segunda-feira, 17 de maio de 2021

Na ascensão, Jesus dá a ordem de “Igreja em saída”

 Não foi o Papa Francisco que inventou como essência da Igreja a componente do ser e estar “em saída”. Esta vertente fundacional da Igreja foi explicitamente querida e ordenada por Jesus antes de deixar o convívio visível com os apóstolos. E não se esqueceu de a vincar nesta Solenidade da Ascensão Dom Manuel Neto Quintas, Bispo do Algarve, que entende a supressão da presença visível de Jesus no meio dos discípulos como forma de lhes dizer que agora o Cristo são eles enquanto comunidade e todos enquanto sofrem as vicissitudes da vida deste mundo.     

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Nesta Solenidade, toma-se para a 1.ª leitura o trecho dos Atos dos Apóstolos (At 1,1-11), em que Jesus garante que, dentro de dias, os apóstolos receberão a força do Espírito Santo, que descerá sobre eles fazendo-os testemunhas de Jesus “em Jerusalém e em toda a Judeia e na Samaria e até aos confins da terra(én te Ierousalêm kaì en pásêii Ioudaíai kaì Samareíai kaì héôseskhátou tês gês).  

Lucas, neste livro histórico-teológico, dirige-se a comunidades que vivem em ambiente de crise, passada que foi a expectativa da vinda iminente do Cristo glorioso para instaurar o Reino. Os temas doutrinais ocasionam desilusão; a rotina alberga fé pouco comprometida e tornam-se medíocres as comunidades; falta o ardor discipular e apostólico; e levanta-se a dúvida sobre se e quando se concretizará plenamente o desígnio salvífico de Deus. Assim, o teólogo adverte que o desígnio salvífico, após a ida de Jesus para o Pai, passa à Igreja, animada pelo Espírito. E a construção do Reino é tarefa não terminada, que tem de se concretizar na história implicando o empenho contínuo de todos os crentes. Ou seja, todos os cristãos são instados a redescobrir o seu papel no testemunho do desígnio salvífico, mantendo-se na rota de Jesus.

O trecho começa com um prólogo (At 1,1-2) que relaciona este livro com o 3.º Evangelho – quer referindo o mesmo Teófilo (ô Theóphile) a quem o Evangelho fora dedicado, quer aludindo a Jesus, aos seus ensinamentos e à sua ação no mundo – e que apresenta como protagonistas da ação messiânica o Espírito Santo e os apóstolos, vinculados a Jesus.

Após a apresentação, vem a despedida de Jesus (At 1,3-8), com a referência aos 40 dias que mediaram entre a Ressurreição e a Ascensão e em que Ele falou aos discípulos sobre o Reino de Deus (contradizendo o Evangelho, onde Ressurreição e Ascensão parecem ter surgido no dia de Páscoa – cf Lc 24,44-53). O número 40 é simbólico e, definindo o tempo necessário para que o discípulo aprenda e repita as lições do mestre, simboliza o tempo de iniciação aos ensinamentos do Ressuscitado.

Já as palavras de Jesus (At 1,4-8) vincam a vinda do Espírito e o testemunho que os discípulos darão até aos confins do mundo. Está aqui a síntese da experiência missionária da comunidade: o Espírito derramar-se-á sobre a comunidade e dar-lhe-á a força para testemunhar Jesus em todo o mundo. É um programa posto na boca do Ressuscitado que Lucas desenvolverá ao longo do livro mostrando que o testemunho e a pregação da Igreja estão enraizados em Jesus e são impulsionados pelo Espírito.

O último tema é o da Ascensão (At 1,9-11). A este respeito é conveniente seguir de perto as indicações de Dom António Couto Bispo de Lamego:

E, tendo dito estas coisas, vendo (blepóntôn) eles, Ele foi Elevado (epêrthê) e uma nuvem O subtraiu (hypélaben) dos olhos deles (apò tôn ophthalmôn autôn). E, como tinham o olhar fixo (atenízontes) no céu para onde Ele ia, eis (idoú) dois homens que estavam ao lado deles, em vestes brancas, e que disseram: ‘Homens Galileus, porque estais de pé, perscrutando (blépontes) o céu? Este Jesus que foi arrebatado (analêmphtheís) ante vós para o céu, assim virá (eleúsetai) do modo (trópon) que O vistes (etheásthe) ie para o céu” (At 1,9-11). Do painel de verbos usados para “ver” (blépôatenízôhoráôemblépôtheáomai), os mais intensos são atenízô (olhar fixamente)emblépô (perscrutar). Exprimem a observação profunda, prolongada, para lá das aparências: ver o invisível (cf Heb 11,27), o céu, a glória de Deus. Além disso, acentuam o modo como se vê. Por isso, surgem de súbito os dois homens vestidos de branco a entregar um importante dizer que interpreta e orienta o ver, tal como sucedeu no túmulo onde reorientaram os olhos entristecidos das mulheres (cf Lc 24,5-6).

Trata-se de uma passagem que deve ser interpretada no sentido de que, pela roupagem dos símbolos, transpareça a mensagem com toda a claridade e premência. Assim, a elevação de Jesus ao céu (At 1,9a) não é o fenómeno da pessoa a descolar da terra e subir para a atmosfera. Para o teólogo deste livro, a Ascensão é o modo de exprimir simbolicamente que a exaltação de Jesus é total e atinge dimensões supraterrenas e é a forma de indicar a comunhão com o Pai. E a nuvem (At 1,9b) que oculta Jesus dos olhos dos discípulos e paira a meio caminho entre o céu e a terra remete-nos para a teofania veterotestamentária como símbolo privilegiado de expressão da presença de Deus (cf Ex 13,21.22; 14,19.24; 24,15b-18; 40,34-38). Simultaneamente, oculta e manifesta: sugere o mistério do Deus escondido e presente, cujo rosto o Povo não pode ver, mas cuja presença adivinha nos acidentes da caminhada. Céu e terra (presença e ausência, luz e sombra, divino e humano) são dimensões inferidas a partir do Cristo ressuscitado, elevado à glória do Pai, mas que acompanha os discípulos na sua caminhada.

O olhar dos discípulos para o céu (At 1,10a) significa a expectativa da comunidade que anseia pela segunda vinda de Cristo para levar a cabo a libertação do homem e do mundo. Só que isto não se consegue com o pasmo ou o espanto. Por isso, irrompem os dois homens vestidos de branco (1,10b), a sugerir o mundo de Deus convidando, em nome de Deus, os discípulos a continuar no mundo, animados pelo Espírito, a obra libertadora de Jesus, pois é a comunidade dos discípulos que tem de continuar, na história, a obra de Jesus esperando jubilosamente a última vinda de Cristo Salvador. Assim, o sentido fundamental da Ascensão não é admirar a elevação de Jesus, mas tomar consciência da necessidade de seguir o caminho de Jesus, olhando para o futuro com otimismo cristão, segundo a tetralogia: ver, acreditar, ir e anunciar.

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O trecho paulino (Ef 1,17-23), tomado para 2.ª leitura da Solenidade da Ascensão é extraído da Carta aos Efésios, uma carta-circular enviada a várias igrejas da Ásia Menor, quando Paulo está na prisão (anos 58/60), sendo Tíquico o seu portador. Dizem alguns que a carta é uma síntese da teologia paulina produzida no momento em que a missão do apóstolo está praticamente terminada no Oriente. E o trecho em causa aparece na primeira parte da carta integrando a ação de graças em que o apóstolo agradece a Deus pela fé dos efésios e pela caridade que manifestam para com todos os irmãos na fé. À ação de graças Paulo une fervorosa oração a Deus para os destinatários da carta conhecerem “a esperança a que foram chamados(hê elpìs tês klêseôs autoû: Ef 1,18). A prova de que o Pai tem poder para realizar essa “esperança”, de dar a vida eterna como herança, é o que Ele fez com Jesus: ressuscitou-O e sentou-O à sua direita (Ef 1,20), exaltou-O e deu-Lhe a soberania sobre os poderes angélicos (Paulo combate a tendência de alguns em exagerar na importância dos anjos, pondo-os acima de Cristo – cf Cl 1,6). E a soberania de Cristo estende-se à Igreja – o corpo de que Ele é a cabeça. E o mais relevante da perícopa é a ideia de que a comunidade é um corpo (sôma), o corpo de Cristo (formado por muitos membros), o que já constava nas grandes cartas, firmando-se a relação dos vários membros do corpo entre si (cf 1Cor 6,12-20; 10,16-17; 12,12-27; Rm 12,3-8); mas as cartas do cativeiro retomam a noção de corpo de Cristo para se refletir sobre a relação entre a comunidade e Cristo.

No trecho em referência, há dois conceitos significativos no quadro da relação entre Cristo e a Igreja: o de cabeça (kephalê) e o de plenitude (pleroma). Dizer que Cristo é a cabeça da Igreja revela que os dois formam uma comunidade indissolúvel e vivem uma comunhão total de vida e destino. Porém, Cristo é o centro em torno do qual o corpo se articula, a partir do qual e em direção ao qual o corpo cresce, se orienta e constrói, a origem e o fim desse corpo; e mostra que a Igreja-corpo está submetida à obediência a Cristo-cabeça: só de Cristo a Igreja depende e só a Ele deve obediência. Dizer que a Igreja é a plenitude de Cristo é crer que nela reside a totalidade de Cristo. Ela é o recetáculo, a habitação, onde Cristo Se torna presente no mundo, sendo por esse corpo onde reside que todos os dias Cristo continua a realizar o projeto Pai de salvar os homens. Presente nesse corpo, Cristo enche o mundo e atrai a Si o universo inteiro, até que a plenitude do próprio Cristo “seja tudo em todos” (tà pánta em pâsin plêrouménou: Ef 1,23).

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O trecho evangélico da Solenidade (Mc 16,15-20) no Ano B faz parte da perícopa de Mc 16,9-20, que se distingue, no conjunto do Evangelho de Marcos, por um estilo e vocabulário diferentes do resto do texto. Aliás, os manuscritos mais antigos concluíam o texto de Marcos em 16,8, com o medo das mulheres que, na manhã da Ressurreição, viram o túmulo vazio. Marcos terá terminado o seu relato dando-lhe um final aberto e como que instando o leitor-ouvinte a completar o relato com a sua própria experiência pessoal de seguimento de Jesus, superando o medo, vendo Jesus e dando testemunho d’Ele. Porém, esse final deixou insatisfeitos os leitores-ouvintes e apareceram várias tentativas de dar um final mais plausível a este Evangelho.

Algumas vêm atestadas em diversos documentos antigos que nos transmitiram o texto do 2.º Evangelho. De entre os diversos finais surgidos, o atual – de meados do século II – impôs-se aos outros, pois resume as aparições de Jesus ressuscitado contadas por outros evangelistas. Embora tardio e não redigido por Marcos, o trecho integra a Escritura Sagrada, reconhecendo-o a Igreja como canónico, inspirado por Deus e, portanto, Palavra de Deus.

Resumem os elementos do texto relatos dos outros evangelistas: o da aparição do Ressuscitado aos Onze é similar de Lc 24,36-43 e Jo 20,19-29; o da missão dos apóstolos é similar de Mt 28,16- 20 e Lc 24,44-49; e o da Ascensão é similar de Lc 24,50-53 e de At 1,4-11.

Os discípulos reagem de forma negativa ao facto de Jesus não estar com eles. Na manhã da Ressurreição, estavam “em luto e em pranto” (penthoûsi kaì klaíousin: Mc 16,10); depois, receberam o testemunho das mulheres que encontraram Jesus, com incredulidade e coração obstinado (cf Mc 16,14). Em ambos os casos, negam-se a prosseguir a aventura em que embarcaram com Jesus. Com medo do risco preferem ficar instalados. É a síndrome do antisseguimento. Porém, o encontro com o “Senhor Jesus (ho Kýrios Iêsoûs: Mc 16,19) obriga-os a sair da letargia e a assumir os seus compromissos e responsabilidades como membros e líderes da comunidade do Reino.

Temos aqui o pátio entreaberto do Evangelho a sublinhar a autoridade soberana e nova de Jesus sustentada na proximidade e familiaridade, a missão total a nós confiada, o mundo novo e bom, sadio e otimizado que brota da prática do Evangelho, o envolvimento de todos e a presença nova e ativa e comprometida do Ressuscitado connosco. Sobressai aqui a soberania de Jesus registada no facto de toda a operação vir a ser realizada “no nome de Jesus” (“em meu nome – en tô onómati mou: 16,17), mediante envio seu (kaì eîpen autoîs: Mc 16,15), com a sua presença cooperante (synergoûntos: Mc 16,20) e confirmante (bebaioûntos) (Mc 16,20). É de advertir que “só um verdadeiro soberano confia a sua história e a sua missão a gente como nós, que só deu até agora sinais de fraqueza e de pouca ou nula fiabilidade”, caindo por terra “uma certa retórica de santidade, que falsamente defende que só os santos são idóneos para a missão de anunciar o Evangelho”, como refere Dom António Couto, que assinala:

Um grande tema bíblico desde a Criação: a omnipotência de Deus como que limitada pela nossa liberdade, concedendo-nos aqui a imensa dignidade de partilhar connosco a sua autoridade, deixando também nas nossas mãos a capacidade de fazer surgir um mundo novo, cheio de bem, de bondade e de beleza”.

No entanto, é de sublinhar e tratar a questão central do papel dos discípulos no mundo, após a partida de Jesus, o que se vê em três passos: Jesus ressuscitado define a missão dos discípulos; Jesus parte ao encontro do Pai; e os discípulos partem para o mundo a concretizar a missão.

Primeiro (Mc 16,15-18), o Ressuscitado aparece aos discípulos, acorda-os do marasmo em que se instalaram e define a missão cujo desempenho lhes confia. A primeira marca do envio e do mandato é a universalidade da missão: destina-se a “todo o mundo” (eis tòn kósmou), não podendo deter-se perante barreiras étnicas, geográficas ou culturais, ou seja, destina-se a toda a terra. Depois, expõe o conteúdo: o “Evangelho” (tò euangélion). Ora, no Antigo Testamento (sobretudo no Deuteroisaías e no Tritoisaías), “evangelho” é a “boa notícia” da chegada da salvação para o Povo de Deus; na boca de Jesus, designa o anúncio de que o Reino de Deus chegou à vida dos homens, trazendo-lhes a paz, a libertação, a felicidade. Para os catequistas das primeiras comunidades, é o anúncio do acontecimento capital e único: em Jesus, Deus veio ao encontro dos homens, manifestou-lhes o seu amor, inseriu-os na sua família, convidou-os a integrar a comunidade do Reino, ofereceu-lhes a vida definitiva. Assim, “evangelho” é a “boa notícia” que muda o curso da história e que transforma o sentido e os horizontes da existência humana. E o seu anúncio obriga a optar: quem aderir a Jesus, ganha vida plena e definitiva (“quem acreditar e for batizado será salvo”: ho pisteúsas kaì baptistheìs sôthêsetai); e quem recusar ficará à margem da salvação (“quem não acreditar será condenado”: ho de apístêsas katakrithêsetai – Mc 16,16).

Este anúncio atingirá não só os homens, mas “toda a criatura” (pásê tê ktísei). Não raro, o homem, levado pelo egoísmo, cobiça e lucro, explorando a criação, destrói o mundo bom que Deus criou. Mas a salvação de Deus tem de transformar o coração do homem, eliminando o egoísmo e a maldade. E essa transformação induz uma nova relação do homem com as outras criaturas, não marcada pelo egoísmo e exploração, mas pelo respeito e amor. Nascerá a nova humanidade, a nova natureza, a ecologia integral de que recorrentemente fala o Papa. Mas o anúncio do Evangelho a “toda a criatura(Mc 16,15) reclama a página bíblica da Criação, com o ser humano a receber de Deus o mandato de dominar a criação inteira (Gn 1,26.28). Assim, as serpentes, uma das quais dominou o ser humano (Gn 3,1-5), são agora dominadas (Mc 16,18) do mesmo modo que o bem  (kalôs), em vez da cura, se estabelece nos doentes (Mc 16,18). E a presença salvífica Deus no mundo tornar-se-á realidade pelos gestos dos discípulos de Jesus, sinais d’Ele. Com Ele vencerão a injustiça e opressão (“expulsarão os demónios em meu nome”: en tô onómatí mou daimónia ekbaloûsin), apregoarão a paz e o entendimento dos homens (“falarão novas línguas”: glôssais lalêsousin kainaîs), levarão a esperança e a vida a quantos sofrem e são prisioneiros da doença e sofrimento (“imporão as mãos sobre os doentes e eles ficarão curados”: epì arrôstous kheîras epithêsousin kaì kalôs héxousin); e Jesus estará sempre com eles, ajudando-os a vencer as contrariedades e oposições.  

Em segundo plano (Mc 16,19), Jesus sobe ao céu e senta-Se à direita de Deus. A elevação de Jesus ao céu é uma forma de sugerir que, após o cumprimento da sua missão no meio dos homens, acorreu ao Pai plenificando a comunhão com Ele, pois fez entrar nela os redimidos.

A entronização de Jesus à direita de Deus mostra a veridicidade da proposta de Jesus. Na conceção dos povos antigos, aquele que se senta à direita é uma personalidade distinta, que o rei quer honrar de forma especial. Jesus, por ter realizado com total fidelidade o desígnio de Deus para os homens, é honrado pelo Pai e sentado à sua direita. A proposta de Jesus que os discípulos acolheram e que são chamados a testemunhar no mundo não é uma aventura sem sentido e sem saída, mas é o projeto de salvação que Deus oferece aos homens.

Em terceiro plano (Mc 16,20), descreve-se a ação missionária dos discípulos: partiram (deixando as seguranças e afetos por causa da missão) a pregar (anunciando com palavras e gestos concretos a vida que Deus oferece aos homens em Jesus) por toda a parte (propondo a todos a salvação de Deus). E o teólogo catequista assegura que os discípulos não estão sós na missão. Jesus ressuscitado está e coopera com eles e manifesta-Se ao mundo nas palavras e nos gestos deles.

Enfim, a Solenidade da Ascensão marca o momento em que os discípulos se consciencializam da sua missão e papel no mundo. A Igreja, comunidade dos discípulos reunida à volta de Jesus e animada pelo Espírito é uma comunidade missionária, cujo mister é testemunhar no mundo a salvação que Jesus nos veio trazer. É a Igreja em saída, que não pode ter medo de se enlamear quando está em jogo a salvação integral das pessoas, sobretudo se marcadas pela dor.

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Vemos e ouvimos. Por isso, acreditamos e partimos a anunciar! Ele sustenta, guia e acompanha.

                                                                                                                                                                                                                                    2021.05.16 – Louro de Carvalho

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