sábado, 12 de janeiro de 2019

ONU tem no seu ADN a multilateralidade e conta com o Papa Francisco


Pode muito bem ser a síntese do comentário que Dom Bernadito Cleopas Auza, Observador Permanente da Santa Sé na ONU, fez em relação ao discurso do Papa Francisco no passado dia 7 de janeiro aos membros do corpo diplomático junto à Santa Sé sobre o combate aos nacionalismos e a busca de soluções comuns entre as nações.
O diplomata eclesiástico sustenta que o Sumo Pontífice “pode influenciar países que têm postura dura em relação a quem deveria ser ajudado e não rejeitado”.
Na verdade, como referem, segundo o Vatican News, Federico Piana e Andressa Collet, na Cidade do Vaticano, Dom Bernadito Auza, no seu comentário, teceu considerações sobre vários temas, desde o estado de saúde do multilateralismo até à emergência de tendências nacionalistas e populistas, passando pela guerra na Síria, os pactos globais sobre refugiados e migrantes, assim como a reforma da ONU (Organização das Nações Unidas).
Considera que os nacionalismos exacerbados são verdadeiros inimigos das Nações Unidas. Com efeito, os nacionalismos emergentes e cada vez mais em crescendo, bem como a busca ansiosa por soluções unilaterais que geram opressão do mais fraco pelo mais forte não podem deixar a ONU indiferente, como recordou o Pontífice. Na verdade, sem o multilateralismo, a ONU não teria razão para existir, pois está no seu ADN, como o evidenciam o Tribunal Internacional de Justiça, o Conselho Económico Social, o Conselho dos Direitos Humanos e as diversas agências especializadas que instituiu. Além disso, como frisou Dom Auza, a maioria dos membros das Nações Unidas revê-se nas problemáticas enunciadas pelo Papa, já que os seus membros estão claramente “conscientes destas problemáticas” e sentem-nas “na própria pele”.
No ano passado, a presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, María Fernanda Espinosa, realizou uma consulta com os chefes das missões para verificar as condições de saúde do multilateralismo. E dessa consulta resultou a conclusão de que, “mesmo com dificuldades, a ONU promove a política plurilateral e a fará sempre com mais vigor no futuro”, assegura o Observador Permanente da Santa Sé na ONU.
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De facto, o Santo Padre fez, perante os diplomatas, o voto por que os nacionalismos não prevaleçam sobre a justiça e o direito. E Dom Auza entende como “desafios integrais às estruturas da ONU” as reflexões profundas sobre os mecanismos que, na prática, podem dificultar a busca de soluções compartilhadas entre os Estados-membros.
Ao mencionar, tratando-se da paz e da segurança internacional, “o veto dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança”, aponta um problema/desafio:
É aqui que emergem os interesses nacionais e regionais, as rivalidades. Quanto mais sério e amplo é um conflito, mais prováveis são os vetos cruzados. Esse é um dos grandes desafios das Nações Unidas.”.
Por outro lado, urge repensar as políticas de ajuda internacional. Com efeito, o Papa Francisco, no seu discurso aos embaixadores, denunciou a pressão de grupos de interesse e de poder que, em função dos próprios desígnios e interesses, impõem as próprias ideias e visões do mundo, gerando “novas formas de colonização ideológica”, sendo que o subdesenvolvimento e a ajuda internacional são terrenos férteis para tal iníquo condicionamento.
O diplomata eclesiástico, em linha com a análise do Pontífice, acrescenta:
Há uma imposição da vontade e dos projetos dos países doadores, em vez de considerarem as verdadeiras necessidades das nações que deveriam ser beneficiadas com os recursos. Os ricos doadores, normalmente europeus e da América do Norte, dão dinheiro para determinados programas que querem realizar naqueles países.”.
Pensando na saúde reprodutiva e sexual e nos ‘objetivos para o desenvolvimento 2030’, vinca:
É imposição ideológica. O Papa tem razão. É preciso repensar a política internacional de ajuda ao desenvolvimento.”.
Outro ponto que Dom Auza equaciona é a reforma da ONU. O diplomata da Santa Sé acredita que a ONU será uma caixa de ressonância para os países mais pobres e menos ouvidos. O próprio Papa Francisco pediu claramente à comunidade internacional que seja a voz de quem não tem voz. E “a ONU tenta fazer isso, mesmo com inúmeras dificuldades” – diz Dom Auza.
E, ao entrar no mérito da ambiciosa reforma da instituição, assumida pelo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, comenta o diplomata eclesiástico:  
O sistema atual, segundo o secretário-geral, não funcionou e a estrutura não está mais adequada aos nossos tempos. Procura-se criar uma capaz de ajudar realmente os países marginalizados e que sofrem. Vejo uma grande vontade, mas também uma extrema dificuldade.”.
O Observador Permanente da Santa Sé junto da ONU adverte que não interessa multiplicar as estruturas se os recursos económicos necessários não existirem. Na verdade, o dinheiro alocado ao desenvolvimento é uma parte muito pequena em relação ao investido na promoção e gestão dos conflitos armados. Por isso, “é necessário reequilibrar os fundos disponíveis do sistema da ONU”. Não há dúvida de que a reforma da ONU é uma questão extremamente difícil, porque no seu subtexto ainda persiste a ideia da hegemonia dos vencedores do último conflito mundial.
As prioridades do Papa para resolver a crise na Síria e as dificuldades dos refugiados rejeitados do ocidente são também as prioridades da ONU, partindo justamente da Síria, como garante Dom Auza, que sublinha:
É um conflito em que podemos ver claramente o confronto entre as rivalidades regionais e internacionais. Não se diz nunca que a Síria é uma vítima, sozinha. Os poderes regionais deveriam poder encontrar um acordo por uma saída com dignidade.”.
E, quanto aos migrantes, o diplomata da Santa Sé faz menção do pacto global adotado neste ano por muitas nações e explicita:
A Santa Sé contribuiu de modo substancial para o pacto global sobre as migrações. As Nações Unidas teriam desejado a participação do Papa na conferência de Marrakech (aquela onde foi lançado o documento), mas talvez não tenha sido possível. Mesmo assim, a ONU conta muito com a voz do Papa em defesa dos refugiados, porque é certo que pode influenciar os países que têm uma postura dura em relação a quem deveria ser ajudado e não rejeitado.”.
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Recorde-se que, a propósito dos migrantes e refugiados, já em 22 de maio de 2017, em Nova Iorque, no encontro sobre o tema “Compactação Global por uma migração segura, ordenada e regular”, este arcebispo filipino referia que “o número total de migrantes que atravessam as fronteiras alcançou, na história, níveis recordes”, o que tornou o fenómeno da migração “uma realidade complexa cujas necessidades e expectativas dos  envolvidos deveriam levar a uma solidariedade maior”.
Na primeira parte do seu discurso, detivera-se no tema do desenvolvimento sustentável, frisando a necessidade duma “mudança de comportamento em relação aos migrantes e refugiados”, passando “do medo e da indiferença à cultura do encontro”. E frisou: 
A responsabilidade e a repartição dos encargos devem levar em conta a riqueza e o nível de desenvolvimento de um país. A crise económica persistente limita as possibilidades da resposta de um Estado às emergências. A chaga da seca em algumas partes do mundo reduz a possibilidade de fornecer assistência humanitária a um número crescente de refugiados e deslocados.”. 
E, sobre a relevância da iniciativa da Compactação Global, observava:
Nesse contexto, é indispensável o envolvimento ativo dos parceiros internacionais. O Papa Francisco recorda que trabalhar juntos por um mundo melhor requer que os países se ajudem reciprocamente, num espírito de cooperação. A iniciativa da Compactação Global promovida pela ONU para a migração é uma ocasião única para desenvolver políticas coordenadas e investimentos.”. 
E, na conexão entre crise humanitária e migração, apontava o direito de viver no próprio país:
A Santa Sé reitera que a cada pessoa deve ser garantido o direito de permanecer no próprio país num contexto marcado pela paz e segurança económica. As pessoas não se sentirão obrigadas a deixar as suas casas se lhes forem garantidas as condições de uma vida digna e se as causas dos fluxos migratórios forem enfrentadas adequadamente.”. 
Depois, o prelado filipino avançava sobre a natureza da migração como escolha:
Se o direito de permanecer no próprio país precede ao de emigrar, os fluxos migratórios se tornarão voluntários, regulares e seguros. Consequentemente, tais fluxos tornar-se-ão mais geríveis e sustentáveis. Quando o direito de permanecer num país é respeitado, a migração torna-se uma escolha e não uma decisão obrigatória.”.
Mas não se escusou a enunciar o problema da migração forçada e suas consequências:
No mundo, mais da metade dos refugiados, de migrantes forçados e deslocados internos foram obrigados a fugir de seus países por causa de conflitos e violência. Quando chegam ao país de destino, ao invés de encontrarem um lugar seguro, enfrentam em muitos casos discriminação, nacionalismo extremo, racismo e falta de políticas claras que regulem o sistema de acolhimento.”.
E, como causas e solução, adiantou a concluir:
A maneira mais eficaz para impedir a migração forçada é pôr fim a guerras e conflitos. De entre as causas da migração estão a pobreza extrema, a falta de bens e serviços de base, a degradação ambiental grave e as catástrofes. É preciso ajudar as populações em dificuldade nos seus próprios países. Este é o único caminho eficaz para conter as formas dramáticas de exploração.”.
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Também a 21 de junho de 2017, numa declaração dirigida à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Cancun, no México, o Arcebispo referia:
Todas as pessoas têm a mesma dignidade e valor. O direito fundamental à vida deve ser defendido e protegido em todas as fases, desde a conceção até à morte natural. Mas ainda é colocado em discussão o direito à vida dos nascituros, dos migrantes, dos pobres, dos necessitados de cuidados especiais, dos anciãos e daqueles que são condenados à morte.”.
E o representante do vaticano dizia que a Santa Sé encoraja a OEA a multiplicar os esforços para promover os direitos humanos universais e inalienáveis, considerando como os pilares do desenvolvimento humano integral a habitação, o trabalho adequadamente retribuído, o acesso ao alimento e água potável, bem como a liberdade e os bens espirituais, que têm terreno comum no direito à vida, sem o qual a existência humana não é possível.
Por outro lado, a Santa Sé acolhe as iniciativas destinadas a garantir o acesso à justiça para as pessoas em situações de vulnerabilidade (entre as quais se contam os detidos, os indigentes, os refugiados e os deslocados…); e está preocupada com as pessoas ilegalmente detidas, os injustamente acusados, os portadores de deficiência mental e os que não têm advogado ou recursos para reivindicar os seus direitos, devendo estas pessoas devem encontrar tutela no sistema legal.
Também a Santa Sé realça o laço entre estado de direito e liberdade de opinião e de expressão. Por isso, detenção e o homicídio de jornalistas, investigadores e ativistas são o sinal do interesse dum poder que evita a identificação de responsabilidades, atentando contra os direitos humanos, contra a democracia e contra o estado de direito.
Ademais, como refere o Observador Permanente, ressalta que a independência da magistratura é um elemento fundamental do estado de direito e duma correta administração da justiça. Com efeito, quando a magistratura é corrupta, o estado de direito dá lugar ao poder do mais forte.
(cf boletim digital da comunidade católica Mar adentro 24 de maio e de 23 de junho de 2017)
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Também passam certamente por aqui as caraterísticas da boa política, a assumir pela ONU e seus Estados membros, proposta na mensagem papal para o LII Dia Mundial da Paz. E creio que Dom Auza tem sido junto do Papa um bom intérprete do palpitar do mundo, como um bom porta-voz do Papa naquele areópago mundial, a ONU.
2019.01.11 – Louro de Carvalho

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