segunda-feira, 19 de maio de 2014

Braga de Macedo e a classe média



Este inefável ex-ministro das Finanças da era da governança cavaquista, agora afastado da política dita ativa e professor de economia na Nova School of Business and Economics, não deixa de surpreender.
Em 1993, afirmou perante a Assembleia da República que o país era um “oásis” (Quem não se lembra do lugar do oásis e da escola do sucesso?). O OE de 1993, que previa o encaixe de 3.340 milhões contos de receitas correntes, precisou de ser complementado pelo orçamento retificativo porque, afinal, a receita fora bem menor. O OE previa o crescimento do PIB em 2%, ao passo que, na realidade, se verificou um recuo de 0,7%. Em dezembro daquele ano, Cavaco houve por bem mudar de titular das finanças. Porém, nada impediu que o Ministro tenha sido cúmplice do então Primeiro-Ministro na subscrição da outorga, a dois agentes da extinta PIDE/DGS, de uma pensão por “altos serviços prestados à pátria”, proposta pelo Supremo Tribunal Militar.
No fim do não de 2013, vinte anos depois, surpreendeu a opinião pública ao propalar que “os 13 juízes do Tribunal Constitucional não são ajuizados, querem preservar a sociedade sem classes e a economia nacionalizada prescritas pela Constituição aprovada em 1976, têm uma visão demasiado legalista da sua função e que deviam dar mais importância ao memorando assinado com a troika do que à lei fundamental”. E chegou ao ponto de zurzir contra o atual Presidente da República, quando perorou que “a maioria das decisões do TC sobre medidas austeritárias surgem na sequência de pedidos de declaração de inconstitucionalidade feitos pelo Presidente, e em alguns casos (em relação à contribuição extraordinária de solidariedade, por exemplo), contrariam esses pedidos do PR”. E infere que o PR suplanta os juízes no anacronismo e na falta de sapiência e juízo que lhes atribui quando afirma “estes 13 juízes não são homens ajuizados, porque também há mulheres e também talvez por outras razões”, enunciado que denota um desajeitado machismo agradável a determinadas mentes.
Recentemente, afirmou, em entrevista a Sílvia de Oliveira e Hugo Neutel, de Dinheiro Vivo, que o ajustamento pesou mais sobre os ricos e sobre os mais pobres e que “a classe média acabou por ser a que menos sofreu”. Bem gostava de perceber como é que o infalível professor é capaz de contrariar a voz consensual de que a classe média foi tão prejudicada pela crise que surgiram novos pobres, que vêm a depauperar até à exaustão os recursos das organizações de solidariedade e a esgotar a capacidade de solidariedade económica dos cidadãos. Há mesmo quem profetize que a classe média, essencial na vida do Estado, está de tal maneira diminuída que mais parece em vias de extinção do que em processo de reconversão. Não sabe o professor que muitos dos avós consomem as pensões de reforma e de aposentação, cada vez mais rarefeitas, no sustento de netos com pais e tios desempregados, sentindo-se mesmo forçados a abandonar o lar de terceira idade a que já se tinham recolhido? Não saberá que milhares de jovens abandonaram o ensino superior por falta de dinheiro para pagamento de propinas, alojamento e alimentação? Não sabe que centenas de adolescentes usufruem da única refeição que lhes é dada na escola? Não saberá Sua Excelentíssima Docência que o país tem uma sangria emigratória parecida com a da década de 60 do século XX, calculada em cerca de 300 mil almas, sendo muitas de gente qualificada? Não sente o economista, que deveria conhecer a situação da sociedade pelo lado da economia social, não sente como decresceu a natalidade, por falta de meios, designadamente estabilidade laboral, existência de condições de compatibilidade entre ocupação laboral e dedicação à família? Não reconhece que a escola está, ao nível do primeiro ciclo do ensino básico, sem população discente? Não percebe que a Administração Pública, ora esbulhada até ao tutano, se prestigia e ganha eficácia com uma classe média robusta?
Crerá o ilustre académico que se trata de filhos da gente muito rica ou da gente muito pobre? Acha que os ricos são assim tantos neste país? Acha que os muito pobres puderam fazer cursos superiores, emigrar ou perder muito dinheiro? Subestima os cortes salariais, de pensões e de subsídios que se abateram sobre funcionários? Acha pouca coisa o aumento brutal de impostos ou pensa que eles custam menos a pagar pelos elementos da classe média?  
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Mas vejamos, com natural interesse, como o intelectual comenta a forma como o país assinala o fim simbólico do resgate e o balanço que faz dos três anos de troika. Neste sentido, entende que se trata de um dia simbólico e não mais: é um dia igual ao anterior e muitas coisas ficarão iguais no dia seguinte. No entanto, considera-o um marco e os marcos são o que nos faz viver. Houve um contrato e, na linha da tradição de que “os contratos têm de ser cumpridos”, o país, todo ele, cumpriu. Infere que “os símbolos são importantes mas, enquanto símbolos, não são importantes nos bolsos das pessoas. […] É essa a dificuldade que se tem em passar realidades económicas, algumas delas instantâneas, que mudam em centésimos de segundo, e que podem fazer imensa diferença na vida das pessoas. Mas a realidade é muito mais viscosa, muito mais lenta”.
Braga de Macedo acredita que, se se mantiverem os aspetos fundamentais das exigências do memorando, Portugal não terá problemas de acesso aos mercados e que o país estará melhor.
Quanto à validade dos sacrifícios, conclui que eram exigidos pelo programa e que valeram a pena, embora reconheça que “o contrato estava mal escrito, que foi um contrato abusivo, que se devia ter ido a tribunal, isto em termos simbólicos, e que o senhor juiz nos dava razão”. Mas Portugal cumpriu.
No atinente aos objetivos – endireitar as contas públicas e reestruturar a economia – o professor, embora sustente que o contrato fora elaborado à pressa e numa situação de fraqueza negocial e, depois, “foi executado num ambiente em que a zona a que pertencemos esteve quase a afundar”, entende que se atingiram porquanto, no ano passado, tivemos um excedente, pela primeira vez, desde há décadas. Ora “o primeiro problema de Portugal, que levou Portugal a pedir ajuda externa, foi o défice externo, tinha a ver com o facto de não podermos pagar as nossas dívidas ao exterior. […] Estou praticamente certo de que temos o recorde de défice externo em percentagem de PIB continuado. A dívida externa que acumulámos, é brutal”.
Porém, o governo, porque “alterar a conta corrente é impossível, tem que pôr as contas em ordem e dar competitividade à economia através de reformas estruturais. Foi exatamente o que fez, com base num guião”. Mas o guião dizia “nós damos o dinheiro à cabeça com estas condições”.
Não sei se o analista professor diria uma coisa destas se vivesse em Portugal com atenção ao que efetivamente se passa. É que o seu raciocínio é contraditório. Verifica que o problema da dívida externa é a canga, a herança que tivemos de 10 anos e assegura que não conhece país “que tenha conseguido crédito externo com um défice tão grande durante tanto tempo”. E, citando Olivier Blanchard, define as caraterísticas da nossa economia: crescimento anémico – não há crescimento –, défice orçamental grande, défice da conta corrente muito grande.
Embora se tenha afirmado convicto de que o país cumpriu, acaba por defender que as reformas estruturais vão ser julgadas no sentido de terem ou não conseguido espoletar o potencial exportador da economia portuguesa. Trata-se, diz ele, de uma questão muito complexa porque, ao lado do défice da conta corrente, há uma total relutância, ou incapacidade em fazer reformas estruturais. E as exportações entraram mesmo na rampa do crescimento sustentável?
E não deixa de chorar pelas cebolas podres do Egito quando refere que “a estrutura económica portuguesa até era relativamente flexível, nos anos 60, mas veio a Revolução, com aquela nacionalização por grosso. Essa alteração acabou por ser má, mesmo depois das privatizações, e isso verificou-se, sobretudo, porque a economia fechou”. Outro ilustre a clamar que antigamente é que era bom. Tínhamos ouvido já Durão Barroso a dizer bem do ensino no liceu de seus estudos pré-abrilinos! Terá sido esse ensino que o levou a decretar “nem mais um soldado para as colónias” ou recentemente “nem mais um euro para o protetorado, se o TC não tiver juízo”?
As nacionalizações – onde é que estava o lúcido economista nesse período? – deixaram cicatrizes: a economia fechou e as reformas estruturais estavam encavalitadas há muitas décadas – justificou. Todavia, o que lhe parece mais grave desse período, “que ainda está a decorrer, é a legibilidade das reformas estruturais”.  
E faz algumas interrogações pertinentes, em termos contrastivos: “Será que se fez a mais no mercado de trabalho, a menos no mercado financeiro, a mais na agricultura, a menos na indústria, o que é que é o turismo, como é que é a atração de investimento estrangeiro? ”. No entanto, não deixa de embandeirar em arco: “Temos vitórias indiscutíveis de abertura e de confiança em que Portugal é um sítio onde se pode investir. Temos melhorado enormemente, estamos a atrair investimento estrangeiro como nunca aconteceu, mesmo à escala europeia”. Então, porque é que não há investimento? – é imperioso perguntar, penso eu.
Porém, o analista encontra razões da não legibilidade das reformas estruturais, sentenciando:
“Temos, em Portugal, uma tradição de concertação social, mas também temos, em Portugal, uma coisa insólita: os sindicatos, tal como a esquerda, estão divididos, o que é uma coisa rara na Europa, onde é muito mais frequente a direita estar dividida”. E apresenta a solução:
Noutros países, há uma tradição de concertação social e uma tradição de concertação económica. Isto quer dizer que para abrir a economia ao investimento estrangeiro são precisas reformas. Não só que se façam, mas que sejam vistas como tal e que as organizações empresariais e as grandes empresas exportadoras sintam que o Estado é sensível. Teria gostado de que essas reformas, ao longo destes anos, tivessem sido um bocadinho mais rápidas.
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Assim, não percebo como, com tanta incerteza sobre os resultados no futuro, Braga de Macedo afirma que foi o governo que decretou a saída limpa, uma saída europeia, e como é que o economista, apesar de tudo, algo lúcido, acredita na índole limpa da saída do programa de ajustamento, com tanta coisa para acabar de fazer e com tantos riscos, ou que gizámos o nosso seguro. E como é que acredita que Merkel é sincera ao afirmar que Portugal será uma porta para o mundo? Contradições de economista ou otimismo pertinaz!

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