Obviamente
que gostei de saber que a Jornada Mundial da Juventude de 2022 se realizará em
Lisboa. Trata-se da capital do país e cabeça duma diocese com história, labor
apostólico e enormes periferias existenciais, muito embora outras também tenham
essas caraterísticas. Mas Lisboa é uma das arquidioceses (e
é um patriarcado) metropolita
com mais dioceses sufragâneas (Angra, Funchal, Guarda,
Leiria-Fátima, Portalegre-Castelo Branco, Santarém, Setúbal).
Por
outro lado, a Igreja em Portugal tem motivos para estar mais do que satisfeita
pela escolha papal, mas deve aproveitar o ensejo para, na sua renovação, que
urge, construir um cristianismo mais “cafeinado” pela força do Alto, mais
abrangente em termos intergeracionais e mais comprometido social e
politicamente, definindo-se, sem se autorreferenciar, em dois polos
aparentemente distintos, mas coincidentes: Jesus Cristo e os deserdados da
sorte.
Também
me parece de acomodatícia legitimidade o argumento da proximidade histórica com
a África lusófona, sem esquecer a comunidade de Macau, o povo de Timor-Leste e
a comunidade indiana em que há resquício da presença portuguesa. Evidentemente
que, se nos orgulhamos das relações históricas havidas com esses territórios –
com notáveis sucessos e graves erros –, é mister que também hoje lhes saibamos
dar as mãos despojadas de qualquer laivo de colonialismo, mas abertas à solidariedade
e à cooperação humana e cristã.
***
Reparei
que da comitiva portuguesa, em que praticamente ficou eclipsado o grupo de
cerca de 300 jovens, ressaltou a presença de seis Bispos, à cabeça dos quais se
encontrava o Cardeal Patriarca de Lisboa e Presidente da Conferência Episcopal,
o Presidente da República, o Presidente da Câmara de Lisboa, o Pároco do Parque
das Nações e a discreta figura dum Secretário de Estado a representar o
Governo português. Confesso que, à exceção do pouco relevo dado aos jovens
portugueses, que somente foram mencionados pelo responsável do departamento
eclesial respetivo ou quando gritaram “Portugal!
Portugal!”, me pareceram bem tais presenças. Foi o Governo dum Estado
aconfessional, mas interessado na cooperação, o autarca de Lisboa e presidente
da respetiva área metropolitana, que abrange o território que acolherá o
evento, o pároco duma circunscrição territorial e eclesial do acolhimento e o
Bispo da diocese. E não me parecia desajustada a presença do Presidente da
República, desde que um pouco mais contida, embora sabendo que a contenção não
é o seu forte, mas reconhecendo-lhe o direito de estar e até o dever, se a sua
consciência política e cristã lho determina.
Porém,
souberam-me a desajustados, excessivos e oportunistas dois aspetos: a euforia
da vitória; e a hipotética, mas explícita, pré-declaração de recandidatura
presidencial.
Num caso
destes, não se pode avocar uma vitória de ninguém, muito menos do país qua tali. Não se trata duma vitória
bélica, económica, futebolística. Não é um certame. E o Presidente não devia
entrar nessas euforias de fã desportivo. Nem é uma vitória da Igreja em
Portugal, embora se conheçam tanto as dores de Dom Manuel Clemente como a sua
capacidade negocial. Sobre as primeiras, sabe-se como foi criticado por uma
frase extraída do seu contexto; e sobre a segunda, é de recordar como conseguiu
puxar, em 2010, a visita de Bento XVI para a cidade portucalense quando era o
Bispo diocesano do Porto. Mas, além do proveito eclesial que a JMJ acarretará
para a Igreja em Portugal, o acolhimento da JMJ tem de ser encarado como serviço
desta Igreja particular à Igreja Universal. Em termos da correção e do espírito
evangélico, não é um triunfo, uma vanglória. Encha o coração, sim, mas não
encha a boca!
Quanto à
predita declaração de recandidatura presidencial, o aconfessionalismo do Estado
fica mal servido por esta postura presidencial. Um ato político não se pratica
a partir dum evento religioso; e os portugueses não têm que levar com os
estados de alma do Chefe de Estado, que o é em Portugal e no estrangeiro.
Todavia,
isto não é novo. Já em 1982, Francisco Balsemão, quando os jornalistas o
questionaram sobre a visita de São João Paulo II, respondeu que estava
satisfeito e que valia a pena ser Primeiro-Ministro ainda que só apenas para
receber o Papa.
Agora,
Marcelo disse que saía do Panamá com mais vontade de pensar na recandidatura (uma epifania), quanto ainda recentemente dissera
que tomaria posição só em 2021. E, questionado se era ponto assente, disse uma
coisa plausível, ter que pensar na saúde, e outra mais poderosa, verificar se
haveria alguém mais capaz do que ele para assumir o cargo. É de mestre, pois
subjetivamente nunca há ninguém mais capaz do que o próprio. Nos últimos temos,
apenas Bento XVI se sentiu incapaz do exercício eficaz do cargo que
desempenhava.
Apraz-me,
a este propósito, concordar com Joaquim A. Moura, que escreve no “espaço do
leitor” do JN de hoje sob o título “Vamos ter uma eleição abençoada”:
“Movido pelo anúncio papal (…), Marcelo Rebelo de Sousa (…) resolveu
virar o dito e transmitir ao povo lusitano que se recandidataria a novo mandato
presidencial. E até dá por adquirida a vitória, tal a sua fé. Ao que parece
também, tal decisão fica a dever-se ao desejo e oportunidade de se sentar junto
ao Papa, seja o atual ou o próximo, e não pela vontade de continuar a servir o
povo de Deus necessitado.”.
Pode não
ser bem assim, mas a crítica é merecida e oportuna.
***
Também
no mesmo número do JN, na “praça da
liberdade”, Cristina Azevedo escreveu um artigo de opinião em torno do título “Vendilhões do templo”.
Escusava
de se penitenciar por alegadamente ser uma expressão forte a que serve de
título. Ela não serve apenas de tradução a uma “reação pessoal” de “católica,
apostólica, romana, à forma como as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) têm sido tratadas desde que Portugal foi indicado como o seu próximo
anfitrião”; a expressão configura a crítica e a postura de Jesus no episódio
que vem relatado perto do final dos evangelhos sinóticos (Mc 11,15-19; Mt
21,12-17; e Lc 19,45-48) e perto do início do Evangelho de João (Jo 2,13-22), que censura o
desvirtuamento do Templo como Casa de Oração. Ora aqui está em causa o
desvirtuamento político, económico e cultural dum evento que se pressupõe e se
crê marcado pela fé.
Neste sentido, a colunista tem razão total
em escalpelizar a JMJ como “um encontro do programa Erasmus” para “pôr em contacto diferentes
culturas”; como “uma
Expo 2022” (ou “uma fase
dois da Expo 98”), vindo
a “requalificar, remodelar, modernizar, o que quer que seja”; como “uma Web Summit
a captar jovens talentosos dos quatro cantos do Mundo”; como algo parecido com
“o Mundial de Futebol”; e como um evento importante por atrair “a Portugal mais de um
milhão de jovens”. Mas já se fazem cálculos a números que insinuam que a JMJ
será um evento que ultrapassará o melhor tempo de turismo alguma vez ocorrido
em Portugal e fazem-se contas aos milhões a arrecadar, tendo em conta o que se
passou em Madrid com JMJ de 2011.
A este respeito, Cristina Azevedo diz – e bem – que
“sobrepor” ao desafio espiritual, pastoral, de fé e de celebração das jornadas
“a linguagem tecnocrata e fria das receitas, das dormidas, das obras e dos
projetos é sinal da pobreza e do endurecimento do nosso coração”. E,
suspeitando de que “ainda ninguém percebeu nada”, questiona desde quando uma iniciativa
católica “é apresentada, gabada e celebrada por um Estado” dito “republicano e
laico”.
Só talvez não me pareça oportuna a crítica ao facto de a
escolha do local para a JMJ ter recaído sobe Lisboa e arredores. Digo-o pela
razões acima apontadas, embora não apodíticas. Porém, concordo com a crítica
política à contradição dos governantes em falarem da descentralização, mas continuarem
a engrossar a hegemonia lisboeta, ou com a crítica aos “que mandam e não resistem
ao anúncio mediático do ‘evento’, da ‘oportunidade, do ‘Portugal na moda’, do
‘conseguimos’ no mesmo tom em que se celebrou o Euro 2004, a Web Summit ou o
Festival da Canção”. E também entendo que, sendo necessário preparar o terreno,
dotar o país de estruturas de acolhimento e convívio dos jovens, seu
alojamento, alimentação e aspetos culturais – dados logísticos e instrumentais,
que envolvem despesas e receitas –, “talvez a hierarquia católica portuguesa se
devesse ter explicado melhor durante todo o processo e talvez seja altura de
tentar repor a centralidade deste encontro com Jesus Cristo com uma comunicação
firme, clara, corajosa e motivadora”.
Na verdade, Cristina Azevedo põe as coisas no seu devido
sítio quando escreve:
“As Jornadas Mundiais da Juventude existem
para falar de Jesus Cristo aos e com os jovens; existem, para os convidar a
sentir com a Igreja, fortalecendo os vínculos entre si e com o seu pastor, como
não se cansou de repetir Francisco no Panamá. Existem para lhes falar ‘do
mistério da encarnação, do abaixamento, da descida de Deus que se faz pequeno,
humilde, que se torna homem e vive a condição humana até ao fundo’. A eles,
especialmente aos jovens porque, como citou Francisco de um filósofo grego ‘Os jovens são como um moscardo no dorso de
um nobre cavalo, para que não se adormente’.”.
Adicionalmente,
só devo dizer que o Presidente da Câmara de Lisboa, falando do evento e referindo-se
aos aspetos logísticos, esteve bem, com exceção da previsão de que as JMJ iriam
ser as melhores JMJ de sempre. Será presunção demasiada, não?! Mas é um
presidente de autarquia e não um “eclesiarca”.
Já
no passado dia 28, Inês Cardoso, subdiretora do JN, referia que um evento com esta dimensão “justifica o empenho dos diversos responsáveis
políticos que se deslocaram ao Panamá”, compreendendo-se o entusiasmo. Porém,
não aceita a tentação
para lhe associar “leituras políticas”, dizendo que, apesar do “contexto” e do “calor
do momento”, o Presidente “deveria ter evitado considerações sobre a
recandidatura em solo panamiano”. Por outro lado, apontando as “frequentes
intromissões” da Igreja “em seara alheia” ou as “tentativas de influenciar a
opinião dos crentes a partir do altar” diz que, “em ano de eleições, vale a
pena refletir sobre as fronteiras entre religião e política”.
Nesse sentido,
pensa que as duas realidades se tocam, “porque a ação da Igreja tem uma
dimensão social” e porque o cidadão é influenciado pelos seus princípios
éticos, religiosos e culturais”. Não obstante, chama a atenção para a índole
laica do Estado e para a legitimidade e necessidade do pluralismo dos católicos
no âmbito social e político”. Sustentando que o envolvimento político é “obrigação
de qualquer cristão, que, enquanto cidadão deve ser comprometido com o mundo
que o rodeia”, adverte que o altar age numa esfera “bem diversa da política”. Por
isso, é errado usar um para tentar interferir na outra e vice-versa. E cita a
frase evangélica “Dai, pois, a César o
que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt, 22,21; Mc 12,17; e Lc 20,25), como critério
a reter para as próximas campanhas eleitorais.
Totalmente
de acordo!
2019.01.31 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário