sexta-feira, 28 de maio de 2021

A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital

 

Pacheco Pereira, na revista “Sábado”, desta semana (dia 27 de maio) fez publicar um texto sob o título “A institucionalização da censura” em que tece críticas pertinentes à “Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital” transformada em lei, com os votos a favor do PS, PSD, CDS, BE, PAN e a abstenção dos outros partidos, mas que o ilustre colunista entende que “merece o mais completo repúdio e exige uma resposta alto e bom som”, pois “o perigo destas leis está em que, em vez de adaptarem a lei à nova realidade das redes sociais, retiram do direito e da justiça a justa reposição da legalidade”.

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Antes de concordar, ou não, com Pacheco Pereira, dei-me ao cuidado de ver o teor do “Projeto de Lei n.º 473/XIV”, do PS, que serviu de base à discussão parlamentar e cuja redação final, secundada por outros contributos, desembocou na Lei n.º 27/2021, de 17 de maio.

Tal projeto de lei estriba-se no facto desde 2018, mais de metade da Humanidade ter acesso à Internet, constituindo-se, por outro lado, os milhões de infoexcluídos em situação de assimetria comprometedora da consecução dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) e da Agenda 2030. A pari, reconhece que o combate à covid-109 pôs a nu os benefícios do uso de ferramentas tecnológicas digitais e as insuficiências no acesso e riscos vários.

Considera a premência de, em linha com as diretrizes da ONU, pôr as tecnologias ao serviço da realização dos Direitos Humanos. Porém, observa que, apesar das diversas iniciativas a nível internacional (Painel de Alto Nível sobre Cooperação Digital; Fórum da Governação da Internet; 14.ª sessão do Fórum 2019, em Berlim, centrada nos temas da inclusão digital, governação de dados, e segurança, estabilidade e resiliência; Carta das Comunicações do Povo, 1999; Carta dos Direitos da Internet, da Associação para a Comunicação Progressista, 2001-2002; e Declarações de Princípios das Cimeiras Mundiais da Sociedade de Informação, 2003/2005/2008) e a nível nacional (plataforma nacional de diálogo sobre a Governação da Internet), ainda não há uma Carta Internacional dos Direitos Humanos na era Digital, devidamente aprovada no âmbito da ONU, dada a oposição de alguns países.

Sublinha que, alinhadas com o Eixo 5 – Investigação do programa português INCoDe.2030, estiveram em apreciação as temáticas: “Governação de Dados”; “Segurança, Estabilidade e Resiliência”; “Para lá dos Conselhos de Ética: Como praticar Governação de Inteligência Artificial”; e “Para uma formação em cibersegurança centrada em Direitos Humanos”.

Os subscritores do projeto de lei recordam que a assembleia Geral da ONU, a 19 de dezembro de 2019, fez o balanço de todas as iniciativas em curso e aprovou uma resolução fundamentada sobre a estratégia digital para o século XXI, e que a Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2020, publicada a 21 de abril, aprovou o Plano de Ação para a Transição Digital, encarado como “um dos instrumentos essenciais da estratégia de desenvolvimento do país, em alinhamento com os objetivos políticos que irão nortear os investimentos da UE no período de programação 2021-2027, de acordo com o novo quadro da Política de Coesão”.

Têm em linha de conta os danos graves, para crise civilizacional, das vagas de xenofobia, do populismo, da intolerância política e religiosa, dos nacionalismos, do racismo, sendo que a utilização que os seus promotores fazem da Internet gera problemas difíceis de resolver pela natureza global que as redes assumem e pela inexistência dum sistema sólido de governance.

É certo que um estudo mapeou 30 iniciativas tendentes a afirmar um “constitucionalismo digital” e apurou que 22 dessas declarações de direitos digitais são de âmbito internacional; duas são de âmbito regional; e seis textos aprovados ou em preparação têm um âmbito nacional (com destaque para lei que aprovou o “Marco Civil da Internet” estabelecendo princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil). E muitas propostas de “Declaração de Direitos humanos na Internet” resultam do trabalho de organizações da sociedade civil, da cooperação entre Estados ou da iniciativa de instituições internacionais.

Por seu turno, o Conselho da Europa tem desenvolvido um trabalho sistemático centrado em questões conexas com o direito à liberdade de expressão, o direito à vida privada, a liberdade de reunião e de associação, a segurança em linha, o direito à instrução, os direitos da criança, a não discriminação e o direito a recurso efetivo face a ilegalidades. Também a União Internacional das Telecomunicações tem desenvolvido trabalho relevante, com realce para a inclusão digital, procurando colmatar o fosso digital e promovendo competências orientadas para o trabalho.

Merece referência a iniciativa Contract for the Web impulsionada por Sir Tim Berners-Lee, pai-fundador da World Wide Web, cujo objetivo é obter a adesão de milhares de pessoas físicas ou coletivas a 9 princípios: acesso à Internet para todos; garantir o acesso a toda a Internet a todo o tempo; respeitar e proteger os direitos fundamentais à privacidade online e os dados pessoais; tornar a Internet um bem acessível a todos; respeitar e proteger a privacidade e os dados pessoais para gerar confiança; desenvolver tecnologias que protejam o que há de melhor na humanidade e vençam o que há de pior; promover a criação e colaboração na Web; criar comunidades fortes que respeitem o trato civilizado e a dignidade humana; e lutar pela Web.

Merece realce a participação de organizações como a Electronic Frontier Foundation (EFF) e a Association for Progressive Communications, bem como a “Declaração Multissetorial da NETMundial” e a aprovada pelo “Fórum de Governance da Internet”, que elaborou em 2014 uma sugestão de “Carta de Direitos Humanos e Princípios para a Internet” e os “Princípios de Manila sobre a Responsabilidade dos Intermediários”.

Proliferaram já os instrumentos jurídicos vinculativos como os que à escala da UE definiram políticas e direitos, com realce para a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, o Regulamento Geral de Proteção de Dados e o Regulamento (UE) 2015/2120, de 25 de novembro de 2015, que acolheu o princípio da neutralidade da Net e estabeleceu medidas respeitantes ao acesso à Internet aberta e ao serviço universal, bem como aos direitos dos utilizadores em matéria de redes e serviços de comunicações eletrónicas.

Aguarda-se a transposição a DIRETIVA (UE) 2018/1972, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018 que aprovou o Código Europeu das Comunicações Eletrónicas, com medidas que visam promover o investimento nas redes de banda larga de elevado débito, adotar uma abordagem mais coerente à escala do mercado interno no respeitante à política e à gestão do espectro de radiofrequências e garantir uma defesa dos consumidores eficaz – condições de concorrência equitativas para todos os intervenientes no mercado e a aplicação coerente das regras – além de estabelecer um quadro regulamentar institucional mais eficaz. Todavia, ficaram por enquadrar e resolver problemas suscitados pelas grandes plataformas digitais como as regras de moderação de conteúdos gerados por utilizadores e o regime de tributação, cujos termos estão a ser ponderados no âmbito da OCDE e da UE.

No ano de 2020 foram redefinidos os objetivos a prosseguir no quadro da Estratégia Digital Europeia. Segundo a Comissão Europeia, “as tecnologias digitais, se forem bem utilizadas, beneficiarão os cidadãos e as empresas. Assim, nos próximos 5 anos, a Comissão centrar-se-á em 3 objetivos fundamentais no domínio digital (considerado essencial para a luta contra as alterações climáticas e a realização da transição ecológica): uma tecnologia ao serviço das pessoas; uma economia justa e competitiva; e uma sociedade aberta, democrática e sustentável”.

A 19 de fevereiro, a Comissão aprovou e publicou o Livro Branco sobre Inteligência Artificial e a Estratégia para os Dados, abrindo uma consulta pública.

E os subscritores do projeto de lei referem que a própria revisão constitucional de 1997 enriqueceu o art.º 35.º da Constituição da República Portuguesa com o aditamento duma norma que garante “a todos” “o livre acesso às redes informáticas de uso público, definindo a lei o regime aplicável aos fluxos de dados transfronteiras”, consagrando o primacial direito de livre acesso a redes digitais e a proibição de isolamento digital de Portugal. As políticas públicas adotadas desde 1996 permitiram mudanças históricas, mas carecem de medidas adicionais como as do Plano de Ação para a Transição Digital e as do Plano de Recuperação 2020-2027.

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Como aponta Pacheco Pereira, que poderia ter elogiado a exposição de motivos, o articulado (23 artigos) começa bem. Desde logo, a enunciação dos direitos em ambiente digital, sua proteção e promoção do seu exercício (artigos 2.º e 3.º), passando pela consagração da liberdade de expressão e criação em ambiente digital (art.º 4.º), à garantia de acesso à Internet e seu uso (art.º 5.º). Porém, o art.º 6.º, ao consagrar “o direito à proteção contra a desinformação”, faz soar o alarme, pois:

“1 – O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de iure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação, nos termos do número seguinte.

“2 – Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.

“3 – Para efeitos do número anterior, considera-se, designadamente, informação comprovadamente falsa ou enganadora a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios.

“4 – Não estão abrangidos pelo disposto no presente artigo os meros erros na comunicação de informações, bem como as sátiras ou paródias.

“5 – Todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) queixas contra as entidades que pratiquem os atos previstos no presente artigo, sendo aplicáveis os meios de ação referidos no artigo 21.º e o disposto na Lei n.º 53/2005, de 8 de novembro, relativamente aos procedimentos de queixa e deliberação e ao regime sancionatório.

“6 – O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.”.

Obviamente, a responsabilidade do teor, que “é portuguesa e europeia”, como diz o colunista, “mostra a deterioração do pensamento sobre a liberdade na Europa, já que em Portugal nunca foi muito pujante”. Com efeito, radica no “Plano Europeu de Ação contra a Desinformação”, que define a “desinformação” como vem plasmado no n.º 2 deste art.º 6.º. Com tal definição pode proibir-se uma parte relevante do discurso público, mesmo o dos governos, e atingir toda a propaganda e a publicidade, institucional, comercial e política. E o n.º 3 especifica como “falsa ou enganadora” a utilização de textos ou de vídeos manipulados ou fabricados, as práticas que inundam as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios.

À semelhança do colunista, pergunto-me se é falsa a utilização dos livros de Sócrates escritos por outrem, se é falso o seu teor ou apenas a autoria. Pergunto-me se é falsa a utilização de narrativas mirabolantes como a Peregrinação de Fernão Mentes Pinto, como os romances, novelas, contos, poemas ou a expressão de opiniões ou mesmo um vídeo que tem uma costa escarpada com uma cabrinha ali especada a olhar para o mar e a legenda “Costa segura cabrita”? Afinal, este pode por configurar sátira ou paródia! E os vídeos daquelas inaugurações de obras por acabar ou de aviões a descolar e aterrar (virtualmente) em locar sem aeroporto ou aeródromo?

Não há narrativa falsa no quadro das literaturas, mas há, na comunicação social, ou veiculadas por esta, e no discurso político e económico, falsas notícias de factos e narrativas de factos distorcidos com intenção económica ou política para travar uma luta pela competitividade económica ou pela ocupação de lugar político ou de cargo público, ultrapassando os outros e prejudicando o público. Nunca será demasiado reler “O Crepúsculo da Democracia”, de Anne Applebaum a ver como “os novos adeptos do iliberalismo se organizam e mobilizam” e como “as teorias da conspiração, a polarização da opinião pública, as redes sociais e a nostalgia por um passado idealizado são usadas como armas para transformar as sociedades em que vivem”.

Por outro lado, diga-se que não incumbe nem à lei nem ao poder político e administrativo definir aquilo que e falso (compete-lhes, sim, prevenir e inquirir). Tal noção de falsidade resulta na prática como todas as outras que são objeto de acusação, julgamento e eventual condenação em tribunal, bem como de censura por parte da sociedade, a não ser que esteja anestesiada.

Por isso, é descabido confiar o veredicto de “desinformação”, mediante queixas de cidadãos, empresas, partidos, à ERC e “estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados”. Com efeito, a primeira entidade resulta de nomeação política, o que não lhe dá indubitavelmente independência; as outras dependem da orientação dos órgãos de comunicação, que tentarão fazer valer a sua postura. Ou seja, uma e outras são guiadas para o que escolhem verificar e para o modo como o hão de fazer.

Por tudo isto, é preciso dar asas ao livre debate público dos temas que são pertinentes aqui e agora ou impulsionadores e condicionadores do futuro próximo ou remoto. Os casos de fraude, falsidade e enganosidade, sobretudo se forem dolosos, devem ser julgados nos tribunais. O contrário é instituir novas formas de censura ou recuperar as velhas formas pela recauchutagem.   

As redes sociais precisam de lei e de regulação, mas não de açaime nem de ambiente de medo político ou económico.

Por fim, cumpre à família, à escola e aos agentes culturais e sociais fazer a pedagogia do que é verdadeiro e do que é falso, do que é facto e do que é opinião, do que é realidade e do que é ficção, do que é prosaico e do que é poético, do que é essencial e do que é acessório.

Do art.º 6.º em diante, por mais bondoso e atraente que seja o articulado da lei, já vai inquinado pelo teor acima transcrito e a chave da sua leitura será necessariamente distorcida. E é pena.

Duma composição parlamentar tão plural esperava-se melhor, pela nobreza do ato de legislar e pela premência de resposta às necessidades levantadas no e pelo mundo digital.

2021.05.27 – Louro de Carvalho

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