sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Lembrai-vos do vosso servo José Cardoso, sacerdote…


Foi há 35 anos. Porque, no dia 30 de janeiro, de 1984, última segunda-feira do mês, falecera em Lamego o Cónego José Cardoso de Almeida, ressoou na Sé Catedral, a meio da tarde do dia 1 de fevereiro, integrada na Liturgia Eucarística das exéquias solenes, a prece: “Lembrai-vos do vosso servo José Cardoso, sacerdote a quem hoje chamastes para vós; configurado com Cristo na morte, com Cristo tome parte na ressurreição”.
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A evocação das exéquias
Naquela tarde, a Catedral e imediações eram um lindo mosaico de fé celebrativa: multidão enorme de gente provinda de todas as partes da diocese rezava, cantava, em sintonia com o presbitério ali conciliado e acolheu uma empolgante homilia do bispo diocesano – um ato de culto marcado pela unção religiosa, pela perfeição técnica e pelo ambiente contagiante.
Seguiu-se o cortejo para Vila da Ponte, no concelho de Sernancelhe, donde era natural o sacerdote. Mais do que o esperado préstito fúnebre, era uma verdadeira jornada triunfal a desembocar na bonita, mas pequena, igreja paroquial – com a envolvente repleta de gente e de automóveis. Dom António Xavier Monteiro presidiu novamente à celebração eucarística com o canto de Vésperas e proferiu uma espontânea e entusiasmante homilia. Foi, pela simplicidade e espontaneidade, compartilhada entre o hierarca e seu povo, uma autêntica apoteose, de tal modo que, enquanto as pessoas desfilavam perante o féretro, cujo sepultamento se adiara para a manhã do dia seguinte, dadas as condições coevas do cemitério e do tempo atmosférico, o Arcebispo referia que, “em Lamego, foi tudo muito bem, mas aqui foi muito mais bonito!”.
De facto, aquela romagem de saudade transmutou-se numa consagração pública, indelével da memória de quem nela participou, ao Homem de Fé, ao Líder de uma linha pedagógica benéfica, ao Catequista dos Catequistas, como era conhecido na urbe lamecense.
No rescaldo dos acontecimentos, o semanário diocesano “Voz de Lamego” trazia vários testemunhos de colegas e admiradores, nomeadamente do professor Duarte, que, lembrando que o sacerdote tinha em mente a iniciativa de promover a construção do monumento ao catequista, apontava agora que o monumento ao catequista é o túmulo do Cónego José Cardoso de Almeida no cemitério da Vila da Ponte.   
Reconheço a limitação, mas, ao tempo não tive capacidade para escrever nada, apesar da indicação que pessoas amigas me diziam ser minha obrigação – facto de que penso ter-me redimido mais tarde em comentário ao seu último livro em cuja edição póstuma “codiligenciei”.
Em 25 de Outubro de 1992, o Município de Sernancelhe, o Seminário de Lamego, as paróquias de Vila da Ponte, donde era natural, e de Sernancelhe, em cuja igreja matriz fora batizado, e a família, na passagem do 50.º aniversário da sua ordenação sacerdotal, prestaram-lhe sentida homenagem, com números programáticos na Vila da Ponte e em Sernancelhe. E, sobretudo as celebrações em Vila da Ponte ainda galvanizaram a diocese.
No Blogue “Asas da Montanha”, o Padre Manuel Carlos Pereira Lopes, abade de Tarouca, fez-lhe uma eloquente referência no 25.º aniversário de sua morte, de que respiguei o seguinte:
Nunca vi ninguém com tanto, tanto jeito para falar a crianças como o Cónego Zé. Ele era um motivador, um impulsionador, uma pessoa convicta e agregadora. Tal como as crianças, os catequistas tinham-no em enorme consideração. E como ele sabia cativá-los para a bela tarefa da catequese! (…) Era um apóstolo da família. O que ele fez pela família na diocese! Cursos, livros, contactos pessoais, slogans gravados que ainda hoje perduram. ‘Nada contra a família, tudo pela família’, lê-se ainda hoje num calhau em Santa Helena.”.
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Dados biográficos e ação pastoral
Nasceu na Vila da Ponte a 8 de agosto de 1914. Recebeu o Batismo na igreja matriz de Sernancelhe, pelos vistos, mercê de desentendimento entre o abade de Vila da Ponte e um dos progenitores – que levou ao protelamento do Batismo do recém-nascido para outubro e para outra paróquia. Foi ordenado a 26 de Julho de 1942, na Igreja Paroquial de Vila da Ponte, por Dom Agostinho de Jesus e Sousa. Mais tarde, foi nomeado cónego honorário da Sé Catedral de Lamego, passando, anos depois, a integrar o cabido da mesma catedral.
Sacerdote zeloso, de grande prestígio na diocese de Lamego e no país, desenvolveu notável ação nos campos da pregação e na pedagogia catequística, norteado pelos critérios da humildade colaborante em todos os setores da atividade pastoral e da crítica atempada, clara e vigorosa.
Cedo se começou a olhar para ele como o amigo das crianças, o padre que “ensinava a ensinar” e que “ensinava a aprender”, consoante o auditório que tinha à sua frente. Aparecia nas catequeses, como visitador e animador; encabeçava a orientação de cursos ou ajudava a constituir equipa formadora; organizou, a nível concelhio e diocesano, concentrações, certames catequísticos e congressos eucarísticos, planos e jornadas de pastoral familiar. Criava empatia e inspirava boa disposição. Decoravam-se inteiras expressões suas, que revelavam saber e bonomia, ciência e simpatia, mesmo uma ou outra que aparentemente fazia pouco sentido.
Entre estas, recordo a seguinte, sobre a qual tive ocasião de produzir um comentário mais aprofundado com base na saudação angélica a Maria: “O ‘Dominus vobiscum’. Que palavra tão linda e tão doce! Levai-a para vossa casa.”.
Devo recordar para corroborar a profundidade real desta recomendação e de outras como esta, que Monsenhor Cândido António de Azevedo, a 13 de novembro de 1988, no encerramento do Congresso dos Leigos e do Congresso Eucarístico, de nível concelhio – após a leitura solene das conclusões, missa solene em frente aos Paços do Concelho, procissão eucarística para a praça da Igreja matriz e ato de adoração frente à igreja – voltou-se para os congressistas e interpelou-os: “Que estais aqui a fazer? Levai os congressos para vossa casa. Fazei-os frutificar!”.
O pároco de Vila da Rua – qualidade em que iniciou as suas funções pastorais – pelo seu labor catequístico de inovação, foi chamado a dirigir o Secretariado Diocesano da Catequese e a visitar as catequeses paroquiais. O homem prático, graças à intuição, ao estudo e ao contacto com outras realidades, transformou-se no teórico. No entanto, não olvidou o tempo de pároco e recusou quaisquer utopias ou teorias que não pudesse demonstrar e não tentasse levar à prática.
À volta da catequese, nos seus diversos níveis, arregimentou uma plêiade de agentes a quem incutiu fulgor e gana evangélico-apostólicos, criando esquemas, estabelecendo mecanismos e construindo meios de sensibilização e formação. E, certo de que se multiplicavam os agentes minadores da família, propôs a criação do Secretariado Diocesano da Pastoral Familiar, de que foi o primeiro diretor. Mobilizou agentes, suscitou contributos, provocou formação. Colocou ao serviço da pastoral familiar a Revista Catequística, que dirigiu durante anos sem conta.
Não se entregando exclusivamente a iniciativas ou a obras de que fosse o iniciador, servia. E era a ideia importante. Sendo assim, foi também secretário da Obra das Vocações e Seminários e assumiu interinamente a direção do Secretariado Diocesano da Educação Cristã da Juventude.
Cedo se convenceu de que a formação de crianças, adolescentes e jovens não resulta sem a atenção necessária e adequada à formação dos pais. Foi assim que as palestras aos pais e as publicações que implicavam esta componente da sensibilização e da formação se tornaram cada vez mais frequentes. Foi ainda, durante muitos anos, professor de Pedagogia Catequística no Seminário Maior de Lamego e de Moral na Escola do Magistério Primário da mesma cidade, desde o momento da criação da escola.
Finou-se sem que se contasse, em Lamego, no dia 30 de Janeiro de 1984. As exéquias fúnebres na Catedral de Lamego e na Igreja Paroquial de Vila da Ponte, para lá da saudade, constituíram uma sentida manifestação de homenagem e apoteose ao homem, ao sacerdote e ao pedagogo.
As suas publicações e palestras refletiam o seu caráter intelectualmente metódico, a exposição fácil e simpática de conteúdos, a afirmação convicta das ideias, o jeito de provocar a resposta e o diálogo. Se hoje a estruturação das catequeses ou a tomada de atitudes pedagógicas já estão distantes da doutrina e a pedagogia praticadas pelo cónego José Cardoso de Almeida, contudo, não seriam o que são efetivamente se não fosse a escola feita por José Cardoso e seus colegas à época, que se impuseram como exemplos de labuta apostólica na atenção à realidade que urge reformar numa perspectiva de optimismo, mas na rendibilização de todos os talentos.
Postumamente, a família decidiu editar o último livro que saiu da pena do cónego José Cardoso, aquele em que ele pôs mais empenho. Prestou assim bom serviço à diocese e às grandes causas.
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A homenagem de 25 de outubro de 1992
Como se disse, no dia 25 de outubro de 1992, um domingo, véspera do dia 26, dia do seu Batismo, a diocese de Lamego esteve presente em celebração de homenagem e sufrágio por aquele sacerdote, falecido a 30 de janeiro de 1984 e que teria feito, a 26 de julho daquele ano, os 50 anos (bodas de ouro) da ordenação sacerdotal celebrada na igreja paroquial de Vila da Ponte sob a presidência do Bispo Dom Agostinho de Jesus e Sousa. Em 2017, teria feito o 75.º aniversário de sacerdócio.
Foram ordenados de presbíteros ali no dia 26 de julho de 1942, além do Padre José Cardoso de Almeida, os Padres Armando Rodrigues Silveira, Anselmo Fernandes de Freitas e Lucas Ribeiro Pedrinho. Também Joaquim Mendes de Castro ali recebeu a Ordem de Diácono e António Ribeiro a de Subdiácono (hoje abolida).
Naquele dia de outubro de 1992, estavam ali – com o Bispo da diocese, o Arcebispo-Bispo Dom António de Castro Xavier Monteiro, inúmeros sacerdotes, os alunos do Seminário de Lamego e muitos fiéis – os Padres Anselmo e Lucas e o Cónego Mendes de Castro, ainda vivos ao tempo e agora falecidos.
A celebração fora aprazada para este dia pelo facto de no mês de julho muitos estarem de férias e outubro ser o mês das Missões, sendo que o Seminário de Lamego no domingo anterior estava ocupado com as atividades inerentes ao Dia Mundial das Missões. Foi antecedida de tríduo de pregação a cargo do então Padre Cândido de Azevedo, pároco de Sernancelhe e arcipreste, em que as pessoas tiveram oportunidade de se aproximar do Sacramento da Reconciliação. A Celebração principal foi a concelebração da Eucaristia sob a presidência do prelado diocesano. Integrou o canto litúrgico de Vésperas e sermão proferido pelo então reitor do Seminário, Padre João Augusto André Ribeiro, a pedido do Arcebispo. O Seminário animou a liturgia ao nível do canto (sob a direção do Padre Rui Botelho) e da condução das cerimónias pelo Cónego Germano José Lopes, que tinha sido pároco de Sernancelhe. Após a missa, rumou-se ao cemitério em romagem processional e orante ao túmulo do Cónego José Cardoso.
Depois das cerimónias religiosas, a maior parte dos participantes subiu a Sernancelhe onde decorreu a sessão solene evocativa da memória do homenageado em termos do seu perfil e ação, nas instalações da antiga Escola EB 2/3, a partir do ano seguinte Escola Profissional de Sernancelhe. As diversas intervenções oratórias foram entrecortadas por números musicais a cargo do orfeão do Seminário. O orador convidado foi o Dr. Germano Duarte Cabral, professor da Escola Secundária Latino Coelho, de Lamego, que bem conhecia a personalidade e obra de José Cardoso de Almeida. Seguiu-se um briefing na Igreja Matriz de Sernancelhe junto da Pia Batismal a cargo do Padre Cândido de Azevedo (ainda não tinha sido feito Monsenhor), que leu o assento do Batismo de José Cardoso e comentou que, a exemplo de São Luís IX, rei de França, que dizia chamar-se Luis de Poissy por ali ter sido batizado, também o homenageado deveria ter sido chamado José de Sernancelhe por ter sido batizado na igreja daquela vila – isto para lá da substanciosa lição de história de arte sacra com base nos motivos artísticos daquele imóvel (arquitetura, cachorrada, pintura a fresco e outras, esculturas, talha dourada, paramentaria e trabalho em ourivesaria, prataria e outros metais, bem como desenhos de arte pararupestre). E a jornada terminou com um jantar volante na Vila da Ponte com as pessoas de fora que permaneceram até ao fim.    
São dignos de menção os factos de a Câmara Municipal ter assumido o encargo com a parte mais complexa da logística, de os dois irmãos então sobrevivos (Maria Augusta e Fernando) terem assumido as despesas da refeição, sendo destinadas as sobras em dinheiro à Biblioteca do Seminário de Lamego, e de muita, muita gente da diocese ter respondido com a sua presença, sobretudo na missa, à notícia-pregão veiculada dias antes pelo semanário diocesano Voz de Lamego, dirigida pelo então Padre Armando dos Santos Ribeiro (hoje Monsenhor), sinal de que a memória do Cónego José dos Rapazes (como alguns o apelidavam e ele assentia) ainda mexia com as pessoas.
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Génese e desenvolvimento da obra catequética
Do muito que se podia dizer de José Cardoso de Almeida, digo pouco, mas em torno dum facto parecido com o que tornou notório Santo Evaristo (cuja memória litúrgica se celebra a 26 de outubro), a fama da entrega às causas. Exercia o Padre José Cardoso de Almeida funções paroquiais em Vila da Rua. Tornam-se conhecidas as suas lições de catequese com as crianças, com linguagem adaptada a cada idade, bem como materiais que possibilitassem alguma atividade e ilustrassem as verdades doutrinais com exemplos, esquemas e desenhos. Além disso, as suas palestras doutrinais aos adultos em linguagem simples e, muitas vezes, a partir do que se via nas igrejas e capelas tornaram-se notáveis (o pré-audiovisual ou a velha Biblia Pauperum). O Bispo diocesano em passagem-surpresa pela igreja daquela paróquia pôde verificar tudo isto. Em breve, o prelado o convidou para organizar a catequese na diocese e o Padre José Cardoso foi o primeiro Secretário Diocesano da Catequese, funções que manteve até ao fim dos seus dias (até aos 69 anos).
Sem abandonar o catecismo formulário segundo as indicações de São Pio X, que atualizava a doutrina da cartilha – conjunto de perguntas/respostas uniforme para todos – crianças, adolescentes, jovens e adultos – o Padre José Cardoso britou o monolitismo e a uniformidade da cartilha. Como? Fazendo o esforço de explicação de tudo o que se ensinava em linguagens adaptadas às idades, multiplicando materiais – livros, cadernos, esquemas, objetos, desenhos, estampas, fotos e, mais tarde outros meios. Editou livros e mais livros adequados aos diversos grupos etários, como se pode ver pela lista não exaustiva constante em baixo.
Depois, associou a si e associou-se com outros de outras dioceses e foram editados catecismos para cada um dos 4 anos da catequese e da escola primária (uns livros para a catequese e outros para a escola primária) segundo o sistema: um pequeno catecismo por ano de catequese ou de escolaridade, com lições de duas páginas para cada lição com texto e gravuras em torno de um tema e com um pergunta e resposta de síntese, para uso do/a aluno/a; e um guia com explicação detalhada de cada lição, para estudo do/a catequista, e com sugestão de atividades e guião da aula, devendo o/a catequista durante a lição usar o catecismo igual ao do/a aluno/a. Obviamente que se começou pelos 4 anos de catequese / escola. Em cada diocese organizaram-se grupos mistos de padres, freiras e leigos (sobretudo padres a princípio) que chamavam à cidade ou à vila ou se multiplicavam pelas freguesias para ministrar cursos de catequistas, organizavam-se certames com prémios para quem respondesse mais e melhor a perguntas de doutrina, congressos catequísticos ou congressos eucarísticos com incidência catequística e publicaram-se revistas de catequese. E José Cardoso começou a preparar livros para grupos de adolescentes e grupos juvenis, bem como livros para formação de catequistas. E descobriu o óbvio hoje: sem formação dos pais, a catequese infantil pouco adianta. Por isso, incrementou a catequese de adultos e editou livros para os pais e aplicou-se à Pastoral Familiar.
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Enfim, as suas obras principais são: A Liturgia Explicada às Crianças, ed. autor, 1949; A Moral nas Escolas com gráficos e exemplos, ed. Simões Lopes, Porto, 1955; A História do Domingo, 1957; Vive o Teu Baptismo, 1958; Jesus Perdoou Pecados, 1958; Catequista Missão Sublime (1.ª ed. 1959, 2.ª ed. 1968); Caminhar para Cristo (1.ª ed. 1962, 2.ª ed. 1968); Na Escola de Cristo, 1964; Notas de Pastoral Catequética, 1966; Teatro Catequístico (com outros), 1966; De Mãos Dadas com Cristo, 1967; Catecismo Formulário, 1967; Curso para os Pais – Catequese Familiar, 1970; Vida de Santa Eufémia, 1970; As Grandes Linhas do Diretório Catequístico,1972; Profissão de Fé e seus Caminhos, 1972; História de Lamego Contada às Crianças, 1974; Um Método para os Pais (com Bento da Guia), 1975; A Família Reza, 1977; Pequeno Manual de Catequese Familiar, 1979; Via-sacra com a Virgem Maria, 1979; Alerta!... pela Família, 1980; Paulo VI ante a Regulação dos Nascimentos (com outros), s/d; C. P. B. – Curso de Preparação para o Baptismo  (com Bouça Pires), s/d; Novena da Senhora da Paz, s/d; Novena de Santa Helena, s/d. Todas as publicações sem outra indicação são edição do Secretariado Diocesano da Catequese de Lamego.
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E, por fim, continuará a prece: “Lembrai-vos, Senhor, do vosso servo José Cardoso, sacerdote…”.  
2019.02.01 – Louro de Carvalho

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