terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

A proteção de menores na Igreja não está no ano zero


Na iminência do encontro sobre “A proteção dos menores na Igreja”, com os Presidentes de todas as conferências episcopais (CEP) que se realizará, no Vaticano, de 21 a 24 de fevereiro, Fabio Colagrande fez para o Vatican News uma resenha do percurso feito até agora pelos Papas, pelo Vaticano e Igrejas locais na luta contra o abuso sexual de menores, cometidos por clérigos.
Contudo, não pode deixar de se vincar que o encontro agendado para este mês de fevereiro é o primeiro a envolver, a nível mundial, todos os presidentes das CEP e os responsáveis das ordens religiosas, para enfrentar o problema com um olhar do Evangelho – um encontro eclesial de pastores com caraterísticas ‘sinodais’ sem precedentes, que indica como a luta contra a chaga dos abusos perpetrados por membros do clero é prioritária para Francisco no atual contexto histórico. E alguns dos objetivos do evento são ouvir as vítimas, aumentar a consciência e o conhecimento, desenvolver novos nomes e procedimentos e partilhar boas práticas.
Não obstante, o encontro que se avizinha não constitui o primeiro passo da Santa Sé, nem das CEP neste rumo. É uma etapa histórica de um percurso que a Igreja católica tem em realização há mais de 30 anos, em países como Canadá, Estados Unidos, Irlanda e Austrália, e há dez anos, na Europa, e que prosseguirá após este evento.
Nos últimos 20 anos, os Papas dedicaram a este tema tão doloroso vários gestos, discursos e documentos. Às vezes, a publicação de normas e protocolos não produziu logo uma mudança de mentalidade, imprescindível para combater os abusos. Por isso, há 18 anos, vem-se procedendo, no Vaticano, à renovação e intensificação das normas canónicas atinentes à matéria. E, depois de muita tinta ter corrido, muitos casos de crimes e encobrimentos terem sido verificados, muita aplicação da justiça civil e eclesiástica (a nível discreto e mediático) nas vésperas do evento, desejado e convocado pelo Papa, não se pode falar de ano zero do compromisso da Igreja neste campo. Tem, ao invés de se reconhecer, que esta é uma etapa de um longo percurso.
A CEP do Canadá foi, em 1987, uma das primeiras a produzir orientações sobre a violência sexual de menores num contexto eclesiástico. E, em 1989, depois de a opinião pública ter sido reiteradamente abalada por notícias de violência sexual contra menores por parte de clérigos, a Igreja canadense criou uma Comissão que, em 1992, publicou o documento “Do sofrimento à esperança”, com cinquenta “recomendações” dirigidas aos católicos, bispos e responsáveis pela formação de sacerdotes.
A CEP dos Estados Unidos abordou, pela primeira vez, oficialmente, a violência sexual contra menores por parte de sacerdotes, na Assembleia de junho de 1992, estabelecendo “5 princípios a ter em conta e impondo a pronta remoção do “presumível culpado de suas tarefas ministeriais” e a referência a “um julgamento adequado e intervenção médica”, caso a acusação seja comprovada por provas suficientes. Apesar disso, a difusão do fenómeno nos anos subsequentes e a inadequação da sua gestão, apurada em investigação do Boston Globe, levou São João Paulo II a convocar os cardeais estadunidenses para Roma, em abril de 2002.
A Igreja na Irlanda, em 1994, instituiu o ‘Comité Consultivo dos Bispos Católicos da Irlanda sobre Abuso Sexual de Crianças por Padres e Religiosos’ (Irish Catholic Bishops’ Advisory Committee on Child Sexual Abuse by Priests and Religious) que publicou o primeiro Relatório Final em dezembro do ano seguinte. E a Igreja na Austrália aprovou, em dezembro de 1996, tornando-se operacional em março de 1997, o documento ‘Towards Healing’ (Para a cura), um dos primeiros protocolos no mundo sobre como tratar nas dioceses dos casos de pedofilia cometidos por membros do clero foi publicado.
Desde o início do século XXI, a Santa Sé, sobretudo por ação do Cardeal Ratzinger, mais tarde Papa Bento XVI, começou e levou a cabo uma profunda renovação das normas canónicas para intervir nos casos de abusos, atualizando competências, procedimentos e penalidades. Assim, logo em 2001, o Motu proprio ‘Sacramentorum sanctitatis tutela’, de João Paulo II,  insere o delito de abuso sexual de menores por parte de clérigo entre os “delicta graviora” (“delitos mais graves”), cujo tratamento é reservado à Congregação para a Doutrina da Fé (CDF).  
Em 2008, Bento XVI começou a encontrar-se regularmente com as vítimas de abuso nas suas viagens apostólicas aos EUA, Austrália, Grã-Bretanha, Malta e Alemanha – gesto replicado, depois, por Francisco com encontros privados recorrentes, na residência de Santa Marta e nalgumas das suas viagens apostólicas.
Em 2009, na Irlanda, após anos de trabalho de Comissões governamentais específicas, foram publicados os Relatórios Ryan, sobre abusos ocorridos no sistema escolar, e Murphy, sobre abusos de menores perpetrados há 30 anos por eclesiásticos da Arquidiocese de Dublin. E o eco suscitado pelos relatórios, que põem a nu as deficiências com que a Igreja lidou com os casos de abuso, levou Bento XVI a convocar os bispos irlandeses para Roma e, em março de 2010, a publicar a “Carta pastoral” dirigida aos católicos do país, em que pede medidas realmente evangélicas, justas e eficazes em resposta a essa traição da confiança, e a programar uma viagem apostólica ao país, de novembro 2010 a março de 2012.
Em 2010, Bento XVI fez com que a CDF publicasse as novas “Normas sobre delitos mais graves” que aceleram os procedimentos, criando o procedimento “por decreto extrajudicial”, dobrando o tempo de prescrição de 10 para 20 anos e inserindo o crime de “pornografia infantil”. E, no mesmo ano, na Alemanha, onde as primeiras “Diretrizes” sobre o tema tinham sido publicadas em 2002, a explosão do caso do Colégio Canísio dos Jesuítas de Berlim, levou a CEP a renová-las, aumentando a colaboração com as autoridades.
Outra etapa relevante deste já longo percurso foi a publicação, em maio de 2011, pela CDF, da Carta circular a solicitar a todas as CEP a elaboração de “Diretrizes” para o tratamento de casos de abuso e a assistência das vítimas e a fornecer indicações a esse respeito para harmonizar a ação das dioceses da respetiva região, elegendo o Bispo diocesano como primeiro responsável no tratamento dos crimes de abuso sexual de menores por parte dos clérigos. E, a fim de ajudar as CEP e as Congregações religiosas a prepararem adequadamente as “Diretrizes”, a Santa Sé encorajou a organização do Simpósio Internacional “Rumo à Cura e Renovação”, que decorreu na PUG (Pontifícia Universidade Gregoriana), em fevereiro de 2012. O encontro, que teve o mesmo objetivo mundial do que, desta vez, vai ser realizado, envolveu os representantes de 110 Conferências episcopais e os Superiores de 35 Institutos Religiosos. Durante o Simpósio, foi anunciado o nascimento, na Gregoriana, do Centro para a Proteção de Menores, dirigido pelo Padre Zollner para formar pessoas especializadas na prevenção de abusos.
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O primeiro passo importante na prevenção e luta contra os abusos sob o pontificado do Papa Francisco foi a criação, em dezembro de 2013, da nova Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores, sendo alguns dos seus intentos estabelecer um modelo para as “Diretrizes”, organizar cursos para bispos recém-nomeados e propor um Dia de Oração pelas Vítimas de Abuso.
Por outro lado, Francisco introduziu inovações canónicas, normativas e procedimentos relativos a abusos. Assim, em novembro de 2014, um “Rescrito” do Papa estabelece, dentro da CDF, um Colégio para o exame de apelos eclesiásticos para julgamentos em matéria de “crimes mais graves”, confiado ao Arcebispo Scicluna, com o objetivo de garantir um exame mais rápido dos casos de abuso de menores. Em junho de 2016, avançou com o Motu proprio “Como uma mãe amorosa”, sobre a questão da responsabilidade das autoridades eclesiásticas, que estabelece a remoção de bispos ‘negligentes’ quanto à gestão de abusos sexual de menores de acordo com os procedimentos canônicos previstos. Em outubro de 2017, para sublinhar como o compromisso da Igreja com a proteção de menores se move não só a nível interno, mas também em colaboração a toda a sociedade, sustentou e promoveu o Congresso internacional ‘Dignidade da Criança no Mundo Digital’, organizado na Gregoriana. E, na viagem apostólica ao Chile, em janeiro de 2018, enfrentou diretamente o escândalo das divisões criadas na Igreja local pelo caso do Padre Fernando Karadima, considerado culpado de abusos pela Santa Sé em 2011.
Depois duma investigação confiada, em fevereiro, a Dom Scicluna, o Papa escreveu aos bispos chilenos, em abril, reconhecendo os “erros graves de avaliação e perceção da situação por falta de informações verdadeiras”. Depois, em maio, convocou o episcopado chileno para um encontro, em Roma, que se concluiu com o pedido de demissão ao Papa por parte de todos os bispos. Porém, só alguns dos pedidos de resignação foram aceites.
Neste contexto, emergem os documentos pastorais mais recentes dedicados pelo Papa ao tema. Na “Carta ao povo de Deus em caminho no Chile”, de maio de 2018, Francisco agradece às vítimas de abuso pela coragem e pede o compromisso de todo o povo de Deus para combater o clericalismo na base dos abusos. Depois, surge a “Carta ao Povo de Deus”, de agosto de 2018, em que Francisco relaciona abuso sexual, de poder e de consciência e afirma que dizer não aos abusos é dizer não ao clericalismo. E, na sua viagem à Irlanda para o Encontro Mundial das Famílias, no mesmo mês, Francisco fala do “fracasso das autoridades eclesiásticas em enfrentar adequadamente esses crimes repugnantes” que “despertaram justamente a indignação e continuam a ser motivo de sofrimento e vergonha para a comunidade católica”.
Por fim, no mais recente documento pastoral sobre o tema, a “Carta aos Bispos estadunidenses” de janeiro de 2019, o Papa afirma que a ferida na credibilidade, causada pelos abusos, postula não só uma nova organização, mas também “a conversão de nossa mente”, do nosso modo “de rezar, de administrar o poder e o dinheiro, e de viver a autoridade”.
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Na conferência de imprensa, que decorreu no dia 18, na Sala de Imprensa da Santa Sé, para a apresentação do próximo Encontro sobre “A proteção dos menores na Igreja”, que terá lugar na Sala nova do Sínodo, intervieram o Cardeal Blase J. Cupich, Arcebispo de Chicago, Membro do Comité organizador; Monsenhor Charles J. Scicluna, Arcebispo de Malta, Secretário Adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé, membro do Comité Organizador; Padre Federico Lombardi, SJ, Presidente da Fundação do Vaticano, Joseph Ratzinger – Bento XVI , Moderador da Reunião; Padre Hans Zollner, SJ, Presidente do Centro para a Proteção de Menores da Pontifícia Universidade Gregoriana, Relator do Comité Organizador; e Irmã Bernadette Reis, FSP, Assistente do Diretor Interino da Sala de Imprensa da Santa Sé.
Respondendo às perguntas dos jornalistas, Scicluna, disse que o encontro parte dum caminho já iniciado há anos e quer criar as condições certas, para depois haver o concreto “follow-up”.
Os bispos retornarão às suas dioceses, cientes das suas responsabilidades, para continuar o trabalho, estabelecendo “procedimentos”. Quando se trata de “proteção da inocência”, insistiu, “não devemos desistir”: é preciso encontrar soluções cada vez mais adequadas para o problema, para que “a Igreja seja um lugar seguro para todos, especialmente para as crianças”. E falou de “expectativas” sobre o encontro, afirmando que se pode partir de “expectativas razoáveis”, pois,  em “três dias”, não poderão ser resolvidos todos os problemas, fundamental será depois a declinação nas realidades individuais das decisões tomadas.
Por sua vez, Cupich falou dum “novo amanhecer no que diz respeito à transparência” e disse que os bispos presentes, na sua maioria presidentes das CEP, devem entender claramente as suas responsabilidades na matéria e que um “programa de proteção” pontual poderá evitar que se repita o sucedido no passado. Frisou que muitos dos que participarão no Encontro tiveram encontros com as vítimas, como solicitado pelo Papa, e que cada um “traz no coração as feridas” daqueles de quem membros da Igreja abusaram. E referiu a homossexualidade como não “causa de abusos” e os métodos de “screening” (triagem) a pôr em ato para quem deseja entrar no seminário, de modo que seja impedida a entrada daqueles sobre quem impenda o risco de casos abuso de menores.
Quanto à publicação de dados e estatísticas sobre vítimas de abusos e o comportamento dos membros da Igreja para enfrentar o problema, Scicluna disse que provavelmente será feita, mas que não basta publicar os números, mas é necessário aprofundado estudo para dar o contexto. Sobre o procedimento de denúncia de abusos ou a conduta de “bispos negligentes”, recordou a o documento “Como uma mãe amorosa”, de Francisco, para enfatizar:
A negação é um mecanismo primitivo, mas devemos afastar-nos do código do silêncio, quebrar a cumplicidade, porque o silêncio não é aceitável”.
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Enquanto o Papa, no dia 17, após a recitação do Angelus, convidou a rezar por este evento que reputa como ato de forte responsabilidade pastoral face a um desafio premente do nosso tempo, 
Outras diligências avançavam, além das mencionadas.
Assim, o Padre Frederico Lombardi apresentou a dinâmica do Encontro, dizendo que os três dias de discussão serão dedicados cada um a um tema específico: a responsabilidade dos bispos; a “accountability” (isto é, a quem e como os bispos e superiores das ordens religiosas devem prestar contas); e a transparência. Os 190 presentes na Sala nova do Sínodo ouvirão três conferências por dia (feitas também por três mulheres), seguidas de perguntas e respostas e trabalhos em grupo. Depois, haverá testemunhos dos sobreviventes e momentos de oração, na abertura e no encerramento do dia. O Papa abrirá os trabalhos com uma intervenção introdutória e encerrá-los-á no dia 24 com um discurso após a missa. Na tarde do dia 23, haverá a liturgia penitencial. A celebração eucarística de domingo terá lugar na Sala Regia às 9,30 horas, com homilia pronunciada pelo Arcebispo Mark Coleridge, presidente da Conferência Episcopal da Austrália. E a Comissão organizadora reunir-se-á, em privado, com representantes das associações das vítimas.
Foi ativado o site do evento – pbc2019.org – será “instrumento para desenvolver as iniciativas futuras”. O Padre Hans Zollner ilustrou o portal, que será atualizado regularmente, e o questionário proposto aos participantes. E a Irmã Bernadette Reis, anunciou que será distribuído um kit à imprensa para ajudar o trabalho dos órgãos de comunicação social.
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Prosit em nome do bem de todos!
2019.02.18 – Louro de Carvalho

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