quarta-feira, 26 de maio de 2021

Alteração da matriz de risco da covid-19 é descabida

 

O Presidente da República defendeu, neste dia 26 de maio, a mudança da matriz de risco que tem servido de base ao processo de desconfinamento, tendo em conta a crescente taxa de imunidade da população portuguesa contra a covid-19 por efeito da campanha de vacinação, embora tenha deixado claro que respeitará a opinião dos especialistas.

Em declarações aos jornalistas, após a visita a uma exposição no Museu das Artes de Sintra, Marcelo reiterou que os novos casos de infeção já não se estão a projetar em números de internamentos, cuidados intensivos e mortes como dantes. E, questionado se considera ser este o momento para criar uma nova matriz de risco, que não tenha só em conta o R(t) (índice de transmissão) e a incidência de novos casos por 100 mil habitantes, respondeu que sempre achou isso, mas que sempre respeitou “a opinião dos especialistas e a decisão do Governo”, referindo:

Aparentemente, há especialistas que, de forma crescente, dizem que é preciso ir começando a repensar, e o Governo também já disse que é preciso estudar e repensar. Por uma razão muito simples: o mundo vai abrir, nós vamos regressando a uma atividade mais normal, mais cedo ou mais tarde..

Segundo o Chefe de Estado, é expectável, “pela circulação das pessoas que vêm de vários espaços, um aumento do número de casos” de infeção “durante um tempo”. No entanto, aduziu:

Se houver uma taxa de imunidade cá dentro apreciável, há um momento a partir do qual não há razões em termos de vida e de saúde que justifiquem parar a economia e a sociedade indefinidamente. (…) A vida tem de continuar, por muito que nós sejamos sensíveis a algumas vidas e alguns casos de saúde que existam, a vida tem de continuar e vai continuar nos próximos meses e nos próximos anos, como aconteceu com outras epidemias, embora não tão duradouras e não tão complexas como esta pandemia..

Porém, rejeitou qualquer ligação entre uma mudança da matriz de risco e o aumento de casos de infeção com o novo coronavírus em Lisboa, porfiando que “não se trata de encontrar uma maneira artificial de fugir à aplicação de critérios”, mas de ponderar à luz de “dados novos”. E, quanto aos supostos dados novos, enumerou: acima dos 80, praticamente a totalidade de vacinados; acima dos 70, praticamente todos; acima dos 60, praticamente todos; acima dos 50, um número significativo; e brevemente acima de 40 e acima de 30. Por isso, sustenta que se deve olhar a realidade “com outros olhos, porque a realidade é diferente”.

O Chefe de Estado continuará a “apelar aos jovens para serem sensatos no seu comportamento”, mas aconselha a “não se entrar num alarmismo que não tem justificação, uma vez que a vacinação vai indo a um ritmo tão intenso que permite evitar aquilo que aconteceu em vagas que conhecemos”. Insiste em dizer que, na avaliação da situação da covid-19, há que conjugar o índice de transmissão e a incidência de novos casos por 100 mil habitantes com a pressão sobre os serviços de saúde em termos de internamentos e cuidados intensivos e o número de mortes. E frisa a diferença entre este ano e o ano passado devido ao avanço do processo de vacinação, com “milhões de pessoas vacinadas” e os grupos de risco progressivamente imunizados.

Entretanto, no próximo dia 28, participará na 21.ª sessão com especialistas sobre a situação da covid-19 em Portugal, juntamente com o Primeiro-Ministro, o Presidente da Assembleia da República e representantes dos partidos com assento parlamentar.

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Devo dizer que esta ideia marcelista é descabida, pois ainda não estamos tão seguros como isso. Não se sabe ainda da eficácia da vacina e durabilidade do seu efeito; suspeita-se que os vacinados e infetados, mesmo não sintomáticos, possam transmitir o SARS-CoV-2; há muitos jovens que sofrem de asma, bronquite, diabetes, problemas cardíacos, o que os expõe ao risco; Há dúvidas sobre a aplicação de 2.ª dose de determinada vacina a alguns grupos; os hospitais e centros de saúde precisam de alívio para cuidarem dos doentes não covid-19. Talvez, por isso, a alteração da matriz de risco não está a colher o consenso dos especialistas em saúde pública.

A vida tem de continuar, como diz Marcelo e todos nós sabemos e queremos. Mas o Presidente não o considerou quando nos sujeitou a duas procissões de declarações de estado de emergência e avalizou dois períodos de feroz confinamento. Até deu a entender estar desligado do processo de vacinação contra a covid-19, supostamente pelo facto de a vacinação contra a gripe sazonal ter corrido menos bem. Quererá agora forçar o desconfinamento na região de Lisboa? Porquê?

Enfim, não podemos desvalorizar o facto de Portugal ter registado, neste dia 26 de maio, 594 novos casos de infeção e um óbito morte, de acordo com o balanço da DGS (Direcção-Geral da Saúde) relativo aos efeitos da pandemia de covid-19 em Portugal nas últimas 24 horas, sendo este o dia com mais casos desde 22 abril, data em que se registaram 636 contágios.

Estão internadas 233 pessoas, menos 4 que no dia 25. Deste total, 53 doentes estão nos cuidados intensivos, mais um que no dia anterior. Quer a incidência, quer o índice de transmissibilidade voltaram a subir. O R(t) está em 1,07. Estava em 1,06 há 2 dias. A incidência no continente está nos 54,4 casos por 100 mil habitantes (estava em 52,5 há dois dias)A nível nacional está nos 57,8 casos por 100 mil habitantes, uma subida de mais de três pontos face ao dia 25. Há, pois, agora 22 347 casos ativos de covid-19 em Portugal, mais 176 que no dia anterior. Mais 417 pessoas recuperaram da doença, para um total de 807 065 recuperados.

No total, Portugal já registou 846 434 casos de infeção por SARS-CoV-2 e 17 022 óbitos em resultado da covid-19. A região de Lisboa e Vale do Tejo continua a registar o maior número de contágios, 280 (são 47,1% do total). Na região Norte há 185 novos casos, no Centro 64, no Algarve 18 e no Alentejo 13. Nos Açores foram contabilizados 26 novos casos nas últimas 24 horas, enquanto na Madeira foram 8. Foi nesta região autónoma que ocorreu o único óbito por covid-19 das últimas 24 horas.

Por outro lado, a OMS (Organização Mundial de Saúde) acaba de anunciar que a variante de covid-19 detetada pela primeira vez na Índia já foi oficialmente sinalizada em 53 territórios. E refere ter recebido ainda informações de fontes não oficiais de que a variante B.1.617 foi detetada em mais 7 territórios, elevando o total para 60, de acordo com o relatório semanal de atualização epidemiológica desta agência de saúde da ONU, citado pela agência de notícias France-Presse (AFP). Segundo a OMS, a variante indiana manifesta maior transmissibilidade, mas a gravidade dos casos envolvidos ainda está a ser investigada.

Portugal detetou 6 casos desta variante no final de abril, todos associados a Lisboa e Vale do Tejo, segundo João Paulo Gomes, do INSA (Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge).

Na semana passada, o INSA informou que o número de casos associados a esta variante não ultrapassava a dezena, não havendo ainda transmissão comunitária dela no território nacional.

A maior transmissibilidade da nova estirpe, detetada em outubro, no Oeste da Índia, poderá explicar a explosão do número de infetados no país, a braços com uma segunda vaga. O país já ultrapassou as 300 mil mortes desde o início da pandemia.

A nível mundial, o número de novos casos e de mortes por covid-19 continuou a diminuir na semana passada, com mais de 4,1 milhões de novos casos e 84.000 mortes adicionais, representando decréscimos de 14% e 2%, respetivamente, em relação à semana anterior. A região europeia registou o maior declínio nas infeções e mortes nos últimos 7 dias, seguida do Sudeste Asiático. O número de casos nas Américas, Mediterrâneo Oriental e regiões africanas é semelhante ao da semana anterior. No entanto, a OMS alertou:

Apesar de uma tendência mundial decrescente ao longo das últimas quatro semanas, os casos de covid-19 e de mortes continuam elevados, com aumentos significativos em muitos países.

Os números mais elevados de novos casos de covid-19 nos últimos 7 dias registaram-se na Índia (1.846.055, menos 23% que na semana anterior), Argentina (213.046, mais 41%), EUA (188.410, menos 20%) e Colômbia (107.590, menos 7%). Em Portugal, segundo a DGS, já morreram mais de 17 mil doentes com covid-19 e foram contabilizados até 846 mil casos de infeção.

A covid-19 já causou a morte a pelo menos 3.465.398 pessoas no mundo, e mais de 166.741.960 casos de infeção, segundo o último levantamento realizado pela agência France Presse (AFP) com base em dados oficiais, advertindo que refletem apenas uma fração do total real de contágios. Segundo estimou a OMS, considerando o excesso de mortalidade direta e indiretamente vinculado à covid-19, o balanço da pandemia pode ser duas a três vezes maior do que o registado oficialmente.

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O Governo anunciou ter decidido acelerar a vacinação contra a covid-19 a nível nacional, e não só em Lisboa, alargando-a a maiores de 40 e 30 anos a partir de 6 e 20 de junho, respetivamente.

Efetivamente, em mensagem publicada na conta oficial do Governo no Twitter, no final da noite do dia 25, o executivo escreveu que, devido ao “bom ritmo do Plano de Vacinação Anti-covid-19 e da disponibilidade de vacinas, foi decidida a aceleração da vacinação a nível nacional”. E precisou que “o alargamento da vacinação a novas faixas etárias” arrancará a partir de 6 de junho para “pessoas com mais de 40 anos” e, a partir do dia 20, para “pessoas com mais de 30 anos”, “em todo o território continental”.

No dia 25, o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde tinha anunciado que a vacinação contra a covid-19 seria acelerada em Lisboa e Vale do Tejo, nas faixas dos 40 e 30 anos, na sequência do aumento das infeções. Porém, o presidente da Câmara do Porto exigiu um tratamento equitativo para todo o país, acusando o Governo de beneficiar o infrator (ignora-se a festa do SCP), ao acelerar a campanha na região de Lisboa e Vale do Tejo, devido ao aumento de infeções, aduzindo que “não pode haver dois países, não pode haver um país e depois haver Lisboa”, mas tem, antes, de “haver um único país e nós temos de exigir um tratamento igual para o todo nacional”.

Entretanto, o coordenador da task force para a vacinação confirmou ao “Público” o alargamento às faixas etárias dos 30 e 40 anos, que será a nível nacional, e não só na região de Lisboa e Vale do Tejo, sendo que aí a vacinação será reforçada, por estar atrasada em relação a outras regiões do país, como o Alentejo e o Centro. E, lembrando que isso já está a fazer-se no Algarve e que haverá reforço de vacinas no Norte, mas mantendo a programação etária, assegurou:

“O nosso plano é nacional e estamos a recuperar as regiões [percentualmente] mais atrasadas e isto também vai incluir o Norte. A ideia é ter sempre as regiões equilibradas porque é o mais justo. Quando se fala em acelerar, é dar mais vacinas, mas mantendo a mesma programação etária.”.

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Paralelamente, é preciso ter em conta a “coronofobia”, um rico neologismo. Na verdade, como escreveu no destaque “Notícias e Eventos”, do Trofa Saúde, João Lima, médico especialista em Medicina Geral e Familiar no Trofa Saúde Boa Nova – dando conselhos de ordem prática depois de expor alguma teoria sobre o surto pandémico que assola o mundo – “a pandemia covid-19 é o maior desafio de saúde pública deste século”, sendo que “parte do desafio reside nos efeitos colaterais da pandemia, sendo um deles o impacto psicossocial”.

Esclarecendo que a “coronofobia” se refere “ao medo da doença, do contágio e do estigma associado”, podendo fazer emergir sintomas psiquiátricos, considera-a como fruto de 3 fatores: a doença, receio de contágio e sentimento de culpa pelo contágio a outrem; o condicionamento da liberdade pelas medidas governamentais de combate à pandemia, que impactam o bem-estar socioeconómico e fomentam o isolamento social e outros comportamentos depressivos; e a “pandemia de informação”, sendo essencial combater a desinformação, pois “o assoberbamento de notícias recorrentes pode induzir ansiedade, pânico, obsessão, paranoia e depressão”.

Depois, elenca alguns grupos demográficos suscetíveis ao problema e que merecem atenção:

- Os idosos, em quem o medo da doença, pela sua gravidade nestas idades, e o isolamento, por vezes preexistente e agravado pela pandemia, se associam à  “irritabilidade, ansiedade, raiva, medo e declínio cognitivo” – com dificuldade em recorrer às alternativas informáticas – precisam do apoio da família/comunidade, que pode colmatar estas dificuldades, garantindo um contacto social saudável, o acesso a bens essenciais, a prevenção do abandono terapêutico e a preservação do “acompanhamento médico adequado”.

- As crianças, em quem frequentemente surge irritabilidade, aborrecimento, ansiedade, medo da doença e prejuízos no desenvolvimento, constituem um desafio para os pais, que deverão manter o ritmo diário pré-pandemia, “respeitando horas de sono, estudo, lazer e exercício físico”, tal como deverão prover ao apoio às aulas online pelo prejuízo educativo inerente e “informar as crianças de forma clara e concisa sobre a doença, sem desvalorizar ou exagerar os seus perigos”, como fator de estabilidade emocional.

- Os doentes de covid-19 (“infetados e pós-cura têm prevalência elevada de ansiedade, pânico, depressão e sentimentos de solidão”), cujo medo de discriminação, marginalização e mesmo implicações socioeconómicas pode levar a mascarar a doença, agravando o risco em termos de saúde pública, precisam de “manter o contato virtual com os familiares, durante o internamento, quarentena e pós-cura”, devendo também abordar-se o seu estado de saúde e fazer-se em todos estes tempos a vigilância do foro psicológico, incluindo “o acompanhamento especializado”.

- E os doentes psiquiátricos (“têm maior risco de contágio, pior prognóstico no caso de infeção e risco de agravamento da sua doença psiquiátrica de base”), em quem o confinamento causa disrupção na rotina de acompanhamento e tratamento, a ponto de poder levar “a abandono terapêutico e risco de incumprimento das regras de combate à pandemia”, necessitam de que se lhes garanta “o acompanhamento médico adequado e o cumprimento terapêutico, muitas vezes sendo essencial o apoio de familiares/cuidadores”.

Em termos práticos e genéricos, o especialista, em nome do bem-estar, recomenda uma “dieta informativa”, privilegiando fontes fidedignas de informação, renegando as mais sensacionalistas e a desinformação, para evitar o assoberbamento e obsessão pelo tema; o cuidado da saúde física e psicológica, buscando o apoio nos cuidados de saúde primários e o apoio hospitalar; e o respeito pelas condições de segurança exigidas.

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Seria mau o Chefe de Estado não respeitar a opinião dos especialistas e a decisão do Governo, mas antecipar soluções públicas prejudica a autonomia científica e constitui interferência. E, porque isto não está fácil, a intervenção presidencial não foi um bom serviço, sendo de temer que, de certo modo, induza decisões inadequadas. Não seria a primeira vez.

2021.05.26 – Louro de Carvalho  

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