A este fenómeno se referiu pertinentemente
o Papa Francisco no discurso aos novos embaixadores da Suíça, Libéria, Etiópia,
Sudão, Jamaica, África do Sul e Índia, por ocasião da apresentação das respetivas
cartas credenciais, em 15 de maio.
O discurso
pode dar azo a que nos interroguemos se acaso algum surto migratório será
efetivamente voluntário. Não sei se àqueles que se transferem para outras
paragens por mero espírito aventureiro ou por permuta de serviço se podem denominar
de verdadeiros migrantes (emigrantes em relação ao país de origem e imigrantes
em relação ao país de acolhimento, real ou presuntivo). Já aqueles que não
encontram na sua terra meios de subsistência pessoal e familiar ou um exercício
profissional condigno sentem-se obrigados a emigrar para outros sítios em que
espreitam a sorte, o desafogo. Situação semelhante é vivida por muitos a quem a
empresa cria desconforto no seu local de trabalho useiro e lhes acena em alternativa com melhores
condições alhures. Isto, para não evocarmos aqueles que se sentem obrigados ao
abandono da pátria por motivos políticos (exílio) ou como sanção por delito
grave (degredo / deportação). Por isso, a História das migrações é feita de epopeias
muitas vezes hiper-humanas onde, ao lado de façanhas motivantes de orgulho pessoal,
grupal e étnico, jaz o monumento de suor, lágrimas e sangue. E o regresso é tantas
e tantas vezes profundamente ansiado e, quando concretizado, é efusivamente
saudado e celebrado.
Porém, o Papa Francisco aborda a
problemática das migrações violentamente forçadas, as quais estão patentes ante
os olhos de todos e constituem um clamoroso “desafio à paz” e constituem um fenómeno avassalador
que “adquire em certas regiões e em certos
momentos o caráter de uma verdadeira tragédia humana”. É a triste sorte daqueles
e daquelas que se sentem escorraçados das suas terras de origem e rejeitados
nos países que demandam e cujo fim termina tantas vezes no fundo dos mares e,
se sobrevivos, ficam jazendo nas malhas da escravidão, do tráfico de
estupefacientes e de pessoas. O pontífice foi, no ano transato, a Lampedusa. E lá
– impressionado pelos títulos dos jornais que indicavam situação catastrófica, expressa
em enunciados como “emigrantes mortos no mar, barcos que em vez de ser uma rota
de esperança, foram uma rota de morte” – decidiu, “à luz da Palavra de Deus”, proclamada
e escutada naquela manhã de 8 de julho, “propor algumas palavras que sejam
sobretudo uma provocação à consciência de todos, que a todos incitem a refletir
e mudar concretamente certas atitudes”. São os clamores de seres humanos
que bradam aos céus, vítimas do lucro fácil e desalmado:
Estes nossos irmãos e irmãs procuravam sair de situações difíceis, para
encontrarem um pouco de serenidade e de paz; procuravam um lugar melhor para si
e suas famílias, mas encontraram a morte. Quantas vezes outros que procuram o
mesmo não encontram compreensão, não encontram acolhimento, não encontram
solidariedade! E as suas vozes sobem até Deus! […] Recentemente falei com um
destes irmãos. Antes de chegar aqui, passaram pelas mãos dos traficantes,
daqueles que exploram a pobreza dos outros, daquelas pessoas para quem a
pobreza dos outros é uma fonte de lucro. Quanto sofreram! E alguns não
conseguiram chegar.
É certo
que, segundo as palavras do Papa aos mencionados novos embaixadores, se trata
de “um fenómeno muito
complexo”. E, embora se devam reconhecer os “esforços notáveis da parte das organizações
internacionais, dos Estados, das forças sociais, assim como das comunidades
religiosas e do voluntariado, para procurar responder de forma civil e
organizada aos aspetos mais críticos, às emergências, às situações de maior
necessidade” – diz Francisco – “damo-nos conta de que não podemos limitar-nos a
resolver as emergências. O fenómeno reveste-se de tal gravidade e extensão que “já
se manifestou em toda a sua amplitude e com o seu caráter, por assim dizer,
epocal”. Por isso, chegou mesmo “a hora de o enfrentar com um olhar político
sério e responsável, que envolva todos os níveis: global, continental, de macrorregião,
de relações entre as Nações, até ao nível nacional e local”.
Não deixa o bispo de Roma, que não
descarta o seu papel político, de situar o fenómeno no quadro global da História
da emigração, com experiências inteiramente opostas entre si. Estas situações
que são objeto de denúncia e reflexão papal
– seres humanos, nossos
irmãos e irmãs, filhos de Deus que, impelidos também eles pela vontade de viver
e trabalhar em paz, enfrentam viagens extenuantes e sofrem chantagens, torturas
e injustiças de todos os tipos, acabando muitas vezes por morrer no deserto e
no fundo do mar –
contrastam com ofertas espontâneas e estratégias
historicamente organizadas maravilhosamente repletas “de humanidade, de encontro,
de acolhimento”. Não se pode, pois, ignorar que houve e há “pessoas e famílias
que conseguiram sair de realidades desumanas e reencontraram a dignidade,
liberdade e segurança”.
Não podemos, por outro lado, passar
ao lado dos motivos que levam a este massivo fluxo migratório. Não podemos
ignorar a escalada de grupos políticos, que emergem cada vez com maior força,
cuja senha é a xenofobia, a exclusão étnica, a gerontofobia, a pedofobia, a
deficientofobia. Não podemos esquecer que o império financeiro desbragado, consciente
e voluntariamente instalado da apropriação da riqueza por parte de uns “muito
poucos”, secundado pela iníqua sensibilidade luxuriosa, cria o volume crescente
dos milhões e milhões de explorados, sem vez, sem voz, sem dignidade. Cinicamente,
a plutocracia oligárquica acena com a democracia política e até com laivos de
culturofilia e filantropia. Ora como pode ser livre um ser faminto, doente, nu,
sem-abrigo… descartado? Não é por acaso ou sem a razão da sabedoria da alma
popular que os provérbios persas rezam: “A riqueza dos ricos agita incessantemente
a língua dos pobres” e “Não é por amor de Deus que o gato às vezes parece
sorrir” (cf Rosa Sha, Provérbios Persas,
2002: arteplural).
O Papa argentino situa “o fenómeno
das migrações forçadas” na estreita ligação “aos conflitos e às guerras e,
portanto, também ao problema da proliferação das armas”. São inúmeros os focos
de emigrantes tidos como transitórios que ficam denominados de refugiados (as guerras coevas destroem a esmo, fazem
inúmeras vítimas civis e arregimentam para o combate armado adolescentes e mesmo
crianças) e que, em termos humanitários, a ONU tenta acompanhar e cujas
mazelas tenta minorar. Os portugueses bem sabem como a ACNUR, liderada Guterres,
e a AMI, com Fernando Nobre, têm desenvolvido um trabalho meritório em prol dos
refugiados da guerra e das catástrofes naturais. No caso das catástrofes, não
está em causa, à partida, o crime do homem como causa, a não ser no caso de
negligência na segurança de habitações e infraestruturas ou no descuido na observância
das regras do reto ordenamento do território – o que se tornará grave se a
negligência for deliberada. A estas deficiências a montante juntam-se a jusante
a caça oportunista aos despojos e o boicote ou açambarcamento em maré de ajuda
humanitária espelhado em géneros.
E o Papa lamenta estas “feridas de um
mundo que é o nosso mundo, no qual Deus nos colocou para viver hoje e nos chama
a ser responsáveis dos nossos irmãos e irmãs, para que nenhum ser humano seja
violado na sua dignidade”. E, chamando os bois pelos nomes, denuncia o absurdo
e o cinismo que está por trás das atitudes de muitos dos dirigentes das nações:
Seria uma contradição
absurda falar de paz, negociar a paz e, ao mesmo tempo, promover ou permitir o
comércio de armas. Poderíamos também pensar que seria uma atitude, num certo
sentido, cínica proclamar os direitos humanos e, ao mesmo tempo, ignorar ou não
assumir a responsabilidade de homens e mulheres que, obrigados a deixar a sua
terra, morrem na tentativa ou não são acolhidos pela solidariedade
internacional.
Ademais, anote-se a clarividência da
denúncia papal exarada quase no início da peça discursiva:
Todos falam de paz, todos declaram que a querem, mas infelizmente a
proliferação de armamentos de todos os tipos conduz na direção oposta. O
comércio das armas tem o efeito de complicar e afastar a solução dos conflitos,
sobretudo porque se desenvolve e se realiza em grande medida fora da legalidade.
Mas não
basta a denúncia se não for condimentada pelo compromisso. Assim:
Enquanto estamos reunidos nesta Sede Apostólica, que por sua natureza
desempenha um serviço especial pela causa da paz, podemos unir as nossas vozes
ao auspiciar que a comunidade internacional impulsione uma nova fase de esforço
concertado e corajoso contra o crescimento dos armamentos e para a sua redução.
[…] Senhores Embaixadores, a Santa Sé declara hoje a vós e aos Governos dos
vossos respetivos países a sua vontade firme de continuar a colaborar a fim de
que avancem nestas frentes e em todos os caminhos que levam à justiça e à paz,
com base nos direitos humanos universalmente reconhecidos.
Mais: Em
Lampedusa, Francisco denunciava a indiferença campeante neste mundo de indiferença
e de consumismo: “Neste mundo da globalização, caímos na globalização da
indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não
nos interessa, não é responsabilidade nossa!”. E perguntava-se se alguém
tinha chorado a sorte da desgraça dos outros que perdem a esperança, a sorte, a
vida – mercê da crueldade de muitos, alguns dos quais, “no anonimato, tomam
decisões socioeconómicas que abrem a estrada aos dramas como este”.
Por isso,
entende o Papa que os cristãos devem interiorizar estas perguntas do Deus
bíblico: «Adão, onde estás?» «Onde está o sangue do teu irmão?».
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