quarta-feira, 7 de maio de 2014

Beatificação de Paulo VI

Recebi com agrado a notícia veiculada pelos órgãos de comunicação social da prevista beatificação de Paulo VI a celebrar no próximo mês de outubro, provavelmente no dia 19, no final da assembleia extraordinária do sínodo dos bispos sobre a família. Há mesmo quem avance que a cerimónia terá lugar em Milão, de que foi arcebispo, presidida pelo Cardeal Scola, atual líder da arquidiocese, ou pelo Cardeal Amato, prefeito da Congregação das Causas dos Santos.
Se cada um tem o direito de eleger um dos bispos de Roma como seu papa de referência, eu assumo como dever, mais do que como direito, Paulo VI como o meu pontífice de predileção.
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Não quero desdizer uma vírgula sequer do valor significativo, espiritual e estratégico da graça que foi para a Igreja e para o mundo o breve pontificado de João XXIII. Para lá do perfil de humanidade evangélica que se lhe reconhece (talvez não muito ao pé do espírito e mais à superfície do que seria desejável), salientam-se:
– O anúncio, a convocação e a abertura do Concílio Vaticano II, bem como a sua orientação predominantemente pastoral, com vista ao aggiornamento da Igreja, na fidelidade ao juízo de Deus, lido nos sinais dos tempos, a partir das múltiplas mudanças profundas e universais que perpassam o mundo;  
– O forte impulso católico ao movimento ecuménico, preconizado de forma consistente por outras confissões cristãs desde os primórdios do século XX, a que os católicos foram aderindo;
– E as encíclicas Pacem in Terris, sobre “a paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade” (com a assunção cristã dos direitos humanos) e Mater et Magistra, marco importante da Doutrina Social da Igreja, que, através de uma profunda leitura dos novos “sinais dos tempos”, atualizou as orientações das encíclicas sociais anteriores, dando assim a aberta e consolidada resposta católica aos problemas temporais da época.
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Todavia, o Papa Paulo VI foi o grande timoneiro da maior revolução da Igreja no século XX, desencadeada pelo seu predecessor, o novo São João XXIII (é bom que nos vamos habituando à invocação do Santo), centrada no Concílio e na documentação pós-conciliar. Mas o pontífice não se cingiu ao grande areópago dos bispos. Além da promulgação dos documentos do Vaticano II e das cartas apostólicas e similares, regulamentadoras das grandes opções conciliares, produziu documentos autónomos de enorme importância:
As encíclicas Ecclesiam Suam, sobre a consciência de si, renovação permanente e diálogo interno e externo que impendem sobre a Igreja, e Populorum Progressio, dedicada à cooperação entre os povos e ao problema dos países em desenvolvimento, a denunciar o agravamento do desequilíbrio entre países ricos, criticando o neocolonialismo e afirmando o direito de todos os povos ao bem-estar;
As exortações apostólicas Evangelii Nuntiandi, sobre a evangelização no mundo contemporâneo, Signum Magnum, dedicada ao culto da Virgem Maria, Mãe da Igreja e Modelo de todas as Virtudes, e Gaudete in Domino, sobre a alegria cristã;
E a carta apostólica Octogesima Adveniens, sobre o compromisso sociopolítico dos cristãos, com a paciente análise das várias ideologias (as correntes socialistas, a marxista e a liberal), que exigem um discernimento cristão, e a abordagem lúcida do renascimento das utopias, com suas virtualidades e riscos. 
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Muito me admira como hoje se apreciam – e bem – as viagens apostólicas pelo mundo de São João Paulo II (já não as de Bento XVI, saiba-se lá porquê!) e os gestos proféticos de Francisco, ao passo que se esquece que Paulo VI teve os seus rasgos apostólicos: depôs a tiara papal, tendo o produto de sua venda beneficiado os pobres, e assumiu a mitra episcopal; abandonou a sedes gestatória (o andor que transportava o papa para ser visto pela multidão); reformou a cúria; visitou as paróquias romanas; criou o anel uniforme para os bispos e cardeais (o dito anel conciliar); internacionalizou o Sacro Colégio (e distinguiu cardeais eleitores dos jubilados); criou a figura do bispo emérito; fez nove viagens apostólicas pelo mundo; reconheceu os erros que homens da Igreja cometeram ao longo da História; avançou com o movimento ecuménico (Quem não se lembra do abraço com Atenágoras?), tendo mesmo visitado o Centro do Conselho Ecuménico das Igrejas, em Genebra, perante o qual discursou; celebrou junto de e para ativistas do mundo operário; tomou iniciativas memoráveis (Dia Mundial da Paz, Dia Mundial das Vocações, Dia Mundial das Comunicações Sociais, o Ano da Fé por ocasião do XIX Centenário do Martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo, a celebração do Jubileu de 1975,….); e estabeleceu mecanismos concretos do exercício da colegialidade, como a instituição do sínodo dos bispos, a concessão de largas competências às conferências episcopais e aos bispos diocesanos. Por norma, as suas exortações apostólicas eram autónomas, não se revestindo da feição pós-sinodal (os sínodos tinham voz através de mensagens próprias ou através dos competentes dicastérios romanos).
Montini foi um homem de fé eucarística, tendo nesse sentido, acompanhado e honrado com sua presença diversos congressos eucarísticos internacionais e publicado a encíclica Mysterium Fidei, sobre o culto da sagrada Eucaristia, sob a designação “de Mistério da Fé” – “o coração e o centro da Sagrada Liturgia” e “a fonte de vida que nos purifica e robustece”. Mas não podemos olvidar a sua forte devoção mariana, expressa em diversos discursos a congressistas marianos e em reuniões mariológicas, visitando santuários marianos (foi o primeiro papa a visitar Fátima como peregrino pela paz) e publicando, além da já referida exortação apostólica, duas encíclicas marianas, a Mense Maio, com apelos ao êxito do Concílio e à paz no Mundo, e a Christi Matri Rosarii, como tributo à Mãe de Cristo e apelo à verdadeira e duradoura paz.
Paulo VI procurou o diálogo arrojado com o mundo (discursou na sede das Nações Unidas e na Organização Internacional do Trabalho), com os não crentes, com os membros de outras religiões, com outros cristãos – com religiosos e irreligiosos, sem excluir ninguém. Viu-se como humilde testemunha e servo de uma humanidade sofredora e exigiu mudanças significativas dos ricos nas Américas e na Europa, em favor dos pobres do denominado Terceiro Mundo, sugerindo mesmo o encaminhamento para a paz e desenvolvimento de verbas, originariamente predestinadas ao negócio de armamento.
São conhecidas as suas posições de algum cariz mesmo político determinante (não como linha principal de pensamento e atuação, mas como decorrência necessária do humanismo evangélico). Recebeu no Vaticano movimentos independentistas de África, o que foi entendido como reconhecimento da luta dos povos à autodeterminação e independência – para os quais promoveu a formação de clero autóctone – e apoiou a democracia cristã de Aldo Moro (de centro esquerda). O cardeal brasileiro Dom João Brás Aviz, prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, mais conhecida como Congregação para os Religiosos, entende que a beatificação e subsequente canonização de Paulo VI será importante para a Igreja e, em especial, para a da América Latina, por causa da sua atuação no Concílio Vaticano II, a que deu continuidade após a morte de João XXIII.
Mas o citado cardeal fundamenta a sua opinião quando lembra o apoio que Paulo VI deu com a sua presença à Conferência do Episcopado da América Latina de Medellín, realizada na Colômbia, em 1968. Por isso, conclui que a beatificação de Paulo VI dará novo impulso aos documentos aprovados pelo Concílio Vaticano II. “Já se passaram 50 anos” – lamenta – “e, no entanto, metade das conclusões do Concílio ainda não foi posta em prática, o que significa que falta fazer muita coisa”. Referindo-se ao que se passa na área dos religiosos, confessa que “precisamos de mais diálogo, porque não funciona mais o autoritarismo de tempos passados”.
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É certo que alguns esperavam mais do Pontífice oriundo das proximidades de Bréscia, querendo que ele liberalizasse em absoluto a Igreja, esquecendo-se de que a sua formatação teológica era necessariamente pré-conciliar e nem sempre os colaboradores colaboram; outros acusaram-no de dar azo a que os poderes infernais tomassem lugar de relevo na era pós-conciliar. Mas uma coisa é certa: este homem serenamente sofredor pelas contradições algo artificiosas, mas molestantes entre o progressismo e o conservadorismo, não perdeu a tramontana na fidelidade ao depositum fidei e na necessidade do exercício do diálogo, de olhos postos naquele Senhor cujas vezes fazia na Terra. Teve mesmo a ousadia, sugerida por uns e não compreendida pela maior parte, de testemunhar uma extensa profissão de fé não só pessoal, mas sobretudo como sucessor de Pedro, em nome de toda a Igreja (com a reiteração do “cremos” em várias perícopas do símbolo da fé por si redigido, com a conveniente explanação) – o Credo do Povo de Deus, no encerramento do Ano da Fé.
Foi, a meu ver injustamente crucificado pela crítica em matéria da moral familiar no quadro da regulação da natalidade, quando a encíclica e demais linhas discursivas vêm na esteira da produção anterior do Magistério quer papal quer conciliar, porém, com alguma novidade consubstanciada na exceção terapêutica, na abordagem orgânica da matéria e na gestão pastoral das coisas. Apesar da perseverança da exigência moral ao nível dos princípios, não mais ficou lícito – passe o brejeirismo – mandar os presumíveis prevaricadores para o inferno.
Também o criticaram pela manutenção obrigatória do celibato sacerdotal na Igreja Latina (que espero glosar noutro momento de reflexão). Porém, há que reconhecer que a encíclica sobre a matéria é dos documentos mais lúcidos na abordagem da temática, embora não suficientemente destrinçadora do que é doutrinal e do que é disciplinar. E foi com Paulo VI que passou a resolver-se de, algum modo, o que antes praticamente não tinha solução, a não ser a irregularidade: a situação dos sacerdotes que, em consciência, entendiam não dever continuar no exercício das ordens e, em certa medida, a dos religiosos e das religiosas de profissão perpétua que desejassem seguir outro caminho, o acelibatário.
No entanto, quer-me parecer que a grande crítica, para o efeito mobilizadora de todos os demais pretextos, reside na sua opção de ordem moral e social:
“Não dás da tua fortuna, assim afirma santo Ambrósio, ao seres generoso para com o pobre, tu dás daquilo que lhe pertence. Porque o que te atribuis a ti foi dado em comum para uso de todos. A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos. A propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo o que é supérfluo, quando a outros falta o necessário. Numa palavra, “o direito de propriedade nunca deve exercer-se em detrimento do bem comum, segundo a doutrina tradicional dos Padres da Igreja e dos grandes teólogos”. Surgindo algum conflito “entre direitos privados e adquiridos e exigências comunitárias primordiais, é ao poder público que pertence “resolvê-lo, com a participação ativa das pessoas e dos grupos sociais” (Populorum Progressio, 23).
É óbvio que um homem que escreve um texto destes tinha de “sofrer as passas do Algarve”. E, se mais nada houvesse a criticar, teria de ser inventado. Já assim aconteceu com o Mestre dos Papas. Mesmo quando clamou que o diabo tinha invadido as estruturas da Igreja e do mundo, os detratores perguntavam o que é que ele fizera contra isso. Não se sujeitavam ao mecanismo da descoberta proposta das verdades: era necessário o anátema! Tinham para si a verdade de que a revelação acabou com a morte do último apóstolo: nem reparam que a frase sentenciosa tem lá o adjetivo “oficial” referido a “revelação” e que o Espírito sopra donde quer e quando quer.
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Ainda bem que o Mártir do Concílio e da era pós-conciliar, que escolhera o nome de Paulo para indicar que queria espalhar a mensagem de Cristo pelo mundo inteiro, vai conhecer as honras dos altares, ele que cumpriu a tarefa de levar à Igreja e ao Mundo as novidades que o Concílio Vaticano II introduzira. Este porta-concílio veio a Portugal, humilde peregrino, com toda a clareza perante Deus e perante os homens, a suplicar a Nossa Senhora de Fátima que faça reinar na Igreja e no mundo o inestimável bem da paz. E cá deixou o duplo clamor:
– Queremos pedir a Maria uma Igreja viva, uma Igreja verdadeira, uma Igreja unida, uma Igreja santa. 

– Homens, procurai ser dignos do dom divino da paz. Homens, sede homens. Homens, sede bons, sede cordatos, abri-vos à consideração do bem total do mundo. Homens, sede magnânimos.

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