “visitar” no
grego é “episképtomai”, que significa “visito para socorrer”.
Aquele “visitar” apostólico, habitualmente discreto para ser eficaz, tem como
escopo prover às necessidades da pessoa integral. Ora, é bem mais fácil falar
ou orar do que ensinar, desembolsar bens e dinheiro, levar ao médico, ajudar
nas tarefas do lar, sujar as mãos e os pés junto dos que sofrem a doença, a
escravidão, as carências de toda a ordem e tamanho, o silenciamento imposto –
ou seja, os que não têm vez e voz, por razões de miséria, ignorância, opressão
e repressão económica e política. Estes são “os órfãos e as viúvas” do nosso
milénio. A oferta que agrada a Deus é socorrer os necessitados. O Livro dos Atos
(10,38) diz sobre Jesus: “...com o Espírito Santo e com poder; o qual andou por
toda parte, fazendo o bem e curando todos os oprimidos do Diabo, porque Deus
era com ele”. Jesus de
Nazaré, tão ligado a Deus Seu Pai, andou fazendo o bem e curando os oprimidos
pelo Diabo. Quantos diabos com aparência de gente não trabalham aí nos
gabinetes dos poderes ou nas administrações! Quem apenas cuida
das necessidades espirituais, encarando o homem como um ser descarnado, não tem
uma religião digna de Deus nem do homem que se diz seguidor de Cristo. Não
podemos amar “com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade” (1Jo
3,18)
O terceiro vetor da religião verdadeira é
“guardar-se incontaminado do mundo”, ou seja, “salvar-se desta geração perversa” (At 2,40),
como recomenda Pedro. Os ditames do citado versículo 27 ca carta de Tiago
não podem ser separados. Santidade e desvelo pelo próximo devem andar
juntas. Alguém zeloso que não seja santo cairá quando as
tentações espreitarem e se avolumarem. Alguém santo que não pratique a bondade filantrópica
é incoerente. A santidade não pode residir só na palavra e no semblante, mas na
atitude permanente para com Deus, que inevitavelmente se refletirá nas atitudes
para com o próximo. Santidade e
insensibilidade não “casam” no ser cristão com consequências procedimentais
coerentes.
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Ora, a síntese da verdadeira religião é a fé com
obras (sem obras a fé é morta – Tg 2,26); a esperança com a mostra das razões
explícitas aos outros, aos que nos interpelarem (1Pe 3,15); e o amor ao próximo
sem aceção de pessoas (cf Tg 2,5-13) como condição de verdade: “Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois
quem não ama seu irmão, a
quem vê, não pode amar a Deus, a
quem não vê. E nós recebemos dele este mandamento: quem ama a Deus ame também o
seu irmão” (1Jo 4, 20-21).
Voltando às palavras
do célebre bispo emérito e considerando o exposto, o principal altar da Igreja
é, constrói-se nas periferias, no “mundo”, pois é lá que o Cristo sacerdote,
altar e cordeiro (cf prefácio pascal V) Se imola (sacerdote, oferente) a Si mesmo (vítima, cordeiro) no patíbulo (altar)
pelos que sofrem (o beneficiário do Sacrifício)
– o Cristo que subsiste no coração do mundo profundo da miséria (a erradicar),
da pobreza a substituir pelas condições vida condigna e a sublimar para o
trabalho de evangelização dos pobres e oprimidos, da luta pelo levantar
libertador da cabeça pessoal e coletivo contra os diabos da opressão e da
repressão. É facto abjeto que a repressão e o silenciamento se façam em nome da
segurança nacional, do combate contra os totalitarismos ou mesmo em nome de
qualquer religião, invocando o santo nome de Deus em vão, contra o homem que
Ele mesmo criou. Como é de apreciar e seguir o trabalho insano, mas
gratificante de quem labuta nas periferias existenciais da gigantesca Ásia, da
inefável Oceânia, da desgastada e envelhecida Europa, da vigorosa África, da assimétrica
América do Norte e da efervescente da América latina – e o esforço não
compreendido daqueles que a partir de contextos peculiares têm tentado uma
Cristologia encarnada e uma eclesiologia emergente da realidade que temos e não
outra – no quadro de uma teologia da enxada, da picareta ou da caneta
incipiente!
Mas é forçoso
garantir, com alguma assiduidade, o altar do Templo – o centro que refresca e
revigora – para que os apóstolos não definhem na luta pela justiça: “Vinde a Mim todos os que vos sentis cansados
e Eu vos aliviarei” (Mt 11,28). Não faz sentido a comunhão eucarística (do
Templo) sem a dimensão do Cristo “pão partido pela vida do mundo inteiro”,
sobretudo o mundo dos pobres, emergindo da miséria e da opressão: “Os pobres comerão e ficarão saciados;
louvarão o Senhor os que O procuram” (Sl 22,27).
E assim aquele que
foi homenageado como “um bispo que é de todos”, no âmbito da “solicitude por todas as Igrejas” (cf 2Co
11,28; Christus Dominus, 3) pode ter sido um bom pretexto de um momento de nova
evangelização. Pena, se os ouvintes foram poucos e a mensagem se perde pelos
escaninhos do contexto político hodierno em Portugal!
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