Há oito dias, o governo assinalou, em
Conselho de Ministros alargado aos Secretários de Estado e, em parte, à
Comunicação Social (realmente um megacomício legal, mas ilegítimo), a fabulosa
decisão da saída limpa do programa de ajustamento. Alguns dos nossos policratas
pré-saudaram o dia de hoje – 17 de maio – como o dia da restauração da
soberania, o dia da independência – o novo 25 de Abril. Acabara a colonização
europeia; tornáramos a ser um povo livre… Que discurso miserável, por clara
inobservância da verdade!
Até alguém instalou algures em
contexto de sede partidária relógio de contagem decrescente para o dia da saída
da troika (segundo Portas, de recuperação: de salários, progressivamente; de pensões,
substancialmente; e de rendimento, necessariamente com prudência orçamental e
determinação política), que me faz lembrar os relógios do programa “pólis”, da
era de Guterres.
Quase paralelamente ao referido solene
megacomício de rosto protoinstitucional, soube-se que o FMI lançara alertas
sobre o rumo não sustentável da economia e das contas e que não abre mão de
compromissiva carta de conforto da parte do Estado português sobre a disciplina
orçamental e da dívida. O próprio primeiro-ministro anunciou para hoje a
aprovação, em Conselho de Ministros extraordinário, de um documento com as
medidas de médio prazo. O Ministro das Finanças de Merkel saudou o feliz dia da
tríplice recuperação apregoada por Paulo Portas. Durão Barroso ficou feliz por
Portugal, que afinal cumpriu, mas acenando com o espantalho de possíveis decisões
do Tribunal Constitucional (TC) a contragosto do governo. Marques Mendes, só cá
entre nós, acha (é o seu “achismo”) que de facto o TC exagera. E Santana Lopes
preconiza a abolição da fiscalização preventiva da constitucionalidade dos normativos
legais.
Já todos falaram das novidades gravosas
inscritas no DEO. O PIB decresceu e o ritmo das exportação abrandou; o défice
orçamental contrai à custa de habilidades financeiras e burocráticas; a dívida
aumentou em termos percentuais com relação ao PIB; e, se o TC inviabilizar o orçamento
do estado e orçamento retificativo, teremos mais impostos.
Nas vésperas do dia em que se
assinala o fim oficial do programa de ajustamento financeiro, um representante
da Comissão Europeia avisa que, se o governo não tiver juízo, scilicet, se ceder a tentações de facilidades
eleitoralistas e não cumprir o compromisso orçamental e da dívida, não bastará mesmo
um programa cautelar, mas será necessário um segundo resgate. É mais um sintoma
da índole de limpeza do fim do programa! A troika vai-se embora, mas não diz “adeus”
a Portugal. Continua a fazer avaliação periódica de 180 em 180 dias (em vez de
90 em 90 dias). Quer dizer, ficamos sem troika, mas continuamos freados pela
rédea e pelo cabresto!
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Hoje, o Governo reafirmou o
compromisso de redução do défice até 2018 e da continuidade do ritmo das
reformas nos próximos anos, mas assegurou que as principais medidas concretas
apresentadas no âmbito da “estratégia de reforma de médio prazo” não vão além
de 2015, o último ano da legislatura. O documento aprovado na manhã de hoje no
Conselho de Ministros extraordinário denomina-se “Caminho para o Crescimento” e
constitui-se como agregador das diversas reformas já feitas, as que se
encontram em execução e as que terão de ser feitas nos próximos anos. É um “piscar
de olho” aos parceiros europeus e aos investidores internacionais, redigido em
português e em inglês, mas onde o Governo não assume compromissos concretos para
lá de 2015. A exceção acontece nos objetivos para o défice e para a dívida, que
vão até 2018, e já constam do Documento de Estratégia Orçamental (DEO)
apresentado no fim de abril.
As “principais medidas previstas” formam
uma lista que o Governo entende não ser exaustiva e que gravita em torno de
três eixos ou metas globais: para “fomentar a competitividade”; para “promover
o capital humano e o emprego”; e para “racionalizar o setor público”.
Ademais, o que o Governo assume para
depois de 2015, ano de eleições legislativas, são objetivos abrangentes já
conhecidos, como: redução da dívida tarifária até 2020; aumento do crescimento
das exportações; implementação do novo quadro comunitário de apoio (Portugal
2020); continuidade da Estratégia Nacional para o Mar, aumentando o peso do setor
no PIB até 2020; e garantia da aplicação do Plano Estratégico dos Transportes e
Infraestruturas.
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Todavia, em resposta aos jornalistas
que o confrontaram com o facto de Passos Coelho ter prometido a apresentação da
estratégia de médio prazo e o documento conter apenas medidas até 2015, o
ministro da Presidência e dos Assuntos Parlamentares esclareceu que o documento
“claramente tem um fôlego de médio prazo” e que “coisa diferente é o anexo onde
vêm as medidas previstas”, já que o Governo apenas se compromete com as medidas
que pode executar “no seu mandato” e o executivo que sair das próximas legislativas
“terá de elaborar o seu roteiro”. Além do horizonte da legislatura, mantêm-se
as “intenções e os objectivos a alcançar”.
Por seu turno, no prefácio do documento, Passos
Coelho elogia o esforço dos portugueses e os resultados que o Governo alcançou
e diz apostar nesta “ambiciosa estratégia de médio prazo com convicção e
credibilidade”, advertindo que “há, no entanto, ainda muito a fazer. Reformar é uma tarefa contínua; a
disciplina orçamental uma responsabilidade diária”.
Reconhecendo, à La Palisse, que “os
tempos difíceis passam, mas os países fortes perduram”, afirma que “Portugal
foi determinado e soube reerguer-se”. E sentencia: “Devemos prosseguir os
esforços para garantir uma economia equitativa, equilibrada e dinâmica, geradora
de emprego, e que privilegie a excelência e a inovação, mas acompanhada por uma
verdadeira rede de proteção social, sob a forma de um Estado social justo e
eficiente”. Como crer nisto?
Também Carlos Moedas afirma que o
documento integra um acervo de medidas e reformas já apresentadas para diversas
estratégias setoriais, e até o guião da reforma do Estado. E justifica a elaboração
da versão inglesa sob o título de The road to
growth com
o facto de estes planos já conhecidos, em boa parte, pelos portugueses serem
“praticamente desconhecidos fora de fronteiras, pelos parceiros internacionais
e os investidores”. E adita que “podíamos acabar o programa de ajustamento
dizendo que o trabalho estava feito. Mas não o podíamos parar”. Uma parte do
documento configura uma retrospetiva das medidas cumpridas (e não das que
precisam de concretização) durante os três anos da troika. Antes de identificar
a sua estratégia global para o lançamento das “bases sólidas para o
crescimento”, o Governo recua no tempo para reler os “antecedentes da crise”. E
Moedas conclui que “aquilo que realmente é fundamental é que haja uma
irreversibilidade de todas estas reformas estruturais. Em Portugal ninguém quer
voltar para trás. Os portugueses não querem voltar para trás”, mas também é imperioso
compreender que o Governo precisa de “falar para o mundo” e explicar a sua
estratégia.
***
Dada a premência da matéria e a importância
estratégica do momento, não posso passar em silêncio a posição de vários dos responsáveis
católicos e especialistas que a Agência Ecclesia
questionou e que assentam na afirmação de que “o programa de assistência
económica e financeira a Portugal, que se conclui hoje, deixou um país mais
pobre e ainda sujeito a riscos”. Trata-se de entidades com a autoridade que
lhes advém dos relevantes cargos que ocupam e/ou do significativo teor da
intervenção intelectual sobejamente reconhecida.
Assim, o presidente da Cáritas
Portuguesa opina que “foi um tempo violentíssimo para as pessoas que já viviam
em situações vulneráveis e arrastou para a pobreza gente que nunca pensaria
chegar à condição de privação de bens básicos para a sua subsistência”.
Por seu turno, D. Jorge Ortiga, arcebispo
primaz e presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade
Humana, faz o balanço dos três anos de troika advogando que se impõe como
necessário “recuperar um ambiente de sobriedade”, na vida pessoal e coletiva,
evitando “desperdícios e desigualdades sociais, escandalosas”.
O Professor Adriano Moreira, subscritor
do ‘manifesto dos 70’ apelando à reestruturação da dívida, especifica que não
se exige o “perdão”, mas “a extinção da ganância”, sublinhando que “o credo do
mercado precisa de ser limitado e regulado por uma ética”. Para o especialista,
“há muito sacrifício que ainda vai ser enfrentado”, pois o país assiste à saída
dos “empregados da troika”, e não ao fim da vigilância internacional ou da
austeridade. É o que eu digo: ficamos sem troika, mas não sem rédea e cabresto,
ou seja, somos travados na mesma, mas de longe!
Na ótica do economista João César das
Neves, docente da Universidade Católica Portuguesa, a ‘saída limpa’, editada
pelo Governo após a última avaliação da troika, comprova a “rápida” recuperação
do país, o que permite pensar em “exemplo de sucesso”. Porém, o professor não
deixa de alertar para algum excesso de otimismo por parte de alguns nesta fase.
Também Graça Franco, diretora de
informação da Rádio Renascença, destaca a “apetência” dos mercados pela dívida
portuguesa, observando, no entanto, que “essa apetência pode desaparecer de um
momento para o outro”, levando a aumento das taxas de juro. A especialista
recorda ainda os números ligados ao desemprego em Portugal, um problema
“gravíssimo”, advertindo que haverá “pessoas que ficaram de fora do mercado de
trabalho com esta crise e que não vão voltar a ele”, o que, “do ponto de vista
da estrutura social, é muito grave”.
O sociólogo João Peixoto, coordenador
do projeto de investigação ‘Regresso ao Futuro: a Nova Emigração e a Relação
com a Sociedade Portuguesa’, rotula de “trágico” o impacto dos últimos anos no
plano demográfico, induzindo uma “mudança de paradigma” do ângulo dos fluxos
migratórios, a evocar a década de 60 do século XX. “Hoje não temos excesso de
população na agricultura, não temos população iletrada, antes pelo contrário.
Se as saídas na altura provocavam preocupações, hoje provocam outras, talvez
maiores”.
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Se eu fosse supersticioso, sugeriria
que fizessem figas para que este dia de libertação não redunde em PREC (processo
de retração económica continuada). Como não o sou, postulo juízo e negociação aguerrida
dos governantes e trabalho com oração e posição crítica dos portugueses.
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