Recebi com agrado a notícia veiculada
pelos órgãos de comunicação social da prevista beatificação de Paulo VI a
celebrar no próximo mês de outubro, provavelmente no dia 19, no final da
assembleia extraordinária do sínodo dos bispos sobre a família. Há mesmo quem
avance que a cerimónia terá lugar em Milão, de que foi arcebispo, presidida pelo
Cardeal Scola, atual líder da arquidiocese, ou pelo Cardeal Amato, prefeito da
Congregação das Causas dos Santos.
Se cada um tem o direito de eleger um
dos bispos de Roma como seu papa de referência, eu assumo como dever, mais do que
como direito, Paulo VI como o meu pontífice de predileção.
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Não quero desdizer uma vírgula sequer
do valor significativo, espiritual e estratégico da graça que foi para a Igreja
e para o mundo o breve pontificado de João XXIII. Para lá do perfil de
humanidade evangélica que se lhe reconhece (talvez
não muito ao pé do espírito e mais à superfície do que seria desejável),
salientam-se:
– O anúncio, a convocação e a
abertura do Concílio Vaticano II, bem como a sua orientação predominantemente
pastoral, com vista ao aggiornamento
da Igreja, na fidelidade ao juízo de Deus, lido nos sinais dos tempos, a partir
das múltiplas mudanças profundas e universais que perpassam o mundo;
– O forte impulso católico ao movimento
ecuménico, preconizado de forma consistente por outras confissões cristãs desde
os primórdios do século XX, a que os católicos foram aderindo;
– E as encíclicas Pacem in Terris, sobre “a paz de todos os povos na base da verdade,
justiça, caridade e liberdade” (com
a assunção cristã dos direitos humanos) e Mater et Magistra, marco importante
da Doutrina Social da Igreja, que, através de uma profunda leitura dos novos “sinais
dos tempos”, atualizou as orientações das encíclicas sociais anteriores,
dando assim a aberta e consolidada resposta católica aos problemas temporais da
época.
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Todavia, o Papa
Paulo VI foi o grande timoneiro da maior revolução da Igreja no século XX,
desencadeada pelo seu predecessor, o novo São João XXIII (é bom que nos vamos habituando à invocação do Santo), centrada no
Concílio e na documentação pós-conciliar. Mas o pontífice não se cingiu ao
grande areópago dos bispos. Além da promulgação dos documentos do Vaticano II e
das cartas apostólicas e similares, regulamentadoras das grandes opções
conciliares, produziu documentos autónomos de enorme importância:
– As
encíclicas Ecclesiam Suam, sobre a
consciência de si, renovação permanente e diálogo interno e externo que
impendem sobre a Igreja, e Populorum
Progressio, dedicada à cooperação entre os povos e ao problema dos países
em desenvolvimento, a denunciar o agravamento do desequilíbrio entre países
ricos, criticando o neocolonialismo e
afirmando o direito de todos os povos ao bem-estar;
– As
exortações apostólicas Evangelii
Nuntiandi, sobre a evangelização no mundo contemporâneo, Signum Magnum, dedicada ao culto da
Virgem Maria, Mãe da Igreja e Modelo de todas as Virtudes, e Gaudete in Domino, sobre a alegria
cristã;
– E a
carta apostólica Octogesima Adveniens,
sobre o compromisso sociopolítico dos cristãos, com a paciente análise das
várias ideologias (as correntes socialistas, a marxista e a liberal), que exigem
um discernimento cristão, e a abordagem lúcida do renascimento das utopias, com
suas virtualidades e riscos.
***
Muito me admira como hoje se apreciam – e bem – as viagens
apostólicas pelo mundo de São João Paulo II (já não as de Bento XVI, saiba-se
lá porquê!) e os gestos proféticos de Francisco, ao passo que se esquece que
Paulo VI teve os seus rasgos apostólicos: depôs a tiara papal, tendo o produto
de sua venda beneficiado os pobres, e assumiu a mitra episcopal; abandonou a sedes gestatória (o andor que
transportava o papa para ser visto pela multidão); reformou a cúria; visitou as
paróquias romanas; criou o anel uniforme para os bispos e cardeais (o dito anel
conciliar); internacionalizou o Sacro Colégio (e distinguiu cardeais eleitores
dos jubilados); criou a figura do bispo emérito; fez nove viagens apostólicas
pelo mundo; reconheceu os erros que homens da Igreja cometeram ao longo da
História; avançou com o movimento ecuménico (Quem não se lembra do abraço com
Atenágoras?), tendo mesmo visitado o Centro
do Conselho Ecuménico das Igrejas, em Genebra, perante o qual discursou;
celebrou junto de e para ativistas do mundo operário; tomou iniciativas
memoráveis (Dia Mundial da Paz, Dia Mundial das Vocações, Dia Mundial das Comunicações Sociais, o Ano da Fé por ocasião do XIX Centenário
do Martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo, a celebração do Jubileu de 1975,….); e estabeleceu mecanismos concretos do
exercício da colegialidade, como a instituição do sínodo dos bispos, a
concessão de largas competências às conferências episcopais e aos bispos
diocesanos. Por norma, as suas exortações apostólicas eram autónomas, não se revestindo
da feição pós-sinodal (os sínodos tinham voz através de mensagens próprias ou através
dos competentes dicastérios romanos).
Montini foi um homem
de fé eucarística, tendo nesse sentido, acompanhado e honrado com sua presença
diversos congressos eucarísticos internacionais e publicado a encíclica Mysterium Fidei, sobre o culto da
sagrada Eucaristia, sob a designação “de Mistério da Fé” – “o coração e o centro da
Sagrada Liturgia” e “a fonte de vida que nos purifica e robustece”. Mas
não podemos olvidar a sua forte devoção mariana, expressa em diversos discursos a congressistas
marianos e em reuniões mariológicas, visitando santuários marianos (foi o
primeiro papa a visitar Fátima como peregrino pela paz) e publicando, além da já
referida exortação apostólica, duas encíclicas marianas, a Mense Maio, com apelos ao êxito do Concílio e à paz no Mundo, e a Christi Matri Rosarii, como tributo à Mãe de
Cristo e apelo à verdadeira e duradoura paz.
Paulo VI procurou o diálogo
arrojado com o mundo (discursou na sede das Nações Unidas e na Organização Internacional
do Trabalho), com os não crentes, com os membros de outras religiões, com outros
cristãos – com religiosos e irreligiosos, sem excluir ninguém. Viu-se como
humilde testemunha e servo de uma humanidade sofredora e exigiu mudanças
significativas dos ricos nas Américas e
na Europa, em favor dos pobres do denominado Terceiro Mundo,
sugerindo mesmo o encaminhamento para a paz e desenvolvimento de verbas, originariamente
predestinadas ao negócio de armamento.
São conhecidas as
suas posições de algum cariz mesmo político determinante (não como linha
principal de pensamento e atuação, mas como decorrência necessária do humanismo
evangélico). Recebeu no Vaticano movimentos independentistas de África, o que
foi entendido como reconhecimento da luta dos povos à autodeterminação e
independência – para os quais promoveu a formação de clero autóctone – e apoiou
a democracia cristã de Aldo Moro (de centro esquerda). O cardeal brasileiro Dom João Brás
Aviz, prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as
Sociedades de Vida Apostólica, mais conhecida como Congregação para os
Religiosos, entende que a beatificação e subsequente canonização de Paulo VI será
importante para a Igreja e, em especial, para a da América Latina, por causa da
sua atuação no Concílio Vaticano II, a que deu continuidade após a morte de
João XXIII.
Mas o citado cardeal fundamenta a sua
opinião quando lembra o apoio que Paulo VI deu com a sua presença à Conferência
do Episcopado da América Latina de Medellín, realizada na Colômbia, em 1968. Por
isso, conclui que a beatificação de Paulo VI dará novo impulso aos documentos
aprovados pelo Concílio Vaticano II. “Já se passaram 50 anos” – lamenta – “e,
no entanto, metade das conclusões do Concílio ainda não foi posta em prática, o
que significa que falta fazer muita coisa”. Referindo-se ao que se passa na
área dos religiosos, confessa que “precisamos de mais diálogo, porque não
funciona mais o autoritarismo de tempos passados”.
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É certo que alguns esperavam mais do Pontífice
oriundo das proximidades de Bréscia, querendo que ele liberalizasse em absoluto
a Igreja, esquecendo-se de que a sua formatação teológica era necessariamente pré-conciliar
e nem sempre os colaboradores colaboram; outros acusaram-no de dar azo a que os
poderes infernais tomassem lugar de relevo na era pós-conciliar. Mas uma coisa
é certa: este homem serenamente sofredor pelas contradições algo artificiosas, mas
molestantes entre o progressismo e o conservadorismo, não perdeu a tramontana
na fidelidade ao depositum fidei e na
necessidade do exercício do diálogo, de olhos postos naquele Senhor cujas vezes
fazia na Terra. Teve mesmo a ousadia, sugerida por uns e não compreendida pela
maior parte, de testemunhar uma extensa profissão de fé não só pessoal, mas sobretudo
como sucessor de Pedro, em nome de toda a Igreja (com a reiteração do “cremos”
em várias perícopas do símbolo da fé por si redigido, com a conveniente
explanação) – o Credo do Povo de Deus,
no encerramento do Ano da Fé.
Foi, a meu ver injustamente crucificado
pela crítica em matéria da moral familiar no quadro da regulação da natalidade,
quando a encíclica e demais linhas discursivas vêm na esteira da produção anterior
do Magistério quer papal quer conciliar, porém, com alguma novidade consubstanciada
na exceção terapêutica, na abordagem orgânica da matéria e na gestão pastoral
das coisas. Apesar da perseverança da exigência moral ao nível dos princípios,
não mais ficou lícito – passe o brejeirismo – mandar os presumíveis prevaricadores
para o inferno.
Também o criticaram pela manutenção obrigatória
do celibato sacerdotal na Igreja Latina (que espero glosar noutro momento de
reflexão). Porém, há que reconhecer que a encíclica sobre a matéria é dos
documentos mais lúcidos na abordagem da temática, embora não suficientemente destrinçadora
do que é doutrinal e do que é disciplinar. E foi com Paulo VI que passou a
resolver-se de, algum modo, o que antes praticamente não tinha solução, a não
ser a irregularidade: a situação dos sacerdotes que, em consciência, entendiam
não dever continuar no exercício das ordens e, em certa medida, a dos
religiosos e das religiosas de profissão perpétua que desejassem seguir outro
caminho, o acelibatário.
No entanto, quer-me parecer que a
grande crítica, para o efeito mobilizadora de todos os demais pretextos, reside
na sua opção de ordem moral e social:
“Não dás da
tua fortuna, assim afirma santo Ambrósio, ao seres generoso para com o pobre,
tu dás daquilo que lhe pertence. Porque o que te atribuis a ti foi dado em
comum para uso de todos. A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos. A propriedade privada não constitui
para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem direito de reservar
para seu uso exclusivo o que é supérfluo, quando a outros falta o necessário.
Numa palavra, “o direito de propriedade nunca deve exercer-se em detrimento do
bem comum, segundo a doutrina tradicional dos Padres da Igreja e dos grandes
teólogos”. Surgindo algum conflito “entre direitos privados e adquiridos e
exigências comunitárias primordiais, é ao poder público que pertence “resolvê-lo,
com a participação ativa das pessoas e dos grupos sociais” (Populorum Progressio,
23).
É óbvio que um homem que
escreve um texto destes tinha de “sofrer as passas do Algarve”. E, se mais nada
houvesse a criticar, teria de ser inventado. Já assim aconteceu com o Mestre dos
Papas. Mesmo quando clamou que o diabo tinha invadido as estruturas da Igreja
e do mundo, os detratores perguntavam o que é que ele fizera contra isso. Não se
sujeitavam ao mecanismo da descoberta proposta das verdades: era necessário o
anátema! Tinham para si a verdade de que a revelação acabou com a morte do
último apóstolo: nem reparam que a frase sentenciosa tem lá o adjetivo “oficial”
referido a “revelação” e que o Espírito sopra donde quer e quando quer.
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Ainda bem que o Mártir do
Concílio e da era pós-conciliar, que escolhera o nome de Paulo para indicar que
queria espalhar a mensagem de Cristo pelo mundo inteiro, vai conhecer as honras
dos altares, ele que cumpriu a tarefa de levar à Igreja e ao Mundo as novidades
que o Concílio Vaticano II introduzira. Este porta-concílio veio a Portugal,
humilde peregrino, com toda a clareza perante Deus e perante os homens, a suplicar a Nossa Senhora de Fátima que faça
reinar na Igreja e no mundo o inestimável bem da paz.
E cá deixou o duplo clamor:
– Queremos pedir a Maria uma Igreja viva, uma Igreja
verdadeira, uma Igreja unida, uma Igreja santa.
– Homens, procurai ser
dignos do dom divino da paz. Homens, sede homens. Homens, sede bons, sede
cordatos, abri-vos à consideração do bem total do mundo. Homens, sede
magnânimos.
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