segunda-feira, 3 de maio de 2021

Da estratégia nacional contra a corrupção

 

A comoção que assolou o país em resultado da decisão instrutória da “Operação Marquês”, que pronunciou para julgamento um número ínfimo de arguidos por um número reduzido de crimes, pôs na agenda do debate público a corrupção e crimes com ela relacionados, a ponto de o país quase ter esquecido o que vem a ser feito nesse sentido, ainda que de modo insuficiente.

Em 2015, uma brochura da UE revelava que um inquérito Eurobarómetro sobre a corrupção, de 2013 e publicado em fevereiro de 2014, evidenciava que mais de metade da população da UE considerava que a corrupção aumentara ao longo dos últimos anos, sendo que a estimativa mais prudente da Comissão, como sublinhado no pacote anticorrupção adotado em junho de 2011, sustentava que o custo da corrupção nos Estados-membros atingia os 120 mil milhões de euros por ano, montante que abrange todos os tipos de corrupção nos países da UE, incluindo infrações que envolvem o orçamento da União. Assim, a corrupção continua a constituir um dos maiores desafios da UE, por ter impacto prejudicial nas finanças públicas e comprometer o nível de confiança.

Entretanto, o Parlamento Europeu e o Conselho adotaram novos atos legislativos baseados em propostas da Comissão, nomeadamente uma série de medidas para reforçar o quadro jurídico: uma reforma das normas relativas aos contratos públicos, a apreensão de ativos de origem criminosa, o alargamento do âmbito do conceito de corrupção com vista a englobar o suborno de pessoas que não são formalmente funcionários públicos mas que estão envolvidas na gestão de fundos da UE. E foi criado Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF).

Em Portugal, para lá do plano de João Cravinho de que este refere não ter passado do papel, enquanto o PS exibe as estrelas da legislação produzida sobre a matéria, o XXII Governo, no cumprimento do seu programa, começou por preparar, a 5 de dezembro de 2019, a estratégia nacional contra a corrupção, com a criação, na dependência direita da Ministra da Justiça, de um grupo de trabalho para a definição de “uma estratégia nacional, global e integrada de combate à corrupção, que compreenda os momentos da prevenção e da repressão e que envolva a participação de diferentes entidades e profissionais”.

E o comunicado do Conselho de Ministros daquele dia determinava que o grupo de trabalho teria por finalidade desenvolver os objetivos do programa do Governo: “instituir um relatório nacional anticorrupção; avaliar a permeabilidade das leis aos riscos de fraude; diminuir as complexidades legais e a carga burocrática; obrigar as entidades administrativas a aderir a um código de conduta ou a adotar códigos de conduta próprios; dotar algumas entidades administrativas de um departamento de controlo interno que assegure a transparência e imparcialidade dos procedimentos e decisões; melhorar os processos de contratação pública; reforçar a transparência das contas dos partidos políticos; e obrigar as médias e grandes empresas a disporem de planos de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas”.

A 3 de setembro de 2020, a Ministra da Justiça apresentou as principais medidas da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024 (ENCC 2020-2024), tendo o Governo remetido o documento para discussão pública por 30 dias, após a apresentação que dele fez a Ministra em conferência de imprensa em Lisboa.

Francisca Van Dunem destacou dois problemas a que a Estratégia procura responder: “a falta de dados e a falta de um sistema harmónico da dimensão preventiva e repressiva”. 

Mais disse que a Estratégia parte do pressuposto de que “a prevenção é a chave do sistema, porque tem dimensão social e cultural que não pode ser resolvida pelos sistemas repressivos” e acrescentou que “os tempos de resposta dos sistemas de justiça são muitos longos” nos casos de corrupção e que “isto acaba por gerar nas pessoas a ideia da ineficácia do sistema”.

Assim, a Estratégia, que resultou da reflexão do respetivo grupo de trabalho, além de reconhecer a necessidade de ajustar alguns aspetos do sistema repressivo, julga indispensável fortalecer e valorizar os mecanismos de prevenção e deteção de crimes de corrupção e crimes conexos. E, em consequência, identifica 7 prioridades para reduzir o fenómeno da corrupção em Portugal, a saber: melhorar o conhecimento, a formação e as práticas institucionais em matéria de transparência e integridade; prevenir e detetar os riscos de corrupção no setor público; comprometer o setor privado na prevenção, deteção e repressão da corrupção; reforçar a articulação entre instituições públicas e privadas; garantir uma aplicação mais eficaz e uniforme dos mecanismos legais em matéria de repressão da corrupção, melhorar o tempo de resposta do sistema judicial e assegurar a adequação e efetividade da punição; produzir e divulgar periodicamente informação fiável sobre o fenómeno da corrupção; e cooperar no plano internacional no combate à corrupção.

Ao nível da prevenção, o Governo entende que o sistema repressivo, por mais sofisticado que seja, é insuficiente para diminuir o fenómeno da corrupção, pelo que a Estratégia considera fundamental: reforçar o papel das escolas, transmitindo às crianças e jovens valores que repudiem práticas de corrupção; aumentar a formação dos dirigentes e funcionários públicos, para que estejam mais conscientes para os perigos e consequências negativas da corrupção; desenvolver um regime geral de prevenção da corrupção, que inclua a implementação, dentro da administração pública e das médias e grandes empresas, de programas vocacionados para a prevenção e deteção de práticas ilícitas (os programas de cumprimento normativo) e para a proteção de dirigentes ou trabalhadores que denunciem tais práticas (tal como pede a UE); criar um Mecanismo Anticorrupção, com poderes de iniciativa, controlo e sancionamento e com atribuições ao nível da recolha e tratamento de informação e da organização de programas de atividades entre entidades públicas e entidades privadas relacionados com a corrupção; disponibilizar mais informação aos cidadãos e digitalizar mais procedimentos, para que as interações com os serviços públicos sejam mais transparentes, compreensíveis e previsíveis; e melhorar o conhecimento do crime de corrupção e dos crimes relacionados, afinando a produção de informação, sobretudo com base nos casos já julgados pela justiça nacional.

No âmbito da repressão, a Estratégia propõe alguns ajustes nos mecanismos existentes, como a dispensa de pena, a atenuação da pena ou a suspensão provisória do processo, melhorando a legislação. E o Governo quer que estas soluções se apliquem na prática e auxiliem a investigação sem pôr em causa os direitos de defesa e a dimensão humanista do processo penal. 

Por outro lado, considerando que a morosidade dos processos relativos a crimes de corrupção e semelhantes gera desconfiança nos cidadãos, a Estratégia propõe alguns ajustamentos à lei de processo penal, com vista a facilitar a separação de processos durante a fase de investigação. E admite a celebração de acordos sobre a pena aplicável, durante o julgamento, com base na confissão livre e sem reservas dos factos imputados ao arguido, independentemente da natureza ou da gravidade do crime.

Ainda no campo repressivo, destaca-se a proposta de reforçar a pena acessória de proibição do exercício de funções públicas, aplicada a titulares de cargos públicos que cometem crimes de média ou alta gravidade, prevendo-se prazos mais longos de proibição do exercício de funções e tornando-a também aplicável a titulares de cargos políticos. E sugere-se que também os gerentes e administradores de empresas possam ficar proibidos de exercer, por certo período, funções de gerência ou administração, caso cometam crimes de corrupção. 

Depois disto, a Estratégia ficou disponível para discussão pública, tendo sido todos os cidadãos convidados a, num exercício de cidadania, apresentar os contributos que julguem pertinentes.

A 6 de abril de 2021, foi publicada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2021, de 18 de março, que aprova a Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024. E o documento anexo à Resolução, reconhecendo que não há “uma definição de corrupção comum a todos os países”, afirma a consensualidade de que em torno de “uma conduta corruptiva se verifica o abuso de um poder ou função públicos de forma a beneficiar um terceiro, contra o pagamento de uma quantia ou outro tipo de vantagem. E o Código Penal prevê, nos artigos 372.º a 374.º-B, os crimes de recebimento indevido de vantagem e os de corrupção. Os de corrupção apresentam-se com duas configurações: corrupção ativa e corrupção passiva, conforme o agente esteja, respetivamente, a oferecer/prometer ou a solicitar/aceitar uma vantagem patrimonial ou não patrimonial indevida, distinguindo-se ainda, cada uma, conforme o ato solicitado ou a praticar seja ou não contrário aos deveres do cargo do funcionário corrompido.

Integram também o conceito criminal de corrupção, embora inexista abuso de poder ou função públicos, os crimes de corrupção no comércio internacional e na atividade privada, previstos na Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, na redação atual, e no Regime de Responsabilidade Penal por Comportamentos Antidesportivos (aprovado pela Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto, na redação atual).

No entanto, segundo o documento, o conceito de corrupção alcança na sociedade um sentido mais abrangente, abarcando outras condutas, também criminalizadas, cometidas no exercício de funções públicas, como o peculato, a participação económica em negócio, a concussão, o abuso de poder, a prevaricação, o tráfico de influência ou o branqueamento. Em perspetiva mais social e menos jurídica do fenómeno, a organização não governamental Transparência Internacional define a corrupção como “o abuso de um poder confiado para ganhos privados”.

Por fim, a 29 de abril pp, tendo em conta que “o Programa do XXII Governo Constitucional assume um esforço determinado e contínuo de prevenção e combate à corrupção, bem como o objetivo de melhorar a qualidade da legislação e a transparência de procedimentos”, o  Conselho de Ministros aprovou um conjunto de diplomas para a prevenção e combate à corrupção, a saber: na generalidade, o “decreto-lei que institui o Mecanismo Nacional Anticorrupção”, como entidade administrativa independente, com personalidade jurídica de direito público e poderes de autoridade, dotada de autonomia administrativa e financeira, que desenvolve atividade no domínio da prevenção da corrupção e infrações conexas, tal como cria o regime geral da prevenção da corrupção, obrigando à adoção de programas de cumprimento normativo (programas de prevenção de riscos, códigos de conduta, canais de denúncia e programas de formação) por parte de entidades privadas e públicas; a “proposta de lei” à Assembleia da República (AR), que visa adotar um conjunto de medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção, designadamente ao nível da dispensa e atenuação da pena e suspensão provisória do processo quanto a crimes de recebimento e oferta indevidos de vantagem e de corrupção, prescrição do procedimento criminal, sanção acessória de suspensão de exercício de funções, conexão de processos penais e acordos sobre a pena aplicável, responsabilidade penal das pessoas coletivas, conceito de funcionário para efeito de lei penal e crimes societários; a “resolução” que inicia a implementação do princípio da “pegada legislativa” no âmbito do procedimento legislativo governamental, estabelecendo o registo obrigatório de qualquer intervenção de entidades externas no processo legislativo, desde a fase de conceção e redação do diploma legal até à sua aprovação final; e duas “propostas de lei” à Assembleia da República, que transpõem para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2019/1937, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União, com que se pretende assegurar um nível eficaz e equilibrado de proteção dos denunciantes de violações do direito da UE, através do estabelecimento de canais de denúncia e da proibição de qualquer forma de retaliação e da consagração de medidas de proteção e de apoio aos denunciantes, bem como a Diretiva (UE) n.º 2019/1153, que estabelece normas destinadas a facilitar a utilização de informações financeiras e de outro tipo para efeitos de prevenção, deteção, investigação ou repressão de determinadas infrações penais.

***

Talvez o axe da corrupção e crimes com ela conexos não esteja na falta de lei, ainda que insuficiente, mas no excesso de garantismo e na permissão do uso e abuso de expedientes dilatórios ao abrigo da lei processual penal, que urge alterar, bem como a utilização do sistema de megaprocessos e da justiça-espetáculo, em que o excesso e prolixidade da parra escondem e prejudicam a integridade da uva. Por outro lado, abandona-se produção legislativa do enriquecimento ilícito ou injustificado, por inconstitucionalidade, mercê da inversão do ónus da prova, mas aceita-se como boa e constitucional a legislação da ocultação de riqueza para detentores de cargos políticos e públicos e equiparados – ora extensível a todos os magistrados em funções –, que são obrigados a expor-se em declaração de interesses, rendimentos e património, ficando de fora todos quantos do setor privado movimento milhões ao sabor dos interesses. Também não se percebe como vários muito grandes devedores à banca, em que o Estado se obrigou – mal ou bem – a injetar milhões, continuam sem pagar e a gerir as suas empresas e fundações, que nem conhecem, e gozam os deputados e o povo que os elegeu.

Não se percebe como em sede penal, o ónus da prova não pode inverter-se, quando em sede fiscal, o contribuinte é obrigado a justificar sinais exteriores de riqueza e os bancos são obrigados a comunicar movimento de verbas que ultrapasse um certo volume, ou seja, o contribuinte pode estar a ser indiciado da prática de crimes de fraude fiscal, evasão fiscal de que tem de defender-se. Afinal, em que ficamos?

Por fim, não se percebe a comoção em torno da “Operação Marquês”, quando pelo caminho ficou reduzido a pouco o caso da Casa Pia (mas a opinião pública condenou muitos); saiu incólume o caso dos submarinos; ficou a salvo o concurso público para dois barcos; passou por entre as pingas da chuva o caso dos vistos Gold; e não foi beliscado o caso da Tecnoforma e os compromissos com o fisco e a segurança social. E que dizer dum processo do Freeport encerrado com dezenas de perguntas por fazer a uma certa figura pública e conversas telefónicas destruídas? Se calhar, menos comoção pontual e mais vigilância denúncia e não cumplicidade!        

2021.05.03 – Louro de Carvalho

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