Na
Solenidade do Pentecostes, somos convidados a refletir sobre o Espírito Santo,
o dom de Deus, que Jesus prometeu aos discípulos de acordo com o segmento
textual “Virá o Paráclito, que Eu vos hei
de enviar da parte do Pai” (cf Jo 15,26) e outros similares (cf Jo 14,16.26; 16,7).
Aliás,
o Evangelho de João apresenta 5 trechos de promessa do Espírito Santo da parte
de Jesus:
1 – “Eu pedirei ao Pai, e dar-vos-á outro Paráclito, para que
esteja convosco para sempre: o Espírito da verdade, que o mundo não pode
receber, porque não O vê nem conhece. Vós O conheceis, porque junto a vós tem
permanecido e em vós estará.” (Jo 14,16-17).
2 – “Disse-vos estas coisas, permanecendo junto
de vós; mas o Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará no meu nome, Ele
vos ensinará todas as coisas e vos recordará todas as coisas que Eu vos disse”
(Jo 14,25-26).
3 – “Quando vier
o Paráclito, que Eu vos enviarei de junto do Pai, o Espírito da verdade que
procede do Pai, Ele dará testemunho acerca de Mim; dai também vós testemunho,
porque estais Comigo desde o princípio”
(Jo 15,26-27).
4 – “Contudo, disse-vos estas coisas, para que, quando chegar a sua hora,
vos recordeis que Eu vo-las disse. Não vos disse estas coisas desde o
princípio, porque estava convosco. Agora, porém, vou para Aquele que Me enviou
e nenhum de vós Me pergunta: ‘Para onde vais?’ Mas, porque vos disse estas
coisas, a tristeza encheu o vosso coração. No entanto, Eu digo-vos a verdade: é
melhor para vós que Eu parta, pois, se não partir, o Paráclito não virá a
vós; mas, se for, enviá-Lo-ei a vós. E, quando Ele vier, denunciará o mundo
quanto ao pecado, quanto à justiça e quanto ao julgamento: quanto ao pecado,
porque não acreditam em Mim; quanto à justiça, porque vou para o Pai e já não Me
vereis; quanto ao julgamento, porque o Príncipe deste mundo está julgado.”
(Jo 16,5-11).
5 – “Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, no entanto não conseguis
suportá-las por agora. Mas, quando Ele vier, o Espírito da verdade, guiar-vos-á
na verdade toda. De facto, não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que ouvir e
anunciar-vos-á o que está para vir. Ele Me glorificará, porque receberá do que
é meu e vo-lo anunciará. Tudo quanto o Pai tem é meu. Por isso, vos disse:
recebe do que é meu e vo-lo anunciará’.” (Jo
16,12-15).
Na
noite de Quinta-feira Santa, após a Ceia pascal, o Senhor faz a promessa do
envio do Espírito Santo e explica todo o papel deste outro Paráclito junto dos
discípulos, que hão de ser os apóstolos. Na tarde do dia da Ressurreição, Jesus
apresenta-Se diante dos discípulos fechados no Cenáculo transidos de medo,
saúda-os na paz e transmite-lhes o sopro do Espírito Santo com vista à pregação
e remissão dos pecados (cf Jo 20,19-22). É esse mesmo Espírito que os crentes recebem no Batismo
para o perdão dos pecados, na assimilação à morte, sepultura e ressurreição de
Jesus, para, quando chegar a nossa vez, O seguirmos na sua via ascensional para
o Pai, como filhos com o Filho, irmãos para a comunhão trinitária.
Entretanto,
o Pentecostes, de que nos dá conta o 2.º capítulo do livro dos Atos dos
Apóstolos é o momento da irrupção do Espírito Santo com toda a força e
plenitude dos seus dons – o que acontece com o crente aquando da Confirmação.
Para lá da consciência de que temos connosco o Espírito Santo, somos apossados da
fortaleza que impele a enfrentar as adversidades que se levantam contra a
comunidade do Reino. De facto, o Espírito acompanhava os apóstolos quando
estavam em oração no Cenáculo com a Mãe de Jesus e outras mulheres e outros
discípulos que não integravam o grupo dos Doze (Onze após a deserção de Judas Iscariotes). Tanto assim é que foi o
Senhor quem determinou a escolha de Matias para integrar o grupo dos Apóstolos (cf At 1,15-27).
***
Trata-se
de outro Paráclito (Paráklêtos), do que se infere que Jesus
também é Paráclito (1Jo 2,1). É o espírito da verdade (tó pneuma
tês alêtheías) que tem estado e estará sempre com os discípulos.
Como
disse o Papa Francisco na homilia da Solenidade do Pentecostes deste ano de
2021 e comentando o trecho evangélico assumível para a liturgia da Solenidade
no Ano B, “Jesus promete aos discípulos o Espírito Santo, o dom supremo, o dom
dos dons”, utilizando o termo Paráclito, que encerra vários
significados, nomeadamente o de “consolador e advogado”.
No
âmbito do Consolador, o Santo Padre evoca o hábito de procuramos consolações,
sobretudo em momentos difíceis, sucedendo que as consolações meramente terrenas
são momentâneas, extinguindo-se depressa. Ao invés, Jesus oferece-nos a consolação
do Céu, o Espírito, o “Consolador perfeito”. E, enquanto as consolações do
mundo têm um efeito apenas anestésico, o Espírito Santo, o amor de Deus “age no
nosso espírito, desce ao mais íntimo de nós mesmos, visita o íntimo do coração,
pois é das almas hóspede amável”, e faz-nos sentir “amados tal como somos”. É o
mistério da “ternura de Deus em pessoa, que não nos deixa sozinhos; e o facto
de estar com quem vive só, já é consolar. Com efeito, como dizia São
Boaventura, “onde houver maior tribulação”, o Paráclito “leva maior consolação”.
Enquanto o mundo nos lisonjeia e nos faz sentir invencíveis para, depois, nos
atirar ao chão e nos fazer sentir errados, o Espírito do Ressuscitado quer
levantar-nos. E o Pontífice chama a atenção para o exemplo dos Apóstolos:
“Estavam sozinhos e perdidos, com as portas fechadas pelo medo; viviam
no temor, tendo diante dos olhos todas as suas fragilidades e fracassos, os
seus pecados: tinham renegado Jesus Cristo. Os anos transcorridos com Jesus não
conseguiram mudá-los, continuavam a ser os mesmos. Depois, recebem o Espírito e
tudo muda: os problemas e defeitos permanecem os mesmos, mas eles já não os
temem porque não temem sequer quem pretende fazer-lhes mal. Sentem-se
intimamente consolados, e querem fazer transbordar a consolação de Deus. Antes,
eram medrosos; agora, só têm medo de não testemunhar o amor recebido. Jesus
profetizara-o: o Espírito ‘dará testemunho a meu favor. E vós também haveis de
dar testemunho.’ (Jo 15,26-27).”.
Diz
o Papa que somos chamados a dar testemunho no Espírito Santo, a tornar-nos consoladores, “para darmos
corpo à sua consolação”. E podemos fazê-lo, não tanto com grandes discursos,
mas “aproximando-nos das pessoas”, com “a oração e a proximidade”, já que “a
proximidade, a compaixão e a ternura são o estilo de Deus”. Assim, “o tempo da consolação” que nos propicia o Paráclito
“é o tempo do anúncio feliz do Evangelho”, “levar a alegria do Ressuscitado”, “derramar
amor sobre o mundo, sem abraçar o mundanismo”, “testemunhar a misericórdia”. Em
suma, “é o tempo da liberdade do coração”.
E,
falando do Paráclito como o
Advogado, Francisco começa por advertir que, no tempo de Jesus, o
advogado não exercia a sua função como agora: em vez de falar pelo acusado, ficava
junto dele sugerindo-lhe os argumentos de defesa. É assim o Paráclito: “não nos
substitui, mas defende-nos das falsidades do mal, inspirando-nos pensamentos e
sentimentos” usando da delicadeza, que propõe sem impor, ao invés do espírito
da falsidade, que “procura constranger-nos”, querendo “fazer-nos acreditar que
somos sempre obrigados a ceder às más sugestões e aos impulsos dos vícios”. É,
pois, nosso companheiro e inspirador.
Em
conformidade com esta realidade, o Sumo Pontífice aconselha três coisas: viver
o presente; procurar o todo; e colocar Deus antes do “eu”.
Na
verdade, o Paráclito afirma o
primado do “hoje”, contra a tentação paralisante das amarguras e
nostalgias do passado ou contra o foco nas incertezas do amanhã e os temores do
futuro. Por conseguinte, o Espírito Santo valoriza a “graça do presente”, que é
o tempo “único e irrepetível” para fazer bem e “fazer da vida uma dádiva”. No
âmbito da busca do todo, não da parte, é de assentar em que “o Espírito não
molda indivíduos fechados, mas funde-nos como Igreja na multiforme variedade
dos carismas, numa unidade que nunca é uniformidade”. O primado do todo preconizado pelo Paráclito mostra que é “na
comunidade que o Espírito gosta de agir e inovar”. E o exemplo dos Apóstolos é
eloquente nesta onda. Eram diferentes entre si: por exemplo, Mateus, o publicano,
colaborara com os Romanos; e Simão, o Zelote, opunha-se-lhes. Tinham ideias
políticas e mundivisões opostas. Porém, ao receberem o Espírito, dão o primado,
não aos seus pontos de vista, mas ao todo de Deus. E o Bispo de Roma aconselha
a dar ouvidos ao Espírito e deixaremos de nos focar em diferenças entre conservadores
e progressistas, tradicionalistas e inovadores, de direita e de esquerda”, sob
pena de darmos a entender que na Igreja se esquece o Espírito, o qual “impele à
unidade, concórdia, harmonia das diversidades” e “faz-nos sentir parte
do mesmo Corpo”, ao invés do inimigo que tenta transformar a diversidade em
oposição criando ideologias nefastas. Já a colocação de Deus antes do “eu”
configura o passo decisivo da vida espiritual, que “não é uma coleção de
méritos e obras nossas”, mas humilde acolhimento de Deus”. E o Paráclito,
afirmando “o primado da graça”,
postula o total esvaziamento de nós mesmos, o encontro de nós connosco
próprios entregando-nos a Ele, pois, “só como pobres em espírito é que nos tornamos
ricos de Espírito Santo”. Esta é uma lição que vale para a Igreja no seu todo:
“A Igreja não é uma organização humana – é humana, mas não é apenas uma
organização humana –, a Igreja é o templo do Espírito Santo. Jesus trouxe o
fogo do Espírito à terra, e a Igreja reforma-se com a unção, a gratuidade da
unção da graça, com a força da oração, com a alegria da missão, com a beleza
desarmante da pobreza.”.
Efetivamente,
com as nossas forças, não salvamos ninguém, nem a nós mesmos. E, se dermos a
primazia os nossos projetos, estruturas e planos de reforma, “decairemos no
funcionalismo, no pragmatismo, no horizontalismo e não produziremos fruto”. Por
consequência, o Papa roga:
“Espírito Santo, Espírito Paráclito, consola os nossos corações. Faz-nos
missionários da tua consolação, paráclitos de misericórdia para o mundo. Ó
nosso Advogado, suave Sugeridor da alma, torna-nos testemunhas do hoje de Deus,
profetas de unidade para a Igreja e a humanidade, apóstolos apoiados na tua
graça, que tudo cria e tudo renova.”.
O
Paráclito é, no dizer de Dom António Couto, o intérprete. Com efeito, como
dizia Jesus, Ele recorda tudo quanto Jesus ensinou e explica tudo o que eles (e
nós) não
compreenderam. É, pois, o docente explicador e repetidor, mas que dá testemunho
(martýrion) de Jesus e impulsiona os discípulos
ao testemunho, não deixando que a doutrina e o facto salvífico fiquem
encaixotados nos corações de quem tem o ónus de anunciar, explicar e urgir.
Inova e renova porque anuncia tudo quanto ouviu e ajusta todas as coisas à
doutrina que anuncia e faz anunciar. É o guia e o potenciador da profecia e o
construtor da justiça no mundo. Com o seu ensino e testemunho, torna-nos
pessoas de corpo inteiro, adultas, responsáveis. Faz-nos imergir na oração
ardente e assumir o estatuto de pessoas plenamente livres e criativas, cidadãs
do reino da liberdade.
***
A perícopa de Atos dos Apóstolos que relata a irrupção do
Espírito no Pentecostes (At 2,1-11) tem clara intenção teológica. Lucas recorre
às imagens, símbolos e linguagem poética das metáforas, que é preciso
descodificar para chegarmos à interpelação essencial que a catequese lucana nos
levanta. A interpretação literal do relato levaria ao lado folclórico do texto,
deixando à margem o essencial da mensagem, quando o interesse fundamental do
hagiógrafo é apresentar a Igreja como a comunidade que nasce de Jesus,
assistida pelo Espírito e chamada a testemunhar aos homens o desígnio
libertador do Pai.
“Pentecostes” (pentêkostê – subentende-se hêméra: quinquagésimo dia) era a festa judaica celebrada 50
dias após a Páscoa. Originariamente era festa agrícola de agradecimento a Deus pela
colheita da cevada e do trigo; depois, tornou-se a festa histórica que
celebrava a aliança, o dom da Lei no Sinai e a constituição do Povo de Deus. Ao
situar neste dia o dom do Espírito, Lucas sugere que o Espírito é a lei da nova
aliança, pois é Ele que, no tempo da Igreja, dinamiza a vida dos crentes e que,
por Ele, se constitui a nova comunidade do Povo de Deus – a comunidade
messiânica, que vive da lei inscrita, pelo Espírito, no coração de cada
discípulo (cf Ez
36,26-28). Na narrativa
da irrupção do Espírito (At
2,2-4), o Espírito surge
como “a força de Deus” através de dois símbolos: a rajada do vento de tempestade
e o fogo – os mesmos símbolos da teofania do Sinai, quando Deus deu a Lei a
Israel e o constituiu como Povo de Deus (cf Ex 19,16.18; Dt 4,36), símbolos da força irresistível do Deus que vem ao encontro
do homem, comunica com ele e que, dando-lhe o Espírito, constitui a comunidade
de Deus.
A força de Deus vem em forma de língua de fogo. A língua,
além de exprimir a identidade cultural dum grupo humano, constitui a maneira de
comunicar, estabelecer laços duradouros entre as pessoas, criar comunidade. Assim,
“falar outras línguas” é criar relações, superar o gueto, o egoísmo, a divisão,
o racismo, a marginalização. O Pentecostes é o reverso relativo de Babel (cf Gn 11,1-9). Em Babel, venceu a ambição
desmedida que levou à separação e ao desentendimento, em que a diversidade
anulou a unidade; no Pentecostes, regressa-se à unidade, à relação, à
construção da comunidade capaz do diálogo, entendimento, comunicação. O erro
consiste em querer transmutar a unidade em uniformidade matando a diversidade,
a criatividade e a liberdade. Com efeito, os Apóstolos falavam das maravilhas
de Deus e cada um dos ouvintes (de proveniências tão diversificadas) os ouvia falar na sua própria língua (cf At 2,5-13: êkouon heîs hékastõs têi idíai dialektôi laloúntôn autôn). Surge, assim, uma humanidade unida, não pela força, mas
pela partilha da mesma experiência interior, fonte de liberdade, comunhão e amor.
O rol de povos referidos representa todo o mundo então conhecido,
da Mesopotâmia, passando por Canaã, Ásia Menor, norte de África, até Roma,
significando que a salvação anunciada pela força de Deus tem a marca da
universalidade, pelo que a todos deve chegar a libertação em Jesus, que faz de
todos os povos comunidade de amor e de partilha. Sem deixarem a suas culturas e
demais diferenças, todos os povos escutarão o anúncio da oferta de salvação e
podem integrar a comunidade onde se fala a mesma língua e onde todos experimentam
o amor e a comunhão que tornam irmãos povos tão diferentes. Por isso, o
Pentecostes, como página programática da Igreja, anuncia o resultado da ação
das “testemunhas” (mártyres) de Jesus: a humanidade nova, nascida da ação do
Espírito, onde todos comunicam e se relacionam como irmãos, pois o Espírito
reside em todos como lei suprema, fonte de amor, espaço de liberdade.
***
Dantes, dizia-se que a Confirmação nos comunica o Espírito
Santo com a abundância dos seus dons, que a doutrina, compulsando vários textos
bíblicos, compendiou em sete. Ora, sete é o número da totalidade. Por isso,
quando falamos em sete, abrangemos toda a pluralidade de dons que o Espírito
contém para nós. De facto, Paulo (vd 1 Cor 12,3b-7.12-13) afirma a unidade do Espírito, que faz um só corpo, mas com
muitos membros, dons (se
em prol da comunidade, são carismas), serviços, operações – tudo em prol desse corpo único que bebe
dum único espírito. E noutro escrito paulino (vd Gl 5,16-25) são discriminados os desejos e obras da carne em paralelo
com os do Espírito, sendo que, dada a excelência dos frutos do Espírito, o
apelo é: se vivemos segundo o Espírito,
caminhamos também segundo o Espírito (ei zômen pneúmati, pneúmati
kaì stoikhômen). E na
Carta aos Romanos (vd Rm
8,8-17), depois de garantir
que estamos sob o poder do Espírito (e não da carne), porque ressuscitados com Cristo e, com Ele e por Ele, preparados
para a glorificação final, ensina que é no Espírito que somos capazes de clamar
“Abbá, Pai”. É Ele que nos instrui na
fé, na filiação divina e na herança que Deus nos concede. Com efeito, ninguém dirá
“Senhor Jesus” (Kýrios Iêsoûs), a não ser no Espírito (1Cor 12,3b).
***
É, pois, eloquente a nova expressão da forma da Confirmação, em
que o ministro, fazendo a cruz com a polpa do polegar embebida no óleo do crisma
unge a fronte do confirmando e diz: “Recebe por este sinal o Espírito Santo, o
dom de Deus”. É Deus que Se dá na sua totalidade!
2021.05.23
– Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário