A comoção
que assolou o país em resultado da decisão instrutória da “Operação Marquês”, que pronunciou para julgamento um número ínfimo
de arguidos por um número reduzido de crimes, pôs na agenda do debate público a
corrupção e crimes com ela relacionados, a ponto de o país quase ter esquecido
o que vem a ser feito nesse sentido, ainda que de modo insuficiente.
Em 2015, uma
brochura da UE revelava que um
inquérito Eurobarómetro sobre a corrupção, de 2013 e publicado em fevereiro de
2014, evidenciava que mais de metade da população da UE considerava que a
corrupção aumentara ao longo dos últimos anos, sendo que a estimativa mais
prudente da Comissão, como sublinhado no pacote anticorrupção adotado em junho
de 2011, sustentava que o custo da corrupção nos Estados-membros atingia os 120
mil milhões de euros por ano, montante que abrange todos os tipos de corrupção
nos países da UE, incluindo infrações que envolvem o orçamento da União. Assim,
a corrupção continua a constituir um dos maiores desafios da UE, por ter impacto
prejudicial nas finanças públicas e comprometer o nível de confiança.
Entretanto,
o Parlamento Europeu e o Conselho adotaram novos atos legislativos baseados em
propostas da Comissão, nomeadamente uma série de medidas para reforçar o quadro
jurídico: uma reforma das normas relativas aos contratos públicos, a apreensão
de ativos de origem criminosa, o alargamento do âmbito do conceito de corrupção
com vista a englobar o suborno de pessoas que não são formalmente funcionários
públicos mas que estão envolvidas na gestão de fundos da UE. E foi criado o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF).
Em Portugal,
para lá do plano de João Cravinho de que este refere não ter passado do papel, enquanto
o PS exibe as estrelas da legislação produzida sobre a matéria, o XXII Governo,
no cumprimento do seu programa, começou por preparar, a 5 de dezembro de 2019,
a estratégia
nacional contra a corrupção, com a criação, na dependência direita da
Ministra da Justiça, de um grupo de trabalho para a definição de “uma estratégia nacional, global e integrada
de combate à corrupção, que compreenda os momentos da prevenção e da repressão
e que envolva a participação de diferentes entidades e profissionais”.
E o
comunicado do Conselho de Ministros daquele dia determinava que o grupo de
trabalho teria por finalidade desenvolver os objetivos do programa do Governo: “instituir
um relatório nacional anticorrupção; avaliar a permeabilidade das leis aos
riscos de fraude; diminuir
as complexidades legais e a carga burocrática; obrigar as entidades administrativas a aderir a um código
de conduta ou a adotar códigos de conduta próprios; dotar algumas entidades administrativas de um departamento
de controlo interno que assegure a transparência e imparcialidade dos
procedimentos e decisões; melhorar
os processos de contratação pública; reforçar
a transparência das contas dos partidos políticos; e obrigar as médias e grandes empresas a disporem de planos
de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas”.
A
3 de setembro de 2020, a Ministra da Justiça apresentou as principais medidas
da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024 (ENCC 2020-2024), tendo
o Governo remetido o documento para discussão pública por 30 dias, após a apresentação
que dele fez a Ministra
em conferência de imprensa em Lisboa.
Francisca
Van Dunem destacou dois problemas a que a Estratégia procura responder: “a
falta de dados e a falta de um sistema harmónico da dimensão preventiva e repressiva”.
Mais
disse que a Estratégia parte do pressuposto de que “a prevenção é a chave do
sistema, porque tem dimensão social e cultural que não pode ser resolvida pelos
sistemas repressivos” e acrescentou que “os tempos de resposta dos sistemas de
justiça são muitos longos” nos casos de corrupção e que “isto acaba por gerar
nas pessoas a ideia da ineficácia do sistema”.
Assim,
a Estratégia, que resultou da reflexão do respetivo grupo de trabalho, além de
reconhecer a necessidade de ajustar alguns aspetos do sistema repressivo, julga
indispensável fortalecer e valorizar os mecanismos de prevenção e deteção de
crimes de corrupção e crimes conexos. E, em consequência, identifica 7
prioridades para reduzir o fenómeno da corrupção em Portugal, a saber: melhorar
o conhecimento, a formação e as práticas institucionais em matéria de
transparência e integridade; prevenir e detetar os riscos de corrupção no setor
público; comprometer o setor privado na prevenção, deteção e repressão da
corrupção; reforçar a articulação entre instituições públicas e privadas; garantir
uma aplicação mais eficaz e uniforme dos mecanismos legais em matéria de
repressão da corrupção, melhorar o tempo de resposta do sistema judicial e
assegurar a adequação e efetividade da punição; produzir e divulgar
periodicamente informação fiável sobre o fenómeno da corrupção; e cooperar no
plano internacional no combate à corrupção.
Ao
nível da prevenção, o Governo entende que o sistema repressivo, por mais
sofisticado que seja, é insuficiente para diminuir o fenómeno da corrupção,
pelo que a Estratégia considera fundamental: reforçar o papel das escolas,
transmitindo às crianças e jovens valores que repudiem práticas de corrupção; aumentar
a formação dos dirigentes e funcionários públicos, para que estejam mais
conscientes para os perigos e consequências negativas da corrupção; desenvolver
um regime geral de prevenção da corrupção, que inclua a implementação, dentro
da administração pública e das médias e grandes empresas, de programas
vocacionados para a prevenção e deteção de práticas ilícitas (os
programas de cumprimento normativo)
e para a proteção de dirigentes ou trabalhadores que denunciem tais práticas (tal
como pede a UE); criar
um Mecanismo Anticorrupção, com poderes de iniciativa, controlo e sancionamento
e com atribuições ao nível da recolha e tratamento de informação e da
organização de programas de atividades entre entidades públicas e entidades
privadas relacionados com a corrupção; disponibilizar mais informação aos
cidadãos e digitalizar mais procedimentos, para que as interações com os
serviços públicos sejam mais transparentes, compreensíveis e previsíveis; e melhorar
o conhecimento do crime de corrupção e dos crimes relacionados, afinando a
produção de informação, sobretudo com base nos casos já julgados pela justiça
nacional.
No
âmbito da repressão, a Estratégia propõe alguns ajustes nos mecanismos
existentes, como a dispensa de pena, a atenuação da pena ou a suspensão
provisória do processo, melhorando a legislação. E o Governo quer que
estas soluções se apliquem na prática e auxiliem a investigação sem pôr em
causa os direitos de defesa e a dimensão humanista do processo penal.
Por
outro lado, considerando que a morosidade dos processos relativos a crimes de
corrupção e semelhantes gera desconfiança nos cidadãos, a Estratégia propõe
alguns ajustamentos à lei de processo penal, com vista a facilitar a separação
de processos durante a fase de investigação. E admite a celebração de acordos
sobre a pena aplicável, durante o julgamento, com base na confissão livre e sem
reservas dos factos imputados ao arguido, independentemente da natureza ou da
gravidade do crime.
Ainda
no campo repressivo, destaca-se a proposta de reforçar a pena acessória de
proibição do exercício de funções públicas, aplicada a titulares de cargos
públicos que cometem crimes de média ou alta gravidade, prevendo-se prazos mais
longos de proibição do exercício de funções e tornando-a também aplicável a titulares
de cargos políticos. E sugere-se que também os gerentes e administradores
de empresas possam ficar proibidos de exercer, por certo período, funções de
gerência ou administração, caso cometam crimes de corrupção.
Depois
disto, a Estratégia ficou disponível para discussão pública, tendo sido todos
os cidadãos convidados a, num exercício de cidadania, apresentar os contributos
que julguem pertinentes.
A
6 de abril de 2021, foi publicada a Resolução do Conselho de Ministros n.º
37/2021, de 18 de março, que aprova a Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024.
E o documento anexo à Resolução, reconhecendo que não há “uma definição de
corrupção comum a todos os países”, afirma a consensualidade de que em torno de
“uma conduta corruptiva se verifica o abuso de um poder ou função públicos de
forma a beneficiar um terceiro, contra o pagamento de uma quantia ou outro tipo
de vantagem. E o Código Penal prevê, nos artigos 372.º a 374.º-B, os crimes de
recebimento indevido de vantagem e os de corrupção. Os de corrupção
apresentam-se com duas configurações: corrupção ativa e corrupção passiva,
conforme o agente esteja, respetivamente, a oferecer/prometer ou a
solicitar/aceitar uma vantagem patrimonial ou não patrimonial indevida,
distinguindo-se ainda, cada uma, conforme o ato solicitado ou a praticar seja
ou não contrário aos deveres do cargo do funcionário corrompido.
Integram
também o conceito criminal de corrupção, embora inexista abuso de poder ou
função públicos, os crimes de corrupção no comércio internacional e na
atividade privada, previstos na Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, na redação
atual, e no Regime de Responsabilidade Penal por Comportamentos Antidesportivos
(aprovado
pela Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto, na redação atual).
No
entanto, segundo o documento, o conceito de corrupção alcança na sociedade um
sentido mais abrangente, abarcando outras condutas, também criminalizadas,
cometidas no exercício de funções públicas, como o peculato, a participação
económica em negócio, a concussão, o abuso de poder, a prevaricação, o tráfico
de influência ou o branqueamento. Em perspetiva mais social e menos jurídica do
fenómeno, a organização não governamental Transparência Internacional define a
corrupção como “o abuso de um poder confiado para ganhos privados”.
Por
fim, a 29 de abril pp, tendo em conta que “o Programa do XXII Governo Constitucional assume um esforço determinado e
contínuo de prevenção e combate à corrupção, bem como o objetivo de melhorar a
qualidade da legislação e a transparência de procedimentos”, o Conselho
de Ministros aprovou um conjunto de diplomas para a prevenção e combate à
corrupção, a saber: na generalidade, o “decreto-lei que institui o
Mecanismo Nacional Anticorrupção”, como entidade administrativa independente,
com personalidade jurídica de direito público e poderes de autoridade, dotada
de autonomia administrativa e financeira, que desenvolve atividade no domínio
da prevenção da corrupção e infrações conexas, tal como cria o regime geral da
prevenção da corrupção, obrigando à adoção de programas de cumprimento normativo
(programas
de prevenção de riscos, códigos de conduta, canais de denúncia e programas de
formação) por parte de entidades privadas e
públicas; a “proposta de lei” à Assembleia da República (AR), que visa adotar um conjunto de medidas previstas na
Estratégia Nacional Anticorrupção, designadamente ao nível da dispensa e
atenuação da pena e suspensão provisória do processo quanto a crimes de
recebimento e oferta indevidos de vantagem e de corrupção, prescrição do
procedimento criminal, sanção acessória de suspensão de exercício de funções,
conexão de processos penais e acordos sobre a pena aplicável, responsabilidade
penal das pessoas coletivas, conceito de funcionário para efeito de lei penal e
crimes societários; a “resolução” que inicia a implementação do princípio
da “pegada legislativa” no âmbito do
procedimento legislativo governamental, estabelecendo o registo obrigatório de
qualquer intervenção de entidades externas no processo legislativo, desde a
fase de conceção e redação do diploma legal até à sua aprovação final; e duas “propostas de lei” à Assembleia da República, que transpõem para a ordem
jurídica interna a Diretiva (UE) 2019/1937, relativa à proteção das
pessoas que denunciam violações do direito da União, com que se pretende
assegurar um nível eficaz e equilibrado de proteção dos denunciantes de violações
do direito da UE, através do estabelecimento de canais de denúncia e da
proibição de qualquer forma de retaliação e da consagração de medidas de proteção
e de apoio aos denunciantes, bem como a
Diretiva (UE) n.º 2019/1153, que
estabelece normas destinadas a facilitar a utilização de informações
financeiras e de outro tipo para efeitos de prevenção, deteção, investigação ou
repressão de determinadas infrações penais.
***
Talvez o axe
da corrupção e crimes com ela conexos não esteja na falta de lei, ainda que
insuficiente, mas no excesso de garantismo e na permissão do uso e abuso de
expedientes dilatórios ao abrigo da lei processual penal, que urge alterar, bem
como a utilização do sistema de megaprocessos e da justiça-espetáculo, em que o
excesso e prolixidade da parra escondem e prejudicam a integridade da uva. Por outro
lado, abandona-se produção legislativa do enriquecimento ilícito ou injustificado,
por inconstitucionalidade, mercê da inversão do ónus da prova, mas aceita-se como
boa e constitucional a legislação da ocultação de riqueza para detentores de
cargos políticos e públicos e equiparados – ora extensível a todos os magistrados
em funções –, que são obrigados a expor-se em declaração de interesses, rendimentos
e património, ficando de fora todos quantos do setor privado movimento milhões
ao sabor dos interesses. Também não se percebe como vários muito grandes devedores
à banca, em que o Estado se obrigou – mal ou bem – a injetar milhões, continuam
sem pagar e a gerir as suas empresas e fundações, que nem conhecem, e gozam os
deputados e o povo que os elegeu.
Não se
percebe como em sede penal, o ónus da prova não pode inverter-se, quando em
sede fiscal, o contribuinte é obrigado a justificar sinais exteriores de
riqueza e os bancos são obrigados a comunicar movimento de verbas que ultrapasse
um certo volume, ou seja, o contribuinte pode estar a ser indiciado da prática
de crimes de fraude fiscal, evasão fiscal de que tem de defender-se. Afinal, em
que ficamos?
Por fim, não
se percebe a comoção em torno da “Operação
Marquês”, quando pelo caminho ficou reduzido a pouco o caso da Casa Pia (mas a
opinião pública condenou muitos); saiu incólume
o caso dos submarinos; ficou a salvo o concurso público para dois barcos; passou
por entre as pingas da chuva o caso dos vistos Gold; e não foi beliscado o caso
da Tecnoforma e os compromissos com o fisco e a segurança social. E que dizer
dum processo do Freeport encerrado com dezenas de perguntas por fazer a uma
certa figura pública e conversas telefónicas destruídas? Se calhar, menos comoção
pontual e mais vigilância denúncia e não cumplicidade!
2021.05.03 –
Louro de Carvalho
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