segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

O domingo do amor aos inimigos


É justamente o 7.º domingo do Tempo Comum no Ano C, cujo tema se toma a partir das passagens bíblicas assumidas para a Celebração Eucarística: 1Sm 26,2.7-9.12-13.22-23; 1Cor 15,45-49; e Lc 6,27-38. Se amar as pessoas amigas e os que nos querem bem já é difícil, muito mais o será amar os inimigos, os antipáticos, os intragáveis. Não obstante, Cristo não só o mandou fazer como o viveu integralmente até ao fim. E, antes de Se entregar nas mãos dos malfeitores, ordenou aos discípulos após o lava-pés: “Dei-vos o exemplo,  para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (Jo 13,15).
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Já o Antigo Testamento (AT) abre para esta doutrina. Assim, o teor do relato da passagem do 1.º livro de Samuel (26,1-25) de que foram selecionados trechos para a 1.ª leitura da Liturgia da Palavra é similar do dos capítulos 23 e 24 (sobretudo 23,7-14.19 – 24,23). Ambos expõem a rivalidade entre Saul e David. Saul, para se manter no trono e doido por ver David crescer e hipoteticamente constituir uma ameaça para o rei, movimenta o escol do seu exército contra David e seus homens, ao passo que David, o suposto guerrilheiro subversivo, foge do rei e das suas tropas regulares e busca refúgio nos esconderijos das montanhas e na aridez do deserto.
O guerreiro Abisai e os companheiros interpretam esta a situação excecional como oportunidade criada por Deus para David se livrar de Saul – interpretação que funciona no texto bíblico como tentação para o jovem eliminar o rei. Porém, como homem sábio que era, David não se deixa seduzir. E rejeita a interpretação do seu estado-maior por superficial, interesseira e maléfica, porque sente que Deus não lhe deu esta oportunidade para eliminar Saul e se apoderar do trono, mas para mostrar que a fúria de Saul não se dirige propriamente contra David, mas contra Deus. Saul persegue David como subversivo, quando este não tem qualquer plano de subversão. Se o rei perde o poder e o trono em favor de David, não é porque este o queira, mas porque Deus está a guiar a história neste sentido, que é irreversível. Assim, a mão de Saul não pode modificar a história. E Deus não precisa da mão de David para apressar a história, matando Saul. Por isso, David não se deixa levar pelo ódio ou pela vingança contra Saul. Segue a sabedoria divina plasmada no sábio ditame oriental: “Quando quiseres exercer a vingança, não te esqueças de, antes, fazeres duas covas”. A vingança perpetrada contra o outro por vezes revira-se contra o vingador e sempre este se afunda na sua vingança, De facto, não está na mão de homem tirar a vida a homem, pelo que, David demonstra perdão ao inimigo político, um ungido do Senhor, pois, como Deus quer o ser humano vivo, também as pessoas devem querê-lo vivo, embora seja adversário. E não é só o rei um ungido do Senhor: todo o homem o é enquanto imagem de Deus.
O rei deixou-se levar a essa perseguição a David por conselho dos assessores, portanto, não pela vontade de Deus, mas pela maldade dos homens. E, porque David não deu razão para ser perseguido, o rei corre perigo de se tornar culpado de pecado alheio, pois a perseguição pode obrigar David a refugiar-se em terra inimiga e buscar a ajuda de servidores de deuses falsos e estrangeiros. Portanto, quem ameaça a segurança do povo não é David, mas Saul, que põe Deus à prova ao obrigar um patriota fiel a refugiar-se no campo inimigo. Saul, por dar ouvidos aos conselhos maléficos de seus ministros, tornar-se-ia causa de traição da pátria e da apostasia do servo de Deus. E Saul reconhece-o e confessa: “Fiz mal!… Cometi um grande pecado” (26,21). Com efeito, agiu por medo de perder o poder e por inveja, mas agora curva-se diante do poder de Deus e exclama:
Bendito sejas, meu filho David! Tu triunfarás seguramente em todas as tuas obras!” (26,25).
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O Salmo 103, de que se assumem os vv 1-4.8.1.12-13 para cântico de meditação ou salmo responsorial em ressonância orante da 1.ª leitura, é um hino ao amor paternal de Deus. Além de um estilo muito pessoal e íntimo, tem o espírito e a ressonância dum hino em honra de Deus. O texto atual pode ter nascido dum salmo de ação de graças individual, mas representa um hino de louvor a Deus pelo seu amor eterno e providente, um “Te Deum” do AT por todos os benefícios concedidos a uma pessoa e a todo o povo.
Começa pelo autoconvite ao louvor e prossegue no agradecimento a Deus pelos benefícios recebidos: o perdão dos pecados; e a libertação do perigo da morte, de modo que a vida do salmista parece recomeçar numa nova juventude. E, no versículo 8, o salmista reza a grande definição de Deus (O Senhor é misericordioso e compassivo, é paciente e cheio de amor), uma fórmula litúrgica que acolhe e vivencia muitas experiências de convívio com Deus, que, na sua atuação face ao pecado das pessoas, mostra principalmente a sua misericórdia, que suscita a confissão humilde. O ápice do salmo é a ternura paternal de Deus.
O salmo canta a grandiosidade de Deus que mostra o Seu poder quando perdoa, cura, redime, coroa com a vida de amor e compaixão, sacia, faz justiça e defende os oprimidos. Faz história com o seu povo perdoando e sendo compassivo. Jesus mesmo O louvou e mostrou bondoso e compassivo também com os maus e injustos. E ensinou-nos a chamá-Lo de Abba, paizinho.
No AT, a paternidade de Deus é tida por imagem sugestiva. Mas, quando o Filho Se torna homem, nosso irmão, Deus faz-nos seus filhos e filhas de Deus. E a Sua paternidade já não é uma simples imagem, mas a realidade da nossa vida: chamamo-nos e somos filhos de Deus:
Vede que prova de amor nos deu o Pai: que sejamos chamados filhos de Deus. E somo-lo, de facto” (1Jo 3,1). “Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Com efeito, não recebestes um espírito de escravos, para recair no temor, mas recebestes o espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba! Pai! O próprio Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus” (Rm 8,14-17).”.
Em Cristo, Jesus revela-se o amor do Pai, a sua compreensão das pessoas, a sua misericórdia.
O canto deste salmo constitui uma prece ao Espírito de Deus para que se uma ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos e filhas de Deus.
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É este dinamismo da generosidade, da tolerância, da compaixão e do perdão, regado pela água sapiente de Jesus, que a perícopa lucana (Lc 6,27-38) aclamada em Aleluias e proclamada como Boa Nova nos mostra em diversas modalidades. David, embora perseguido por Saul e podendo vingar-se dele, matando-o inclusive, tem clemência e não o mata. Torna-se assim um exemplo concreto de pessoa capaz de amar os inimigos, Porém, o modelo insuperável é Jesus Cristo, que Se deixa crucificar por amor da Humanidade, para salvar aqueles que O crucificaram e perdoar-lhes: “Pai, perdoa-lhes, não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Na verdade o Senhor “não nos trata segundo os nossos pecados, nem nos castiga segundo as nossas culpas” (Sl 103,10).
Jesus desceu do monte onde rezou para fazer o “Discurso da Planície” (cf Lc 12,17-26). E, na segunda parte desse discurso, dirigido às multidões, um poema didático inspirado em textos sapienciais, Jesus aprofunda as consequências das bem-aventuranças. Ultrapassa a lei de Talião (vv 27-31); convida ao amor, tendo Deus por modelo (vv 33-36); e exorta a não julgar (vv 37-38). Neste contexto sobressaem as palavras de Jesus: “Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam… Ao que tomar o que é teu, não reclames”. Muitos tentam instrumentalizar esta mensagem a seu gosto. E só escaparemos desse perigo se reconhecermos que Jesus realizou as duas partes do Sermão da Planície: a parte profética (Lc 6,20-26), a das bem-aventuranças e das invetivas; e a parte “moral” (Lc 6,27s). Jesus proclama bem-aventurados os pobres, os famintos e sedentos, os que choram, e os odiados, caluniados e perseguidos – e fez-lhes o bem. Manda amar os inimigos, perdoar, dar e emprestar sem esperar nada como recompensa – e fê-lo (cf Lc 23,34, etc.). Em Jesus, o Verbo do Sermão da Planície fez-se carne, tornou-se história, é vida.
Jesus fez a Sua parte, faltando a nossa que estamos incumbidos de a fazer sabendo que podemos contar com a ajuda do mesmo Jesus e do Espírito Santo. A cruz revela que há conflito entre o reino e vontade de Deus e a realidade deste mundo. Enfim, Deus já realiza, da Sua parte, o desígnio, “porque é bom para com os ingratos e maus” (v 35) e “faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons” (Mt 5,45).
Falta a nossa parte que consiste na nossa resposta ao apelo do Sermão da Planície, que implica fazer agora o que Jesus fez, pois Ele mostra que a Sua proclamação “Bem-Aventurados vós que sois pobres, porque vosso é o Reino de Deus” não é mentira. Por isso, o futuro de Deus tornar-se-á realidade histórica para maus e ingratos, pobres e famintos do nosso tempo, apenas se nos tornarmos filhos do Altíssimo, “sendo misericordiosos como Ele é misericordioso“ (cf v 36).
Nesta segunda parte do “Discurso da Planície”, Jesus coloca o “amor” no centro de tudo aprofundando o sentido das bem-aventuranças relacionadas com a vida quotidiana. O mais importante passo é o amor aos inimigos (v 27). Para tanto, o Senhor tece uma série de exortações. E traça o perfil de vida de quem está disposto a escutar o Evangelho: amar os próprios inimigos, fazer o bem, não odiar, dizer bem; rezar por aqueles que nos maltratam; dar e emprestar a quem pede, sem espertar retribuição; não julgar (cf vv 27-30.37). A regra de ouro que resume o discurso é: “Como quereis que os outros vos façam, fazei vós também a eles” (v 31).
Finalmente, o amor leva a seguir as pegadas do Senhor, amando a todos. Ressoa aqui o preceito de Jesus em João 13,34: “Como eu vos amei, também vós deveis amar-vos uns aos outros”.
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A passagem da 1.ª carta aos Coríntios tomada para 2.ª leitura talvez nos faça perceber porque devemos amar a todos sem exceção, perdoando e não aferrolhando para nós. É a natureza e a graça que o impõem. O texto paulino trata a relação entre a presença atual e ativa do Espírito de Jesus ressuscitado na comunidade e em cada um dos seus membros, antecipando a futura ressurreição, e expondo a relação entre o primeiro e o segundo Adão, para evidenciar a ressurreição dos mortos.
Para fazer compreender como os mortos ressuscitam, o Apóstolo evidencia o confronto entre Adão, o primeiro homem, e Cristo, o último homem, argumentando a partir da interpretação rabínica que contrapõe o homem de Génesis 1,26-27 (feito à imagem e semelhança de Deus, ideal e imortal, participante da vida divina) ao de Génesis 2,7 (o homem plasmado com pó da terra, portanto, terreno e mortal). Paulo aplica esta confrontação ao que sucede na plenitude dos tempos, relevando a grandeza de Cristo: “o primeiro homem” é Adão, o terreno de Génesis 2,7, que, pelo sopro divino, se torna um “ser vivo”; e o “último Adão” é Cristo (cf vv 45.47), que Se torna, ao invés, “espírito que dá vida” (v. 45), espírito vivificante, e a Sua alma dá a vida sobrenatural que assegura, no fim do mundo, a ressurreição do corpo dos que creem. Para mostrar como os mortos ressuscitam, apresenta o confronto entre Adão, um ser vivo, e Cristo, um ser vivificante. O primeiro homem é o homem espiritual e celeste. Mas Paulo inverte a ordem: não é o espiritual que vem primeiro, mas o animal; e o espiritual vem depois. O primeiro é tirado da terra e é terreno, ao passo que o segundo vem do céu”. Atualmente, os homens reproduzem os traços de Adão de Gn 2, o Adão terrestre, mas são chamados a reproduzir no futuro os traços do segundo Adão, que é Jesus ressuscitado. Com efeito, Jesus é verdadeiro Deus e veio do Céu, tendo assumido, por obra e graça do Espírito Santo, a forma de verdadeiro homem a partir do seio de mulher. Foi esta a forma terrena que há de guindar-nos ao patamar da divindade, como foi determinado desde o início, que Deus encontrou para viver a nossa vida, habitar connosco e estar no meio de nós, mostrando-nos o Seu rosto misericordioso. Assim, o fenómeno espiritual não é sinal da irradiação duma espiritualidade inerente ao homem, mas da recriação do homem e de todas em Jesus ressuscitado, ou seja, com a ressurreição a Criação é renovada ou surge a nova Criação. a condescendência divina faz a nossa divinização. E quem está desfigurado em relação a essa rota não merece vingança ou ódio, mas compaixão, perdão e amor.
O Cristianismo não é, pois, mito ou fábula, mas história da salvação, que não alberga o dualismo que despreza o elemento material e carnal que há no homem, valorizando só o que há de espiritual, mas é a valorização do homem todo, chamado à ressurreição do corpo. A ressurreição é a nova criação, porque nos leva ao Espírito de Deus, a que pertence.
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No Evangelho, Jesus quer e exige o amor, sem limites para com os irmãos. Por isso, pede aos Seus discípulos que amem a todos, mesmo aos inimigos, que rezem e façam o bem desinteressadamente. Tudo deve ser feito sem esperar recompensa, para sermos autênticos filhos e filhas de Deus, o qual é bom para com todos sem fazer distinção entre quem merece e não merece (cf Lc 6,35b). A sabedoria hebraica afirma que “um só homem equivale à Criação inteira”, pelo que o amor por uma pessoa revela e significa o amor por cada homem, por cada mulher de e pela Criação inteira, realizando de facto o ideal do ser humano.
Só um coração novo, convertido, e uma mente iluminada pela oração, pelo Espírito e pela Palavra, podem viver um amor com a intensidade de Cristo, tornando-nos capazes de amar os nossos inimigos e de abençoar quem nos quer e faz mal.
Confortam-nos as muitas figuras de cristãos que viveram com fé profunda a caridade sem medida para com os inimigos: os mártires da primeira geração, os santos dos sucessivos séculos, como Francisco de Assis, Maximiliano Maria Kolbe, Teresa de Calcutá, e ainda irmãos de outras Igrejas, como Aleksander Men, sacerdote da Igreja Ortodoxa, assassinado há pouco tempo à machadada, de manhã, quando ia celebrar a Eucaristia, bem como a série de cristãos hoje perseguidos ou vilipendiados pelo desprezo escarninho ou encurralados no falso laicismo.
Contamos com o auxílio do Pai misericordioso para estarmos atentos à voz do Espírito e sabermos o qual a Sua vontade e o dinamismo do Reino. Estamos convictos de que, “tal como trouxemos em nós a imagem do homem terreno, traremos também em nós a imagem do homem celeste” (1Cor 15,49). Cristo é o novo Adão que redimiu a humanidade decaída e com a Sua morte nos tornou partícipes da Sua vida imortal. 
Temos, pois, de trilhar a rota do discipulado que implica amar gratuitamente a todos e a todos fazer o bem, sem esperar recompensas ou favores. Como no tempo de Jesus e das comunidades primitivas, pessoas maltratadas pela vida, empobrecidas pela sociedade necessitam de gestos concretos de compaixão e solidariedade. Há muito caminho não andado que é urgente desbravar e percorrer.
2019.02.23 – Louro de Carvalho

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