domingo, 11 de maio de 2014

A Igreja segundo o Papa Francisco

Nota prévia
O Papa Francisco é o primeiro dos Sumos Pontífices pós-conciliares que não teve participação nos trabalhos conciliares e a sua formação teológica inicial, passe a expressão, decorreu no momento de viragem dos estudos teológicos. É óbvio que a sua atividade apostólica e pastoral, tão intensa e diversificada, não se entende sem um contacto contínuo com o avanço teológico, que não de mera abordagem superficial. Tanto assim parece ser que o modo flexível como aflora as questões doutrinais, até no discurso menos formal, revela uma segurança plástica aliada a uma singular profundeza, impercetível aos espíritos menos atentos. Tratar por tu as questões consideradas fundamentais não significa falta de estudo e de conhecimento; pelo contrário, pode significar – e significa muitas vezes – domínio, segurança, à vontade.

Percurso homilético de Francisco
Ora, neste contexto, será interessante verificar algumas das noções de Igreja que o atual sucessor de São Pedro veicula para os seus destinatários de discurso homilético e testemunho.
E a ideia de Igreja, explicitada na sua primeira aparição como Sumo Pontífice (13-03-2013), é a de uma coletividade – “bispo e povo” – que vai a caminho. E este caminho será “de fraternidade, de amor, de confiança entre nós e promotor de “uma grande fraternidade” em “todo o mundo”. A dinâmica do caminho (de partilha-solidariedade) é retomada na celebração do Corpus Christi (30-05-2013), à luz da Eucaristia:
Isto diz-nos que na Igreja, mas também na sociedade, uma palavra-chave de que não devemos ter receio é “solidariedade”, ou seja, saber pôr à disposição de Deus aquilo que temos, as nossas capacidades humildes, porque só na partilha e no dom a nossa vida será fecunda e dará fruto. [...]. Na Eucaristia, o Senhor faz-nos percorrer o seu caminho, que é de serviço, de partilha e de dom, e o pouco que temos, o pouco que somos, se for compartilhado, torna-se riqueza porque o poder de Deus, que é de amor, desce até à nossa pobreza para a transformar.
Na homilia da primeira celebração eucarística com os cardeais, a Igreja aparece como um “edifício” em permanente construção, feito de pedras vivas sobre a pedra angular que é Jesus Cristo e como esposa de Cristo, cujo guardião é são José, tal como o foi de Maria, figura e modelo da mesma Igreja, corpo místico de Jesus Cristo (vd tb homilia da inauguração do seu exercício do ministério petrino).
E na missa crismal de Quinta-feira Santa (2013), vislumbra-se a Igreja na sua dimensão de “povo” que beneficia da unção de seus sacerdotes, mas à maneira de “rebanho” em cujas periferias há dor, sofrimento e pobreza, devendo os pastores acorrer a essas periferias e viver com o odor das ovelhas e não no conforto do centro. Esta imagem do rebanho, que postula, acima de tudo, a solicitude dos pastores, como seus modelos, aflora na profissão de fé com a CEP italiana, a 23 de maio do mesmo ano:
Não somos expressão de uma estrutura, nem de uma necessidade organizativa: também com o serviço da nossa autoridade somos chamados a ser sinal da presença e da ação do Senhor ressuscitado, portanto a edificar a comunidade na caridade fraterna. Não é uma certeza: com efeito, até o maior amor, quando não é alimentado continuamente, debilita-se e apaga-se. Não é sem motivo que o apóstolo Paulo admoesta: “Cuidai de vós mesmos e de todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para apascentar a Igreja de Deus, que Ele adquiriu com o próprio sangue” (At 20,28). [...]. “Tende cuidado dele (do rebanho), não constrangidos, mas espontaneamente, não por amor a interesses vergonhosos, mas com dedicação, não como dominadores absolutos sobre as comunidades que vos são confiadas, mas como modelos do vosso rebanho” (1Pd 5, 2-3).
Uma síntese das noções de Igreja se pode ler no texto da homilia da ordenação de presbíteros em 21-04-2013: “Corpo de Cristo (…), Povo de Deus e Templo sagrado do Espírito Santo” é a Igreja, “a guardiã da palavra de Deus”, chamada a constituir uma só família, a da fraternidade universal. É o corpo cuja cabeça é Cristo ressuscitado de que todos, fiéis e pastores, têm de dar testemunho, é o edifício em cuja edificação todos têm de cooperar em união com o mesmo Cristo.
Mas Francisco, no seu percurso de mediador (e não de intermediário), para seus irmãos na fé, do ser e missão da Igreja no mundo, descobre-nos três dimensões basilares da Igreja, em 23 de abril do seu primeiro ano de pontificado: a missionariedade, a maternidade e a alegria.
A missionariedade descobriu-a a Igreja, pelo impulso do Espírito Santo, aquando das primeiras perseguições: “Algumas pessoas de Chipre e de Cirene, que se tinham tornado cristãs, chegadas a Antioquia, começaram a falar também aos gregos (cf. At 11,20). Trata-se de mais um passo; e assim avança a Igreja”. 
Quanto à maternidade da Igreja, diz o Papa, fixando-se nos primórdios:
Ele (Barnabé) observou, e viu que tudo caminhava bem (cf. At 11,23). E a Igreja assim vê crescer a sua maternidade: é Mãe de mais filhos, de muitos filhos; torna-se Mãe, sempre mais Mãe. E Mãe que nos dá a fé, Mãe que nos dá a identidade. A identidade cristã não é dada por um bilhete de identidade; a identidade cristã é pertença à Igreja: todos estes pertenciam à Igreja, à Igreja Mãe, porque não é possível encontrar Jesus fora da Igreja.
No atinente à alegria, Francisco cita o livro dos Atos, a Patrística e o seu predecessor Paulo VI:
“Quando Barnabé chegou e viu a graça que Deus havia concedido, ficou muito contente” (At 11,23). É a alegria própria do evangelizador; é, como dizia Paulo VI, “a doce e consoladora alegria de evangelizar” (cf. Evangelii Nuntiandi, 80). E esta alegria aparece na sequência de uma perseguição, de uma grande tristeza, e termina com a alegria. E assim a Igreja avança, como diz um Santo, entre as perseguições do mundo e as consolações do Senhor (cf. S. Agostinho, De Civitate Dei, 18, 51, 2: PL41, 614).
E assegura que “a Igreja caminha sempre entre a Cruz e a Ressurreição, entre as perseguições e as consolações do Senhor” e que “este é o caminho: quem vai por esta estrada não se engana”.
No Pentecostes do mesmo ano de 2013, o Papa apresenta-nos a Igreja como portadora de Cristo ao homem e do homem a Cristo, mas numa caminhada conjunta e una na diversidade das pessoas e suas manifestações. E esta unidade anímica é obra do Espírito Santo que impele o avanço na caminhada, tal como o vento faz à vela da respetiva barca:
O Espírito Santo faz-nos entrar no mistério do Deus vivo e salva-nos do perigo de uma Igreja gnóstica e de uma Igreja narcisista, fechada no seu recinto; impele-nos a abrir as portas e sair para anunciar e testemunhar a vida boa do Evangelho, para comunicar a alegria da fé, do encontro com Cristo. O Espírito Santo é a alma da missão. […]. É o Espírito Paráclito, o «Consolador», que dá a coragem de levar o Evangelho pelas estradas do mundo! O Espírito Santo ergue o nosso olhar para o horizonte e impele-nos para as periferias da existência a fim de anunciar a vida de Jesus Cristo. 
Bergoglio apresenta também como imagem da Igreja o mosaico, que faz unidade na variedade:
Um grande mosaico onde todos os ladrilhos concorrem para formar o único grande desígnio de Deus. E isto deve impelir a superar sempre todo o conflito que possa ferir o corpo da Igreja. Unidos nas diferenças: não há outra estrada para nos unirmos (29-06-2013). 
A 7 de julho, contemplamos pela mão de Francisco a Igreja como a cidade santa sobre a qual o Senhor derrama “uma cascata de consolação – ficando assim repletos de consolação –, uma cascata de ternura materna”. E, considerando que “a Igreja – repetia Bento XVI – não é nossa, mas de Deus”, ela há de encontrar a sua força na oração, pois é uma comunidade orante, atenta ao Espírito de Deus. E tem como ação essencial a evangelização. Mas como evangelizar?
A evangelização faz-se de joelhos. Ouvi bem: “A evangelização faz-se de joelhos”. Sede sempre homens e mulheres de oração! Sem o relacionamento constante com Deus a missão torna-se um ofício. 
E para evangelizar bate à porta de Maria, rogando: “mostra-nos Jesus”. Assim, “a Igreja sai em missão sempre na esteira de Maria” (cf homilia em Aparecida, 24-07-2013), não como quem impõe, mas na dinâmica da promoção da cultura do encontro (cf homilia em São Sebastião, Rio de Janeiro, a 27-07-2013). No entanto, ela congrega todos aqueles que são enviados a toda parte sem medo e para servir: “Partilhar a experiência da fé, testemunhar a fé, anunciar o Evangelho é o mandato que o Senhor confia a toda a Igreja”. (cf homilia à JMJ no Rio de Janeiro).
Todavia, o Papa não olvida a feição hierárquica da Igreja, já que se trata de um corpo orgânico, quando, na memória de Santo Inácio de Loyola (31-07-2013), afirma a centralidade da Igreja associada umbilicalmente à centralidade de Cristo:
Cristo é a nossa vida! À centralidade de Cristo corresponde também a centralidade da Igreja: são dois focos que não se podem separar: não posso seguir Cristo, a não ser na Igreja e com a Igreja. E também neste caso nós, jesuítas, e toda a Companhia não estamos no centro, estamos por assim dizer “deslocados”, estamos ao serviço de Cristo e da Igreja, Esposa de Cristo nosso Senhor, que é a nossa Santa Mãe Igreja Hierárquica.
E, na solenidade da Assunção (15-08-2013), assoma a dialética do e do ainda não da Igreja, a partir da mulher do Apocalipse, que se aplica à Igreja e a Maria, seu início e modelo. A figura da mulher é, simultaneamente, gloriosa, triunfante e, ainda, se encontra em dificuldade. Assim é a Igreja – Povo de Deus ainda peregrinante, até que chegue o dia do Senhor: se no Céu já está associada à glória de seu Senhor, na história enfrenta constantemente as provações e desafios, o que supõe o conflito entre Deus e o maligno. E, nesta luta que os discípulos de Jesus devem enfrentar, Maria não os deixa sozinhos; a Mãe de Cristo e da Igreja, seu sinal de esperança, está sempre connosco e sempre caminha connosco.
Mas, em ambiente de celebração de ordenação episcopal (24-10-2013), brotam as ideias de Corpo de Cristo e família do Pai.
Na festa da Apresentação do Senhor (02-02-2014), dia mundial da vida consagrada, ressoa a imagem da Igreja como espaço de carismas dos fundadores dos institutos de vida consagrada e como o Templo em cujo centro encontramos Cristo, trazido por dois jovens, Maria e José, em diálogo com dois anciãos proféticos (Simeão e Ana); espaço de encontro intergeracional, espaço “onde podemos encontrá-lo (a Jesus), reconhecê-lo, recebê-lo e também abraçá-lo”.
Se o horizonte da Igreja é o Ressuscitado (19-04-2014), a missa de ação de graças pela canonização de José de Anchieta (24-04-2014) fá-la viver e crescer com a alegria contagiante:
A alegria do encontro com Jesus Cristo, aquela que temos tanto medo de aceitar, é contagiosa e clama o anúncio: é ali que a Igreja cresce! O paralítico acredita, porque a Igreja não se desenvolve por proselitismo, mas por atração; a atração do testemunho da alegria que anuncia Jesus Cristo. Este testemunho que nasce da alegria acolhida e transformada em anúncio. Trata-se da alegria fundante! Sem esta alegria, sem este júbilo não se pode fundar uma Igreja! Não se consegue instituir uma comunidade cristã! É alegria apostólica, que irradia, que se propaga.
Porém, é na celebração da canonização de João XXIII e João Paulo II que Francisco, por via homilética, é mais explícito na apresentação da visão originária de Igreja: “É uma comunidade onde se vive o essencial do Evangelho, isto é, o amor, a misericórdia, com simplicidade e fraternidade”. E apresenta o segredo do seu avanço na História – a força dos santos:
João XXIII e João Paulo II colaboraram com o Espírito Santo para restabelecer e atualizar a Igreja segundo a sua fisionomia originária, a fisionomia que lhe deram os santos ao longo dos séculos. Não esqueçamos que são precisamente os santos que levam avante e fazem crescer a Igreja.

Concluindo
Percorrido singelamente este percurso homilético franciscano ainda breve no tempo, não admira que o Papa insista na ideia e exigência de uma Igreja em saída do centro para as periferias do sofrimento e da miséria, no combate à opressão e repressão, à injustiça e às desigualdades (que recuse o conforto do centro, mas a ele volte para se purificar e tonificar com a força do Alto); numa Igreja missionária que anuncie o essencial – Cristo Ressuscitado – com a alegria do Evangelho; numa Igreja que ande como povo peregrino, mas não vagabundo, que cresça e faça crescer mercê da sua maternidade, que ame e se faça amar como esposa de Cristo que é, que se cuide e cuide como corpo orgânico que é e que gera nova vida em seres verdadeiramente humanos que aspiram à concretização da dignidade de pessoas; enfim, numa Igreja orgânica, acolhedora, abraçante, transparente – que tem consciência de si, se renova e tem algo a comunicar ao mundo, em que lê os sinais que forem de Deus.
É justo que Francisco recuse o empresarialismo de uma Igreja carreirista e aconselhe o alpinismo a quem pretenda subir, já que nesta comunidade de amor e perdão, serve-se e não se é servido; é justo que não aceite a ideia de uma ONG, porque a Igreja está ao serviço da vida e vida em abundância e não é uma simples repartidora burocrática de bens e serviços – ela é mesmo um hospital de campanha ao serviço de uma humanidade ferida, acidentada, doente.
É pertinente que o Papa recuse uma Igreja gnóstica e narcisista (cheia só de conhecimento, ciência e cultura; e a olhar só para o umbigo) ou a Igreja como mera “universidade de religiões”, mas um povo, comunidade, família referenciada permanentemente a Cristo Mestre, Sacerdote, Pastor – o guia das nossas almas.
Finalmente, o Santo Padre, a 9 de maio pp, ao receber os participantes do encontro das Pontifícias Obras Missionárias, declarou que, na exortação apostólica “Evangelii gaudium”, convidou todos os fiéis a uma nova estação evangelizadora: “Evangelizar, neste momento de grande mudança social, requer uma Igreja missionária, toda em atitude de saída, capaz de discernir e enfrentar as diferentes culturas e visões de homem”, no contexto de “uma Igreja renovada e transformada pela contemplação e contacto pessoal com Cristo pelo poder do Espírito Santo”, bem necessária “num mundo em mudança”. É o Espírito Santo que – diz o Papa – “nos dá força para empreender o caminho missionário e a alegria do anúncio para que a luz de Cristo ilumine todos aqueles que ainda não o conhecem ou o rejeitaram”. E acrescenta que “não nos podem parar nem as nossas debilidades, nem os nossos pecados, nem tantos obstáculos colocados ao testemunho e anúncio do Evangelho”, quando urge ganhar e manter a coragem de “chegar em todas as periferias que precisem da luz do Evangelho”.
Bastava este discurso papal, no dia da Europa envelhecida e cansada de egoísmos e narcisismos, para que ressoasse em todo o orbe uma nova e sempre verdadeira noção de Igreja:
A Igreja é “o povo das bem-aventuranças e a casa dos pobres, dos aflitos, dos excluídos e perseguidos, daqueles que têm fome e sede de justiça”. E, como é “missionária por natureza, tem como prerrogativa fundamental o serviço de caridade a todos” – a começar “dos últimos, dos pobres, dos  que têm as costas dobradas pelo peso do cansaço e da vida” – e são inerentes à sua vida e missão no mundo e para o mundo “a fraternidade e a solidariedade universal”.


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