Nota prévia
O Papa Francisco é o primeiro dos Sumos Pontífices
pós-conciliares que não teve participação nos trabalhos conciliares e a sua
formação teológica inicial, passe a expressão, decorreu no momento de viragem
dos estudos teológicos. É óbvio que a sua atividade apostólica e pastoral, tão
intensa e diversificada, não se entende sem um contacto contínuo com o avanço
teológico, que não de mera abordagem superficial. Tanto assim parece ser que o
modo flexível como aflora as questões doutrinais, até no discurso menos formal,
revela uma segurança plástica aliada a uma singular profundeza, impercetível
aos espíritos menos atentos. Tratar por tu as questões consideradas
fundamentais não significa falta de estudo e de conhecimento; pelo contrário,
pode significar – e significa muitas vezes – domínio, segurança, à vontade.
Percurso homilético de Francisco
Ora, neste contexto, será interessante verificar
algumas das noções de Igreja que o atual sucessor de São Pedro veicula para os
seus destinatários de discurso homilético e testemunho.
E a ideia de Igreja, explicitada na sua primeira
aparição como Sumo Pontífice (13-03-2013), é a de uma coletividade – “bispo e povo” – que vai a caminho. E este caminho será “de fraternidade, de
amor, de confiança entre nós” e promotor de “uma
grande fraternidade” em “todo o mundo”.
A dinâmica do caminho (de partilha-solidariedade) é retomada na celebração do Corpus Christi (30-05-2013), à luz da
Eucaristia:
Isto diz-nos que na Igreja, mas também na sociedade, uma palavra-chave
de que não devemos ter receio é “solidariedade”, ou seja, saber pôr à
disposição de Deus aquilo que temos, as nossas capacidades humildes, porque só
na partilha e no dom a nossa vida será fecunda e dará fruto. [...]. Na Eucaristia, o Senhor faz-nos percorrer o seu caminho, que é de
serviço, de partilha e de dom, e o pouco que temos, o pouco que somos, se for
compartilhado, torna-se riqueza porque o poder de Deus, que é de amor, desce
até à nossa pobreza para a transformar.
Na homilia da primeira celebração eucarística com os
cardeais, a Igreja aparece como um “edifício”
em permanente construção, feito de pedras vivas sobre a pedra angular que é
Jesus Cristo e como esposa de Cristo,
cujo guardião é são José, tal como o foi de Maria, figura e modelo da mesma
Igreja, corpo místico de Jesus Cristo
(vd tb homilia da inauguração do seu exercício do ministério petrino).
E na missa crismal de Quinta-feira Santa (2013), vislumbra-se
a Igreja na sua dimensão de “povo”
que beneficia da unção de seus sacerdotes, mas à maneira de “rebanho” em cujas periferias há dor,
sofrimento e pobreza, devendo os pastores acorrer a essas periferias e viver
com o odor das ovelhas e não no conforto do centro. Esta imagem do rebanho, que
postula, acima de tudo, a solicitude dos pastores, como seus modelos, aflora na
profissão de fé com a CEP italiana, a 23 de maio do mesmo ano:
Não somos expressão de uma
estrutura, nem de uma necessidade organizativa: também com o serviço da nossa
autoridade somos chamados a ser sinal da presença e da ação do Senhor
ressuscitado, portanto a edificar a comunidade na caridade fraterna. Não é uma
certeza: com efeito, até o maior amor, quando não é alimentado continuamente,
debilita-se e apaga-se. Não é sem motivo que o apóstolo Paulo admoesta: “Cuidai de vós mesmos e de todo o
rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para apascentar a
Igreja de Deus, que Ele adquiriu com o próprio sangue” (At 20,28).
[...]. “Tende cuidado dele (do rebanho), não
constrangidos, mas espontaneamente, não por amor a interesses vergonhosos, mas
com dedicação, não como dominadores absolutos sobre as comunidades que vos são
confiadas, mas como modelos do vosso rebanho” (1Pd 5, 2-3).
Uma síntese das noções de Igreja se pode ler no texto
da homilia da ordenação de presbíteros em 21-04-2013: “Corpo de Cristo (…), Povo de Deus e Templo sagrado do Espírito Santo” é a Igreja, “a guardiã da palavra de Deus”, chamada a
constituir uma só família, a da
fraternidade universal. É o corpo cuja cabeça é Cristo ressuscitado de que
todos, fiéis e pastores, têm de dar testemunho, é o edifício em cuja edificação
todos têm de cooperar em união com o mesmo Cristo.
Mas
Francisco, no seu percurso de mediador (e não de intermediário), para seus
irmãos na fé, do ser e missão da Igreja no mundo, descobre-nos três dimensões
basilares da Igreja, em 23 de abril do seu primeiro ano de pontificado: a
missionariedade, a maternidade e a alegria.
A
missionariedade descobriu-a a Igreja, pelo impulso do Espírito Santo, aquando
das primeiras perseguições: “Algumas pessoas de Chipre e de Cirene, que se
tinham tornado cristãs, chegadas a Antioquia, começaram a falar também aos
gregos (cf. At 11,20). Trata-se de mais um passo; e
assim avança a Igreja”.
Quanto à
maternidade da Igreja, diz o Papa, fixando-se nos primórdios:
Ele (Barnabé) observou, e viu que tudo caminhava bem (cf. At 11,23). E a Igreja assim vê crescer a
sua maternidade: é Mãe de mais filhos, de muitos filhos; torna-se Mãe, sempre
mais Mãe. E Mãe que nos dá a fé, Mãe que nos dá a identidade. A identidade
cristã não é dada por um bilhete de identidade; a identidade cristã é pertença
à Igreja: todos estes pertenciam à Igreja, à Igreja Mãe, porque não é possível
encontrar Jesus fora da Igreja.
No atinente à alegria, Francisco cita o livro dos
Atos, a Patrística e o seu predecessor Paulo VI:
“Quando Barnabé chegou e viu a graça que Deus havia concedido, ficou
muito contente” (At 11,23).
É a alegria própria do evangelizador; é, como dizia Paulo VI, “a doce e
consoladora alegria de evangelizar” (cf. Evangelii Nuntiandi, 80). E esta alegria aparece na sequência de uma
perseguição, de uma grande tristeza, e termina com a alegria. E assim a Igreja
avança, como diz um Santo, entre as perseguições do mundo e as consolações do
Senhor (cf. S. Agostinho, De
Civitate Dei, 18, 51, 2: PL41,
614).
E assegura que “a Igreja caminha sempre entre a
Cruz e a Ressurreição, entre as perseguições e as consolações do Senhor” e que
“este é o caminho: quem vai por esta estrada não se engana”.
No Pentecostes do mesmo ano de 2013, o Papa
apresenta-nos a Igreja como portadora de Cristo ao homem e do homem a Cristo,
mas numa caminhada conjunta e una na diversidade das pessoas e suas
manifestações. E esta unidade anímica é obra do Espírito Santo que impele o
avanço na caminhada, tal como o vento faz à vela da respetiva barca:
O Espírito Santo faz-nos entrar no mistério do Deus vivo e salva-nos do
perigo de uma Igreja gnóstica e de uma Igreja narcisista, fechada no seu
recinto; impele-nos a abrir as portas e sair para anunciar e testemunhar a vida
boa do Evangelho, para comunicar a alegria da fé, do encontro com Cristo. O
Espírito Santo é a alma da missão. […]. É o Espírito Paráclito, o «Consolador», que dá a coragem de
levar o Evangelho pelas estradas do mundo! O Espírito Santo ergue o nosso olhar
para o horizonte e impele-nos para as periferias da existência a fim de
anunciar a vida de Jesus Cristo.
Bergoglio apresenta também como imagem da Igreja o mosaico,
que faz unidade na variedade:
Um grande mosaico onde todos os ladrilhos concorrem para formar o único
grande desígnio de Deus. E isto deve impelir a superar sempre todo o conflito
que possa ferir o corpo da Igreja. Unidos nas diferenças: não há outra estrada
para nos unirmos (29-06-2013).
A 7 de julho, contemplamos pela mão de Francisco a
Igreja como a cidade santa sobre a
qual o Senhor derrama “uma cascata
de consolação – ficando assim repletos de consolação –, uma cascata de ternura materna”. E,
considerando que “a Igreja – repetia Bento XVI – não
é nossa, mas de Deus”, ela há de encontrar a sua força na oração, pois é uma comunidade
orante, atenta ao Espírito de Deus. E tem como ação essencial a evangelização.
Mas como evangelizar?
A evangelização faz-se de joelhos. Ouvi bem: “A evangelização faz-se de
joelhos”. Sede sempre homens e mulheres de oração! Sem o relacionamento
constante com Deus a missão torna-se um ofício.
E para evangelizar bate à porta de Maria,
rogando: “mostra-nos Jesus”. Assim, “a Igreja sai em missão
sempre na esteira de Maria” (cf homilia em Aparecida, 24-07-2013), não como
quem impõe, mas na dinâmica da promoção da cultura
do encontro (cf homilia em São Sebastião,
Rio de Janeiro, a 27-07-2013). No entanto, ela
congrega todos aqueles que são enviados a toda parte sem medo e para servir: “Partilhar
a experiência da fé, testemunhar a fé, anunciar o Evangelho é o mandato que o
Senhor confia a toda a Igreja”. (cf homilia à JMJ no Rio de Janeiro).
Todavia,
o Papa não olvida a feição hierárquica da Igreja, já que se trata de um corpo
orgânico, quando, na memória de Santo Inácio de Loyola (31-07-2013), afirma a centralidade
da Igreja associada umbilicalmente à centralidade de Cristo:
Cristo é a nossa vida! À centralidade de Cristo corresponde também a
centralidade da Igreja: são dois focos que não se podem separar: não posso
seguir Cristo, a não ser na Igreja e com a Igreja. E também neste caso nós, jesuítas, e toda a
Companhia não estamos no centro, estamos por assim dizer “deslocados”, estamos
ao serviço de Cristo e da Igreja, Esposa de Cristo nosso Senhor, que é a nossa
Santa Mãe Igreja Hierárquica.
E, na solenidade da Assunção (15-08-2013), assoma
a dialética do já e do ainda não da Igreja, a partir da
mulher do Apocalipse, que se aplica à Igreja e a Maria, seu início e modelo. A figura
da mulher é, simultaneamente, gloriosa, triunfante e, ainda, se encontra em
dificuldade. Assim é a Igreja – Povo de Deus ainda peregrinante, até que chegue
o dia do Senhor: se no Céu já está associada à glória de seu Senhor, na
história enfrenta constantemente as provações e desafios, o que supõe o conflito
entre Deus e o maligno. E, nesta luta que os discípulos de Jesus devem
enfrentar, Maria não os deixa sozinhos; a Mãe de Cristo e da Igreja, seu sinal
de esperança, está sempre connosco e sempre caminha connosco.
Mas, em ambiente
de celebração de ordenação episcopal (24-10-2013), brotam as ideias de Corpo de Cristo e família do Pai.
Na festa
da Apresentação do Senhor (02-02-2014), dia mundial da vida consagrada, ressoa
a imagem da Igreja como espaço de carismas dos fundadores dos institutos de vida
consagrada e como o Templo em cujo
centro encontramos Cristo, trazido por dois jovens, Maria e José, em diálogo
com dois anciãos proféticos (Simeão e Ana); espaço de encontro intergeracional,
espaço “onde podemos encontrá-lo (a Jesus), reconhecê-lo, recebê-lo e também
abraçá-lo”.
Se o
horizonte da Igreja é o Ressuscitado (19-04-2014), a missa de ação de graças
pela canonização de José de Anchieta (24-04-2014) fá-la viver e crescer com a
alegria contagiante:
A alegria do encontro com Jesus Cristo, aquela que temos tanto medo de
aceitar, é contagiosa e clama o anúncio: é ali que a Igreja cresce! O
paralítico acredita, porque a Igreja não se desenvolve por proselitismo, mas
por atração; a atração do testemunho da alegria que anuncia Jesus Cristo. Este
testemunho que nasce da alegria acolhida e transformada em anúncio. Trata-se da
alegria fundante! Sem esta alegria, sem este júbilo não se pode fundar uma
Igreja! Não se consegue instituir uma comunidade cristã! É alegria apostólica,
que irradia, que se propaga.
Porém, é
na celebração da canonização de João XXIII e João Paulo II que Francisco, por
via homilética, é mais explícito na apresentação da visão originária de Igreja:
“É uma comunidade onde se vive o essencial do Evangelho, isto é, o amor, a misericórdia, com simplicidade e
fraternidade”. E apresenta o segredo do seu avanço na História – a força
dos santos:
João XXIII e João Paulo II colaboraram com o Espírito Santo para restabelecer e atualizar
a Igreja segundo a sua fisionomia originária, a
fisionomia que lhe deram os santos ao longo dos séculos. Não esqueçamos que são
precisamente os santos que levam avante e fazem crescer a Igreja.
Concluindo
Percorrido singelamente este percurso homilético
franciscano ainda breve no tempo, não admira que o Papa insista na ideia e exigência
de uma Igreja em saída do centro para as periferias do sofrimento e da miséria,
no combate à opressão e repressão, à injustiça e às desigualdades (que recuse o conforto do centro, mas a ele
volte para se purificar e tonificar com a força do Alto); numa Igreja
missionária que anuncie o essencial – Cristo Ressuscitado – com a alegria do
Evangelho; numa Igreja que ande como povo peregrino, mas não vagabundo, que cresça
e faça crescer mercê da sua maternidade, que ame e se faça amar como esposa de Cristo
que é, que se cuide e cuide como corpo orgânico que é e que gera nova vida em
seres verdadeiramente humanos que aspiram à concretização da dignidade de
pessoas; enfim, numa Igreja orgânica, acolhedora, abraçante, transparente – que
tem consciência de si, se renova e tem algo a comunicar ao mundo, em que lê os sinais
que forem de Deus.
É justo que Francisco recuse o empresarialismo de uma Igreja
carreirista e aconselhe o alpinismo a quem pretenda subir, já que nesta
comunidade de amor e perdão, serve-se e não se é servido; é justo que não
aceite a ideia de uma ONG, porque a Igreja está ao serviço da vida e vida em abundância
e não é uma simples repartidora burocrática de bens e serviços – ela é mesmo um
hospital de campanha ao serviço de uma humanidade ferida, acidentada, doente.
É pertinente que o Papa recuse uma Igreja gnóstica e narcisista
(cheia só de conhecimento, ciência e cultura; e a olhar só para o umbigo) ou a Igreja
como mera “universidade de religiões”, mas um povo, comunidade, família referenciada
permanentemente a Cristo Mestre, Sacerdote, Pastor – o guia das nossas almas.
Finalmente, o Santo Padre, a 9 de maio pp, ao receber os participantes do encontro das
Pontifícias Obras Missionárias, declarou que, na exortação apostólica “Evangelii
gaudium”, convidou todos os fiéis a uma nova estação evangelizadora: “Evangelizar, neste momento de grande mudança
social, requer uma Igreja missionária, toda em atitude de saída, capaz de
discernir e enfrentar as diferentes culturas e visões de homem”, no
contexto de “uma Igreja renovada e
transformada pela contemplação e contacto pessoal com Cristo pelo poder do
Espírito Santo”, bem necessária “num
mundo em mudança”. É o Espírito Santo que – diz o Papa – “nos dá força para empreender o caminho
missionário e a alegria do anúncio para que a luz de Cristo ilumine todos
aqueles que ainda não o conhecem ou o rejeitaram”. E acrescenta que “não nos podem parar nem as nossas
debilidades, nem os nossos pecados, nem tantos obstáculos colocados ao testemunho
e anúncio do Evangelho”, quando urge ganhar e manter a coragem de “chegar em todas as periferias que precisem
da luz do Evangelho”.
Bastava este discurso papal, no dia da Europa
envelhecida e cansada de egoísmos e narcisismos, para que ressoasse em todo o
orbe uma nova e sempre verdadeira noção de Igreja:
A Igreja é “o
povo das bem-aventuranças e a casa dos pobres, dos aflitos, dos excluídos e
perseguidos, daqueles que têm fome e sede de justiça”. E, como é “missionária por natureza, tem como
prerrogativa fundamental o serviço de caridade a todos” – a começar “dos últimos, dos pobres, dos que
têm as costas dobradas pelo peso do cansaço e da vida” – e são inerentes à
sua vida e missão no mundo e para o mundo “a
fraternidade e a solidariedade universal”.
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