segunda-feira, 24 de maio de 2021

O Espírito Santo, o dom de Deus

 

Na Solenidade do Pentecostes, somos convidados a refletir sobre o Espírito Santo, o dom de Deus, que Jesus prometeu aos discípulos de acordo com o segmento textual “Virá o Paráclito, que Eu vos hei de enviar da parte do Pai(cf Jo 15,26) e outros similares (cf Jo 14,16.26; 16,7). 

Aliás, o Evangelho de João apresenta 5 trechos de promessa do Espírito Santo da parte de Jesus:

1 – “Eu pedirei ao Pai, e dar-vos-á outro Paráclito, para que esteja convosco para sempre: o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não O vê nem conhece. Vós O conheceis, porque junto a vós tem permanecido e em vós estará.” (Jo 14,16-17).

2 – “Disse-vos estas coisas, permanecendo junto de vós; mas o Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará no meu nome, Ele vos ensinará todas as coisas e vos recordará todas as coisas que Eu vos disse” (Jo 14,25-26).

3 – “Quando vier o Paráclito, que Eu vos enviarei de junto do Pai, o Espírito da verdade que procede do Pai, Ele dará testemunho acerca de Mim; dai também vós testemunho, porque estais Comigo desde o princípio” (Jo 15,26-27).

4 – Contudo, disse-vos estas coisas, para que, quando chegar a sua hora, vos recordeis que Eu vo-las disse. Não vos disse estas coisas desde o princípio, porque estava convosco. Agora, porém, vou para Aquele que Me enviou e nenhum de vós Me pergunta: ‘Para onde vais?’ Mas, porque vos disse estas coisas, a tristeza encheu o vosso coração. No entanto, Eu digo-vos a verdade: é melhor para vós que Eu parta, pois, se não partir, o Paráclito não virá a vós; mas, se for, enviá-Lo-ei a vós. E, quando Ele vier, denunciará o mundo quanto ao pecado, quanto à justiça e quanto ao julgamento: quanto ao pecado, porque não acreditam em Mim; quanto à justiça, porque vou para o Pai e já não Me vereis; quanto ao julgamento, porque o Príncipe deste mundo está julgado.” (Jo 16,5-11).

5 – Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, no entanto não conseguis suportá-las por agora. Mas, quando Ele vier, o Espírito da verdade, guiar-vos-á na verdade toda. De facto, não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que ouvir e anunciar-vos-á o que está para vir. Ele Me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará. Tudo quanto o Pai tem é meu. Por isso, vos disse: recebe do que é meu e vo-lo anunciará’.(Jo 16,12-15).

Na noite de Quinta-feira Santa, após a Ceia pascal, o Senhor faz a promessa do envio do Espírito Santo e explica todo o papel deste outro Paráclito junto dos discípulos, que hão de ser os apóstolos. Na tarde do dia da Ressurreição, Jesus apresenta-Se diante dos discípulos fechados no Cenáculo transidos de medo, saúda-os na paz e transmite-lhes o sopro do Espírito Santo com vista à pregação e remissão dos pecados (cf Jo 20,19-22). É esse mesmo Espírito que os crentes recebem no Batismo para o perdão dos pecados, na assimilação à morte, sepultura e ressurreição de Jesus, para, quando chegar a nossa vez, O seguirmos na sua via ascensional para o Pai, como filhos com o Filho, irmãos para a comunhão trinitária.

Entretanto, o Pentecostes, de que nos dá conta o 2.º capítulo do livro dos Atos dos Apóstolos é o momento da irrupção do Espírito Santo com toda a força e plenitude dos seus dons – o que acontece com o crente aquando da Confirmação. Para lá da consciência de que temos connosco o Espírito Santo, somos apossados da fortaleza que impele a enfrentar as adversidades que se levantam contra a comunidade do Reino. De facto, o Espírito acompanhava os apóstolos quando estavam em oração no Cenáculo com a Mãe de Jesus e outras mulheres e outros discípulos que não integravam o grupo dos Doze (Onze após a deserção de Judas Iscariotes). Tanto assim é que foi o Senhor quem determinou a escolha de Matias para integrar o grupo dos Apóstolos (cf At 1,15-27).

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Trata-se de outro Paráclito (Paráklêtos), do que se infere que Jesus também é Paráclito (1Jo 2,1). É o espírito da verdade (tó pneuma tês alêtheías) que tem estado e estará sempre com os discípulos.        

Como disse o Papa Francisco na homilia da Solenidade do Pentecostes deste ano de 2021 e comentando o trecho evangélico assumível para a liturgia da Solenidade no Ano B, “Jesus promete aos discípulos o Espírito Santo, o dom supremo, o dom dos dons”, utilizando o termo Paráclito, que encerra vários significados, nomeadamente o de “consolador e advogado.

No âmbito do Consolador, o Santo Padre evoca o hábito de procuramos consolações, sobretudo em momentos difíceis, sucedendo que as consolações meramente terrenas são momentâneas, extinguindo-se depressa. Ao invés, Jesus oferece-nos a consolação do Céu, o Espírito, o “Consolador perfeito”. E, enquanto as consolações do mundo têm um efeito apenas anestésico, o Espírito Santo, o amor de Deus “age no nosso espírito, desce ao mais íntimo de nós mesmos, visita o íntimo do coração, pois é das almas hóspede amável”, e faz-nos sentir “amados tal como somos”. É o mistério da “ternura de Deus em pessoa, que não nos deixa sozinhos; e o facto de estar com quem vive só, já é consolar. Com efeito, como dizia São Boaventura, “onde houver maior tribulação”, o Paráclito “leva maior consolação”. Enquanto o mundo nos lisonjeia e nos faz sentir invencíveis para, depois, nos atirar ao chão e nos fazer sentir errados, o Espírito do Ressuscitado quer levantar-nos. E o Pontífice chama a atenção para o exemplo dos Apóstolos:

Estavam sozinhos e perdidos, com as portas fechadas pelo medo; viviam no temor, tendo diante dos olhos todas as suas fragilidades e fracassos, os seus pecados: tinham renegado Jesus Cristo. Os anos transcorridos com Jesus não conseguiram mudá-los, continuavam a ser os mesmos. Depois, recebem o Espírito e tudo muda: os problemas e defeitos permanecem os mesmos, mas eles já não os temem porque não temem sequer quem pretende fazer-lhes mal. Sentem-se intimamente consolados, e querem fazer transbordar a consolação de Deus. Antes, eram medrosos; agora, só têm medo de não testemunhar o amor recebido. Jesus profetizara-o: o Espírito ‘dará testemunho a meu favor. E vós também haveis de dar testemunho.’ (Jo 15,26-27).”.

Diz o Papa que somos chamados a dar testemunho no Espírito Santo, a tornar-nos consoladores, “para darmos corpo à sua consolação”. E podemos fazê-lo, não tanto com grandes discursos, mas “aproximando-nos das pessoas”, com “a oração e a proximidade”, já que “a proximidade, a compaixão e a ternura são o estilo de Deus”. Assim, “o tempo da consolação” que nos propicia o Paráclito “é o tempo do anúncio feliz do Evangelho”, “levar a alegria do Ressuscitado”, “derramar amor sobre o mundo, sem abraçar o mundanismo”, “testemunhar a misericórdia”. Em suma, “é o tempo da liberdade do coração”.

E, falando do Paráclito como o Advogado, Francisco começa por advertir que, no tempo de Jesus, o advogado não exercia a sua função como agora: em vez de falar pelo acusado, ficava junto dele sugerindo-lhe os argumentos de defesa. É assim o Paráclito: “não nos substitui, mas defende-nos das falsidades do mal, inspirando-nos pensamentos e sentimentos” usando da delicadeza, que propõe sem impor, ao invés do espírito da falsidade, que “procura constranger-nos”, querendo “fazer-nos acreditar que somos sempre obrigados a ceder às más sugestões e aos impulsos dos vícios”. É, pois, nosso companheiro e inspirador.

Em conformidade com esta realidade, o Sumo Pontífice aconselha três coisas: viver o presente; procurar o todo; e colocar Deus antes do “eu”.

Na verdade, o Paráclito afirma o primado do “hoje”, contra a tentação paralisante das amarguras e nostalgias do passado ou contra o foco nas incertezas do amanhã e os temores do futuro. Por conseguinte, o Espírito Santo valoriza a “graça do presente”, que é o tempo “único e irrepetível” para fazer bem e “fazer da vida uma dádiva”. No âmbito da busca do todo, não da parte, é de assentar em que “o Espírito não molda indivíduos fechados, mas funde-nos como Igreja na multiforme variedade dos carismas, numa unidade que nunca é uniformidade”. O primado do todo preconizado pelo Paráclito mostra que é “na comunidade que o Espírito gosta de agir e inovar”. E o exemplo dos Apóstolos é eloquente nesta onda. Eram diferentes entre si: por exemplo, Mateus, o publicano, colaborara com os Romanos; e Simão, o Zelote, opunha-se-lhes. Tinham ideias políticas e mundivisões opostas. Porém, ao receberem o Espírito, dão o primado, não aos seus pontos de vista, mas ao todo de Deus. E o Bispo de Roma aconselha a dar ouvidos ao Espírito e deixaremos de nos focar em diferenças entre conservadores e progressistas, tradicionalistas e inovadores, de direita e de esquerda”, sob pena de darmos a entender que na Igreja se esquece o Espírito, o qual “impele à unidade, concórdia, harmonia das diversidades” e “faz-nos sentir parte do mesmo Corpo”, ao invés do inimigo que tenta transformar a diversidade em oposição criando ideologias nefastas. Já a colocação de Deus antes do “eu” configura o passo decisivo da vida espiritual, que “não é uma coleção de méritos e obras nossas”, mas humilde acolhimento de Deus”. E o Paráclito, afirmando “o primado da graça”, postula o total esvaziamento de nós mesmos, o encontro de nós connosco próprios entregando-nos a Ele, pois, “só como pobres em espírito é que nos tornamos ricos de Espírito Santo”. Esta é uma lição que vale para a Igreja no seu todo:

A Igreja não é uma organização humana – é humana, mas não é apenas uma organização humana –, a Igreja é o templo do Espírito Santo. Jesus trouxe o fogo do Espírito à terra, e a Igreja reforma-se com a unção, a gratuidade da unção da graça, com a força da oração, com a alegria da missão, com a beleza desarmante da pobreza.”.

Efetivamente, com as nossas forças, não salvamos ninguém, nem a nós mesmos. E, se dermos a primazia os nossos projetos, estruturas e planos de reforma, “decairemos no funcionalismo, no pragmatismo, no horizontalismo e não produziremos fruto”. Por consequência, o Papa roga:

Espírito Santo, Espírito Paráclito, consola os nossos corações. Faz-nos missionários da tua consolação, paráclitos de misericórdia para o mundo. Ó nosso Advogado, suave Sugeridor da alma, torna-nos testemunhas do hoje de Deus, profetas de unidade para a Igreja e a humanidade, apóstolos apoiados na tua graça, que tudo cria e tudo renova.”.

O Paráclito é, no dizer de Dom António Couto, o intérprete. Com efeito, como dizia Jesus, Ele recorda tudo quanto Jesus ensinou e explica tudo o que eles (e nós) não compreenderam. É, pois, o docente explicador e repetidor, mas que dá testemunho (martýrion) de Jesus e impulsiona os discípulos ao testemunho, não deixando que a doutrina e o facto salvífico fiquem encaixotados nos corações de quem tem o ónus de anunciar, explicar e urgir. Inova e renova porque anuncia tudo quanto ouviu e ajusta todas as coisas à doutrina que anuncia e faz anunciar. É o guia e o potenciador da profecia e o construtor da justiça no mundo. Com o seu ensino e testemunho, torna-nos pessoas de corpo inteiro, adultas, responsáveis. Faz-nos imergir na oração ardente e assumir o estatuto de pessoas plenamente livres e criativas, cidadãs do reino da liberdade.  

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A perícopa de Atos dos Apóstolos que relata a irrupção do Espírito no Pentecostes (At 2,1-11) tem clara intenção teológica. Lucas recorre às imagens, símbolos e linguagem poética das metáforas, que é preciso descodificar para chegarmos à interpelação essencial que a catequese lucana nos levanta. A interpretação literal do relato levaria ao lado folclórico do texto, deixando à margem o essencial da mensagem, quando o interesse fundamental do hagiógrafo é apresentar a Igreja como a comunidade que nasce de Jesus, assistida pelo Espírito e chamada a testemunhar aos homens o desígnio libertador do Pai.

“Pentecostes” (pentêkostê – subentende-se hêméra: quinquagésimo dia) era a festa judaica celebrada 50 dias após a Páscoa. Originariamente era festa agrícola de agradecimento a Deus pela colheita da cevada e do trigo; depois, tornou-se a festa histórica que celebrava a aliança, o dom da Lei no Sinai e a constituição do Povo de Deus. Ao situar neste dia o dom do Espírito, Lucas sugere que o Espírito é a lei da nova aliança, pois é Ele que, no tempo da Igreja, dinamiza a vida dos crentes e que, por Ele, se constitui a nova comunidade do Povo de Deus – a comunidade messiânica, que vive da lei inscrita, pelo Espírito, no coração de cada discípulo (cf Ez 36,26-28). Na narrativa da irrupção do Espírito (At 2,2-4), o Espírito surge como “a força de Deus” através de dois símbolos: a rajada do vento de tempestade e o fogo – os mesmos símbolos da teofania do Sinai, quando Deus deu a Lei a Israel e o constituiu como Povo de Deus (cf Ex 19,16.18; Dt 4,36), símbolos da força irresistível do Deus que vem ao encontro do homem, comunica com ele e que, dando-lhe o Espírito, constitui a comunidade de Deus.

A força de Deus vem em forma de língua de fogo. A língua, além de exprimir a identidade cultural dum grupo humano, constitui a maneira de comunicar, estabelecer laços duradouros entre as pessoas, criar comunidade. Assim, “falar outras línguas” é criar relações, superar o gueto, o egoísmo, a divisão, o racismo, a marginalização. O Pentecostes é o reverso relativo de Babel (cf Gn 11,1-9). Em Babel, venceu a ambição desmedida que levou à separação e ao desentendimento, em que a diversidade anulou a unidade; no Pentecostes, regressa-se à unidade, à relação, à construção da comunidade capaz do diálogo, entendimento, comunicação. O erro consiste em querer transmutar a unidade em uniformidade matando a diversidade, a criatividade e a liberdade. Com efeito, os Apóstolos falavam das maravilhas de Deus e cada um dos ouvintes (de proveniências tão diversificadas) os ouvia falar na sua própria língua (cf At 2,5-13: êkouon heîs hékastõs têi idíai dialektôi laloúntôn autôn). Surge, assim, uma humanidade unida, não pela força, mas pela partilha da mesma experiência interior, fonte de liberdade, comunhão e amor.

O rol de povos referidos representa todo o mundo então conhecido, da Mesopotâmia, passando por Canaã, Ásia Menor, norte de África, até Roma, significando que a salvação anunciada pela força de Deus tem a marca da universalidade, pelo que a todos deve chegar a libertação em Jesus, que faz de todos os povos comunidade de amor e de partilha. Sem deixarem a suas culturas e demais diferenças, todos os povos escutarão o anúncio da oferta de salvação e podem integrar a comunidade onde se fala a mesma língua e onde todos experimentam o amor e a comunhão que tornam irmãos povos tão diferentes. Por isso, o Pentecostes, como página programática da Igreja, anuncia o resultado da ação das “testemunhas” (mártyres) de Jesus: a humanidade nova, nascida da ação do Espírito, onde todos comunicam e se relacionam como irmãos, pois o Espírito reside em todos como lei suprema, fonte de amor, espaço de liberdade.

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Dantes, dizia-se que a Confirmação nos comunica o Espírito Santo com a abundância dos seus dons, que a doutrina, compulsando vários textos bíblicos, compendiou em sete. Ora, sete é o número da totalidade. Por isso, quando falamos em sete, abrangemos toda a pluralidade de dons que o Espírito contém para nós. De facto, Paulo (vd 1 Cor 12,3b-7.12-13) afirma a unidade do Espírito, que faz um só corpo, mas com muitos membros, dons (se em prol da comunidade, são carismas), serviços, operações – tudo em prol desse corpo único que bebe dum único espírito. E noutro escrito paulino (vd Gl 5,16-25) são discriminados os desejos e obras da carne em paralelo com os do Espírito, sendo que, dada a excelência dos frutos do Espírito, o apelo é: se vivemos segundo o Espírito, caminhamos também segundo o Espírito (ei zômen pneúmati, pneúmati kaì stoikhômen). E na Carta aos Romanos (vd Rm 8,8-17), depois de garantir que estamos sob o poder do Espírito (e não da carne), porque ressuscitados com Cristo e, com Ele e por Ele, preparados para a glorificação final, ensina que é no Espírito que somos capazes de clamar “Abbá, Pai”. É Ele que nos instrui na fé, na filiação divina e na herança que Deus nos concede. Com efeito, ninguém dirá “Senhor Jesus” (Kýrios Iêsoûs), a não ser no Espírito (1Cor 12,3b).

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É, pois, eloquente a nova expressão da forma da Confirmação, em que o ministro, fazendo a cruz com a polpa do polegar embebida no óleo do crisma unge a fronte do confirmando e diz: “Recebe por este sinal o Espírito Santo, o dom de Deus”. É Deus que Se dá na sua totalidade!

2021.05.23 – Louro de Carvalho

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